sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Notícias da província

Título da Blitz: «Todos os concertos marcados para 2022 em Portugal». [Sublinhado meu]. Clica-se, percorre-se a ambiciosa lista e confirma-se que «Portugal» é ali basicamente sinónimo de Lisboa, numa inversão da metonímia usada na linguagem diplomática clássica. As listas de final do ano do Expresso e do Público (como referiu o Victor Afonso num post há dias) também usam a mesma castiça figura de retórica.

Nos tempos que correm, os jornais «nacionais» quase só têm correspondentes locais — mas em Lisboa, para poupar nas viagens e nas comunicações. Não deve por isso surpreender que o noticiário publicado seja muitas vezes de bairro, pitoresco, se não no tom, na circunscrição.

Não é que não cheguem às redacções dos jornais notícias do mundo exterior. Chegam, não estamos na Coreia do Norte ou na Idade Média. E em geral até chegam já escritas, prontas a publicar. Ou porque a Lusa coligiu umas notas e as distribuiu magnanimamente ou porque houve agências de comunicação pagas para o fazerem. De resto, a «província», se não tiver desastres, crimes ou abóboras gigantes, se não quiser encaixar-se no estereótipo de indígena novecentista que domina o imaginário paroquial das redacções (e demasiadas vezes quer), só tem estas duas formas de chegar aos noticiários: através de uma síntese apressada da Lusa, replicada automaticamente online por programas informáticos dos restantes media, ou pagando a alguém que conhece alguém numa redacção.

Mas as fatídicas listinhas que pretendem representar um todo nacional são trabalho de autor, são fruto do crivo esforçado e pessoal dos repórteres locais — de Lisboa. Que de vez em quando se metem no comboio para o Porto, sentindo-se aventureiros — e exaustos da viagem. Por isso, a não ser que o repórter perca um dia a cabeça e, saindo das rotas seguras, se atreva a um safari, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a «província» ser notícia por alguma coisa deste século.

Não é que hoje a província seja totalmente provinciana — é que Lisboa não deixou de o ser. Veja-se o que fazem as televisões: transportam a sua visão estereotipada da província para a província em programas que a procuram representar e na verdade representam sobretudo um preconceito que tem os meios de se fazer realidade. Quem inventou o pimba não foi o Emanuel — foi Lisboa.

Há muitos anos, Vasco Pulido Valente, responsável pelo correio sentimental da Kapa, respondia a um leitor que se queixava por a revista só falar do Gambrinus dizendo-lhe grosso modo que se queria que se falasse das casas de pasto da sua terra fundasse a sua própria revista. A conversa não era connosco, mas um grupo onde me incluía tomou à letra o conselho e fundou uma publicação, que até teve o seu share fora de muros. Só que, ao contrário das outras folhas paroquiais, não pretendeu ser mais do que era e assumiu-o no sobrenome: Jornal de Vilarelho. Não ficava mal aos media de Lisboa adoptarem uma vez por outra um subtítulo toponímico com a mesma honestidade.

Digo eu, que nem sequer sou regionalista.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

A viagem de helicóptero

Quando convidado para uma viagem de helicóptero na adolescência, só no último instante, depois de todos os outros compinchas, correu para o aparelho, quase tendo de subir para ele em voo, como nos filmes de acção. Anos mais tarde, a viagem era de carro para o concerto de David Bowie em Alvalade e esteve também para a perder, pela mesma irresolução. Em vários momentos chave da vida sobreveio-lhe a irresolução, e quase sempre encenou uma fuga para a frente no último instante. A biografia oficial declara-o feliz por ter acabado por se decidir em relação a alguns desses momentos, embora a memória específica das experiências se tenha perdido no mito sobre elas construído. Outras alturas houve em que ter-se decidido pelo risco ou pela aventura ou pelo mero desafio — ter-se decidido, enfim — só lhe trouxe coisas que não queria.
Talvez se tivesse perdido aquele helicóptero hoje fosse outra pessoa, lendariamente arrependido por não ter voado mas no íntimo satisfeito com a sua verdadeira natureza de espectador em vez de actor.

Diz-se que um escritor tem de viver para poder escrever, mas ninguém diz — e importa suspeitar que a verdade é esta — que para viver basta ser leitor.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Sportsman

Não sou apreciador da atitude de Djokovic no court. Talentos desportivos à parte, o tipo é muitas vezes irritante, na sua ridícula sobranceria ou nas posturas caprichosas. Prefiro, de longe, um Federer, um Wawrinka ou um Thiem a perderem de forma galharda do que um Djokovic a ganhar brilhantemente. Gosto de desportistas que sejam igualmente sportsman. Dentro e fora do court.

