terça-feira, 6 de abril de 2021

Friends

Como sabe quem acompanha esta página com a bonita intenção de devassar a minha privada, tenho mantido nos últimos anos alguns vícios pouco dignos de um escritor de gabarito. Não falo das madrugadas que perco a assistir a reposições de partidas de ténis ou snooker, que isso é coisa de homem, mas da tendência para ganhar afeição a canais no Youtube de pandilhas como Porta dos Fundos, Walk Off The Earth e Storror.

Um item que somei há pouco a este cabaz pubescente veio revelar um padrão que apenas tinha intuído. Falo da série Friends, de que vi, distraído, alguns episódios até me dar conta que estava na missão obstinada de ver por ordem todas as dez temporadas, à média de dois episódios por dia útil (tarefa para uns cinco ou seis meses).

Já escrevi aqui que uma das coisas que me fascinavam nos vídeos do Porta, WOTE e Storror, tanto quanto o humor, as qualidades artísticas ou as proezas atléticas, era a possibilidade de espreitar, ou especular, a partir dos making of, as interacções não encenadas dentro daqueles colectivos. Percebi agora que o que me atrai é talvez ver a amizade em funcionamento.

Um desses tipos a quem podemos arrendar regularmente o sofá por cinquenta ou sessenta euros à hora diagnosticar-me-ia, decerto, olhando a minha cara de poucos amigos, uma espécie de desvio voyeurista, uma «tendência patológica para ceder à curiosidade de observar dissimuladamente cenas íntimas de outras pessoas». Eu teria complexos em contradizê-lo. (E medo de que me cobrasse mais para me estimular a contradizê-lo sem complexos.)

Nunca tinha visto Friends, porque entre a tropa e a troika quase não tive televisão em casa. Não caí, portanto, por essa via do dejà vu, numa armadilha saudosista. Há a questão geracional, é certo, aquilo é rapaziada da minha idade, reconheço o meu antigo habitat em algumas peças do guarda-roupa, em opções capilares e em dramas de amadurecimento da mise-en-scène da série, mas ver Friends não é evocar uma fase antiga da vida — e se o fosse seria em muitos aspectos por contraste.

De todo o modo, a pista psicanalítica é sempre produtiva. Este gosto de assistir à amizade em funcionamento parece indiciar um processo inconsciente e asséptico de compensação. Dou-me conta que mantenho em relação aos meus amigos uma certa distância física e social. Não provocada pela pandemia, mas por esse outro vírus, mais antigo, que dá pelo nome de misantropia. A noite passada, por exemplo, esqueci-me de devolver a chamada, rara, de um (ainda) amigo — mas não falhei os episódios do dia.

Resta-me a esperança de que haja uma (re)aprendizagem a fazer com Friends, de que lá para a nona temporada já seja capaz, não só de devolver chamadas na vida real, mas também, ó audácia!, de combinar cafés.

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