quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Crise da imprensa: os meus contributos

A minha relação com a imprensa no último ano não tem contribuído nada para a sua saúde económica. Deixei de comprar o Público quando me incutiram a sensatez de considerar um euro e sessenta e cinco dinheiro a mais para um jogo de Sudoku (só comprava ao fim-de-semana, o baixo nível de dificuldade dos jogos de segunda a quinta não era estimulante). A única outra razão que me fazia (e faz) comprar o jornal era o suplemento Ípsilon. Há alguma possibilidade de entusiasmo e fascínio nas artes que não encontro no quotidiano político e social do país, na sua nefasta e maçadora previsibilidade. Sem me atrever a uma reflexão como a da Alexandra Lucas Coelho, julgo que, se o jornal diminuísse drasticamente o número de páginas e colunistas dedicados à vidinha e transformasse em caderno diário o Ípsilon, o número de compradores aumentava. Não subestimem a quantidade de pessoas que se está nas tintas para o futuro de Paulo Portas e dispensa a redundância de quotidianamente lhe darem as mesmas más notícias sobre o seu próprio futuro. Há, apesar de tudo, mais efervescência e diversidade na literatura, no teatro ou na música do que na vida da república. Desta, um resumo mensal dificilmente deixaria de fora qualquer novidade. Aliás, um almanaque anual ao género do Borda d’Água, com as suas tabelas de ciclos e reiterações e os mesmos provérbios e mezinhas, seria suficiente periódico nacional. 

Pirotecnia precoce

Às cinco da manhã houve fogo-de-artifício na rua ali atrás e não fui eu que o lancei. Podia ter sido: partilho da mesma insónia e do mesmo desejo de adiantar a pirotecnia e os ponteiros, da mesma pressa em sair deste ano velho e de maus-fígados.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Miasma

«Também havia a voz. A madrinha tinha uma daquelas vozes afectadas de lady inglesa, oscilando entre agudos e graves como um adolescente a amadurecer, mas com o sotaque carregado, as vogais rudes e as interjeições dum lavrador. Agora que dedico algum tempo a pensar nisso, não era com a nobreza britânica que a madrinha mais se parecia, mas com as preceptoras da nobreza britânica. Quando lhe ouvíamos a voz a progredir pelos corredores e pelas divisões da casa, espécie de miasma que se infiltrava por qualquer frincha e a qualquer hora, o nosso estremecimento não era de súbditos receosos do alcance do poder real, mas de pupilos que odeiam e temem a velha ama germânica que a família mantém como tradição orgulhosa nas folhas de pagamento mensais. (Qualquer comparação com bruxas verrugosas e histéricas teria igualmente cabimento: a madrinha parecia ter sido concebida ou treinada para ser prova de verosimilhança de todos os clichés.)
Um verdadeiro fenómeno era a sua gargalhada. Já imaginaram alguém dar sonoras gargalhadas sem que no seu rosto houvesse um indício de riso ou divertimento? A madrinha não tinha humor (embora utilizasse doses regulares de sarcasmo), mas isso não a impedia de acompanhar (e na verdade suplantar) as reacções a certos comentários ou piadas que se produziam à mesa. Ela gargalhava com a mesma força de quem expele um osso de frango da garganta, percutindo as paredes da sala como o equipamento sobredimensionado de uma discoteca ou fazendo drapejar os cortinados como um vento dos que activam avisos da meteorologia, mas os seus olhos mantinham a mesma vigilância censória e fria sobre os circunstantes, não traíam um único momento de cumplicidade ou empatia.   
A madrinha zelava pela casa e pelas tradições com o empenho exacerbado e anacrónico de aias e ministros de casas reais que na devida altura advertiram os senhores para os perigos dos caminhos que trilhavam. Ela tivera razão antes de tempo, mas não lhe cabia tomar as decisões (era uma matriarca que reconhecia a legitimidade do poder patriarcal), e quando o pôde fazer, demasiado tarde para evitar a queda em desgraça, já não conseguia deixar de agir como o último dos miguelistas — o ódio, a frustração e o desejo de vingança a dominarem cada segundo do dia.»

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Sílvia

«Quando a Sílvia cresceu não o fez apenas em sentido figurado, como acontece a tantas mulheres, cujo corpo de adolescente se transforma e enche de curvas mas não se estende verdadeiramente em direcção aos céus. Com Sílvia o crescimento ganhou expressão e significado, foi botânico, os seus membros cresceram como troncos e ramos de árvores mas ao ritmo de pés de feijão, ávidos de sol, competindo com os adultos pelo domínio do espaço aéreo. Nesse processo de grande consumo energético, tornou-se magra, por vezes demasiado magra, e a herança feminina da madrinha, sua avó, aqueles seios fartos mas rijos, parecia um equívoco, uma perturbação no perfil longilíneo, um lastro à última hora adicionado à sua anatomia para a impedir de se perder nas nuvens antes de a hipófise determinar o fim do crescimento.
Ter um peito daqueles não lhe concedeu porém uma silhueta recurvada; algo na sua estrutura óssea e muscular resistia à gravidade, a Sílvia deslocava-se de nariz bem emproado e sentava-se num perfeito ângulo recto que surpreendia. O primeiro bofetão que lhe dei, depois de me ter deixado, foi também em paga daquela perfeição ergonómica (talvez um ressentimento inconsciente da promessa de corcunda que eu era). Há algo de irritante numa mulher que parece quotidianamente a ilustração viva de um manual de etiqueta. Mesmo que na maior parte do tempo nos encha de vaidade (e até desejo) o seu talento para a elegância — expresso na materialidade das roupas e adereços que adquire sem interrupção, assegurando um fluxo de aquisições permanente e vital como soro para moribundos, e na imaterialidade da sua postura, fisionomia, gestos de antebraços, pensamentos e locuções de profunda vacuidade —, mesmo que nos sintamos envaidecidos e distintos por ter uma mulher assim, há sempre momentos em que vivermos com a Ava Gardner ou a Audrey Hepburn nos cansa. Cansa contracenar diariamente, sentir a obrigação de ser Gregory Peck das abluções matinais ao último escovar de dentes do dia. Um bofetão é um grito de liberdade, ainda que dado fora de tempo.»