Carso

Carso é um planalto rochoso calcário que se estende do nordeste da Itália até ao extremo noroeste da Croácia, na Ístria, passando pela parte ocidental da Eslovénia. O território é rico em cavidades naturais, dada a solubilidade das rochas calcárias que o constituem. Ao longo dos séculos, e em particular nas várias guerras que no século XX envolveram a região, as muitas grutas, poços ou dolinas foram ali usadas como esconderijo de combatentes, local de julgamento e execução, depósito de cadáveres, consoante as necessidades, as circunstâncias ou os instintos. Várias delas permanecem, assinaladas ou não, como locais de memória, de dor ou de culto. Consoante as mágoas, os ressentimentos ou a nostalgia. Memoriais, lugares infames ou de glória. Em boa parte devido ao confronto — anda actual, pronto a recrudescer — de identidades, filiações, credos, obediências. Devido à delimitação de identidades em última instância solúveis como a rocha calcária. Em pó te hás-de tornar? A metáfora geológica é ali outra, mas também impotente contra narrativas nacionalistas ou tribais, de facção. O tempo profundo em que se mede a vida do planeta contém em si, como finos estratos geológicos, os breve mas contudo intermináveis e recorrentes instantes em que a humanidade age insanamente.

A história do Carso está presente em três obras admiráveis que, por coincidência, li quase sucessivamente nas últimas semanas: Mundo Subterrâneo, de Robert Macfarlane, Belladona, de Daša Drndić e Uma Causa Improcedente, de Claudio Magris (leitura em curso).

domingo, 2 de janeiro de 2022

Cheirar o mundo de cima

Por vezes, para me sentir vivo, saio à varanda da cozinha, de onde, à altura de um inexpugnável quinto piso, com vistas amplas para a serra, olho o mundo e os seus habitantes como de uma torre de menagem: com a indiferença de um senhor no seu castelo.

Também saio à varanda uma vez por outra para despistar uma suspeita de Covid, sobretudo à noite, que tem sempre daquele lado um de três odores de combustão (por vezes os três): lenha a arder numa lareira, carvão a alimentar o forno da padaria e ganzas que grupos de adolescentes ali fumam há décadas. (Não são, claro, sempre os mesmos adolescentes: as gerações sucedem-se mas a falsa impressão de clandestinidade do local passa através delas como uma herança cultural de uma tribo.)

Enquanto inflo as narinas daquelas fragrâncias excluo momentaneamente um dos sintomas da doença e sei que o mundo ainda não acabou — embora possa na verdade estar para breve. Ignoro, de facto, se arde o último toro de pinheiro, a última vagoneta de carvão, o último pé de Cannabis.

sábado, 1 de janeiro de 2022

Dia de Ano Novo

O dia de Natal e o dia de Ano Novo sempre foram aziagos para adolescentes. São tradicionalmente «dias de família» e eles têm de fingir pertencer a uma ou suster a respiração até o calendário mudar.

No banco de trás de um carro familiar em passeio domingueiro, a moça olha através do vidro desejando estar noutro lugar. Há cem anos, passeando numa charrete no Bois de Boulogne com o mesmo ar de desesperado tédio, pareceria coquete e atrairia pretendentes.

Ano Novo, roupa nova

No mundo da minha infância, o dia de Natal e o dia de Ano Novo eram ocasiões em que quem podia estreava e ostentava roupa nova. Na missa do meio-dia ou na passerelle pós-prandial — que consistia muitas vezes numa visita às brasas que restavam do madeiro no largo da terra, a friccionar as mãos e a bater no chão os pés para os aquecer porque ainda não havia Primavera no solstício de Dezembro — ficava-se a saber quem tinha recebido do Menino Jesus ou podido comprar por si mesmo uma camisola nova, umas calças da moda, um invejável casaco de Inverno, umas luvas para esfregar à fogueira e na cara dos que as não tinham ou uns sapatos que se tentava por todos os meios discretos exibir e em simultâneo furtar às pisadelas enfarruscadas dos ressentidos.

Por vezes, não havendo mais o que fazer, os casais ou as famílias davam passeios nas redondezas, e aí as roupas estreadas ou o calçado novo revelavam-se inadequados, porque os caminhos eram de má calçada ou de lama, em geral até acumulavam, e o sapatinho escorregava ou afundava-se e a perna da calça atrás ficava a assemelhar-se a guarda-lamas de motorizada em fim de viagem. O figurino de Natal ou Ano Novo, em suma, era apropriado para a nave da Igreja, mas não tanto para o adro.

Hoje, saindo para correr na hora em que as famílias digeriam ao sol o almoço, vi muita gente a passear de fato de treino e pensei como são práticos, informais e confortáveis os tempos agora, ainda que menos estéticos. Depois reparei num padrão dominante, a cor grey melange, e no aspecto imaculado dos fatos de treino. Quando me pareceu adivinhar o fio de plástico de uma etiqueta ainda pendurado nas calças cardadas de alguém, suspeitei de que afinal não se perdeu o hábito de estrear roupa no dia de Ano Novo, apenas mudou a moda.