domingo, 2 de janeiro de 2022

Cheirar o mundo de cima

Por vezes, para me sentir vivo, saio à varanda da cozinha, de onde, à altura de um inexpugnável quinto piso, com vistas amplas para a serra, olho o mundo e os seus habitantes como de uma torre de menagem: com a indiferença de um senhor no seu castelo.

Também saio à varanda uma vez por outra para despistar uma suspeita de Covid, sobretudo à noite, que tem sempre daquele lado um de três odores de combustão (por vezes os três): lenha a arder numa lareira, carvão a alimentar o forno da padaria e ganzas que grupos de adolescentes ali fumam há décadas. (Não são, claro, sempre os mesmos adolescentes: as gerações sucedem-se mas a falsa impressão de clandestinidade do local passa através delas como uma herança cultural de uma tribo.)

Enquanto inflo as narinas daquelas fragrâncias excluo momentaneamente um dos sintomas da doença e sei que o mundo ainda não acabou — embora possa na verdade estar para breve. Ignoro, de facto, se arde o último toro de pinheiro, a última vagoneta de carvão, o último pé de Cannabis.

2 comentários:

  1. Que seria de nós nestes anos de confinamentos vários sem uma varanda...faço o mesmo à falta de melhor ou em desespero vou para a rua.
    Bom ano!
    ~CC~

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