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Swamp Thing

«(...) Eu fazia isso em algumas noites, com o impulso gótico de me vir enrodilhar depois nas algas ou nas ervas das águas menos profundas, sentindo a repugnância da sua viscosidade, as suas carícias arrepiantes de seres vivos asquerosos, a sujidade do lodo a levantar-se do fundo e a procurar envolver-nos numa nuvem perceptível de sanguessugas. Eram banhos de podridão com que eu procurava purgar-me, em noites de lua nova, da benfazeja luz solar que no Douro nos faz sentir príncipes destinados ao ócio e ao amor cortesão numa eternidade descomprometida, leve, a conjugar verbos apenas no único tempo interessante, o presente.
Desci ao cais nessa noite com o mesmo propósito de mergulhar, de me espolinhar nas águas rasas da margem e regressar ao quarto pingando lama, para desespero do pessoal da limpeza no dia seguinte. Mas a lua estava agora muito avançada no seu quarto crescente, iluminando com uma proficiência de lua cheia aquele troço de rio ainda livre do excesso de iluminação pública que já se verificava em tantas estradas desertas da região. A presença da Adèle, nos seus habituais trajes etéreos, dedicando-se na beira do cais a seduzir o firmamento nocturno com o mesmo ritual dervixe que lhe vira no primeiro dia, fez-me mudar de planos. Inicialmente pensei que podia ficar apenas a observá-la, com aquele deslumbramento juvenil de rapaz que pela primeira vez descobre os contornos de um corpo feminino, mas depois agi como agem os homens adultos, se suficientemente cheios de si, e fui meter conversa.
Não era uma surpresa que a Adèle estivesse receptiva à conversa — não havia por ali muita gente com quem falar e eu ainda não estava transformado como habitualmente no Swamp Thing. As constelações, se formos competentes nisso e o céu estiver descoberto, são um bom tema de conversa. Há outras possibilidades, além dessa mostra extravagante de erudição cosmológica, como por exemplo a deriva para a Antiguidade Clássica — com os seus deuses, os seus mitos, as suas metamorfoses, os seus amores e a sua excitante promiscuidade — ou para assuntos de foro místico, como os signos do Zodíaco, igualmente prenhes de insinuações amorosas e preliminares sexuais.
A temática estelar interessou Adèle, seria aliás uma surpresa que não interessasse a alguém tão eminentemente espiritual, mas ela quis ver os astros do meio do rio. Que esse desejo tivesse uma plausibilidade geométrica, digamos, assente no cálculo intuitivo de que no ponto mais equidistante de ambas as margens arborizadas a cúpula celeste se revelaria de uma forma mais ampla, não diminuiu o meu sentimento de que havia uma intenção romântica na vontade dela. Tanto mais que me perguntou, delicadamente, se sabia remar.
Deslizámos em silêncio para o meio da corrente, que, apesar de fraca, não permitia que o bote permanecesse estacionário como num lago. Preocupei-me, por isso, em orientar a proa no sentido da corrente, corrigindo o nosso avanço involuntário com ocasionais movimentos dos remos. A Adèle reclinara-se na popa, com as pontas dos cabelos de nórdica submergidas no Douro e oferecendo a sua garganta branca à Lua e ao meu olhar.
Esgotado o meu conhecimento sobre constelações, e ainda com os contornos fantasiosos da casa da Quinta à vista, como se estivéssemos no meio do Lago Léman, a rapariga belga, inspirada por essa mesma divertida imagem nocturna de uma Suíça duriense, enveredou pela história de Mary Shelley, de que parecia ter decorado longos parágrafos da Wikipédia. Falou da mãe da escritora, a feminista Mary Wollstonecraft, e do seu pai, o filósofo William Baldwin. A Adèle estava simplesmente a fruir um tema que a entusiasmava e, com intenção ou não, a dar-me a conhecer a sua adesão a ideais de amor livre, mas eu ficara retido umas passagens atrás, na entrada do seu dicionário que falava dos escritos de Baldwin sobre o casamento enquanto «monopólio repressivo».
A linhagem Wollstonecraft/Baldwin/Shelley era algo mais do que eu poderia suportar. Toda aquela gente de espírito livre, tão sensata e avançada quanto às relações entre homens e mulheres, parecia ter sido convocada para me fazer enfrentar os meus fantasmas recentes. Se a Adèle tencionava ter comigo o seu caso amoroso no Douro Superior dera um passo em falso com aquela digressão de enciclopédia online. Eu teria sido facilmente seduzido, naquele tão agudo estado de carência, mas, pelo menos de momento, ocorria-me tudo menos ter sexo com ela no fundo impermeabilizado do bote da Quinta de Pompeia. Antes que, de Shelley, me viesse à inspiração Frankenstein, um ser de um romantismo menos delicado, remei com furiosa urgência até ao cais, alegando efeitos secundários do jantar, de costume tão saboroso e serenamente digerível.»