domingo, 28 de dezembro de 2014

Selfie ou as faculdades paliativas da nostalgia

Descem a vereda do parque em passo lento de sábado à tarde. Vistos de costas, não se percebe se são namorados, se irmãos ou mãe e filho (ela parece mais velha), mas essa dúvida é ainda mais espúria quando os vemos posar para a fotografia: o que importa se o que encenam para a câmara é amor romântico ou ternura familiar? No simulacro dos sentimentos é indiferente o tipo de parentesco.
Encostam muito a cara, o braço dele sobre os ombros dela, ela como tenaz a cingir-lhe os rins. Podem estar só a espremer-se para caberem no enquadramento (acontece até a estranhos em bodas, ombrear promiscuamente a mando do fotógrafo), e a expressão feliz que de súbito lhes ilumina o rosto pode ser a apenas a resposta instintiva, culturalmente determinada, a um imaginado «olh’ó passarinho». Regressarem com igual rapidez às caras sisudas anteriores parece corroborar esta ideia de que presenciamos uma farsa inocente, ritual.

Mas nada impede a especulação literária. A vida não impede geralmente a especulação literária. Fotografias sorridentes são instrumento que as pessoas usam para acreditarem, a coberto dos anos ou da distância, que em certo dia ou local foram felizes. A foto como alibi para a auto-estima ou o optimismo. Talvez alguém naquele casal conhecesse já as faculdades paliativas da nostalgia.

(Folhear um álbum é seguir uma prescrição antiga de alienação e tirar fotografias com este móbil poderia ser judicialmente censurado como plantar cannabis. Mesmo que apenas para consumo próprio.)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Mademoiselle Marcelle La Pompe, aliás, Renée Dunan

A realidade pode ser ainda mais truculenta e divertida do que já achávamos. Alertam-me que o “Catalogue des prix d’amour de Mademoiselle Marcelle La Pompe», que me serviu há dias para prosa a armar, é na verdade obra de Renée Dunan, escritora, crítica, poeta, anarquista, dadaísta e feminista francesa que provavelmente emparelhou com alguma da clientela surrealista do café La Fleur en Papier Doré. Marcelle La Pompe era apenas um dos seus vários pseudónimos.
(Devia saber que os meus dois vagos anos lectivos de francês não me autorizavam hermenêutica deste calibre.)

Alguns links úteis:
http://lenaweb.voila.net/Dunan/Reneee_Dunan01.jpg

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

E-musas

Uma vez escrevi em directo no blogue, durante semanas, um conto longo que em boa parte se inspirava na persona de PJ Harvey de alguns vídeos e tinha como banda sonora obsessiva um outro vídeo com uma música igualmente obsessiva de Radiohead — “Street Spirit (Fade Out)”. Lembrei-me disto enquanto imaginava a vida de escritor na Antiguidade Clássica: uma actividade dura, sem o YouTube e sem essa invenção fundamental que é o loop.
A estatuária grega, falando de musas, tinha a vantagem (também táctil) dos volumes, uma tridimensionalidade que o YouTube ainda não tem, mas faltava-lhe o movimento, e seria necessária uma sucessão de estátuas para cobrir toda a expressividade do rosto de PJ: a inocência e a perversidade, a candura e a dureza, a melancolia e a violência. Retratá-la seria trabalho para toda uma guilda medieval. Já manter uma trupe dias a fio a tocar a mesma música sairia caro em broa e vinho, algo que a electrónica nos poupa.
O progresso não é só máquinas a substituir caixas de supermercado e portageiros nas auto-estradas. É dar-nos acesso às musas de uma forma que antes só era possível a gente com dinheiro ou imaginação.

sábado, 13 de dezembro de 2014

O primeiro murro e os seguintes

«Não visitei o quarto senão quando o Hotel era uma ruína sem ponta de nobreza, disse eu a Leonardo. Não que eu concordasse que nobreza teria sido um termo adequado para caracterizar aquele edifício, pese embora o facto de alguma nobreza nacional ter em tempos ali pernoitado. Mas a decadência tem o poder de exaltar o que a antecede, disse eu, e nas madeiras apodrecidas, nas paredes esburacadas, no mobiliário despedaçado podia imaginar-se um luxo ou pelo menos uma distinção maior do que aquela que na verdade existira.
Durante muito tempo não soube que intuição me levara àquele exacto compartimento e depois descobri que a intuição nada tinha a ver com o assunto. Em 1998 eram ainda visíveis as marcas claras dos calendários na parede (ou eu imaginei que aquilo eram marcas de calendários) e o crucifixo de madeira preta permanecia, tutelar, na parede onde se encostara a cabeceira da cama. Depois o Hotel do Norte foi demolido e o espaço que ele ocupava no chão entretanto nivelado era ridiculamente pequeno, parecia impossível que naquela reduzida clareira do Parque pudesse ter existido semelhante edifício e que por ele tivessem passado tantas épocas e tantas vidas.
Leonardo permanecia atónito depois da nossa aventura no clube de jazz. Tínhamo-nos escapado sem qualquer problema, mas abandonáramos o corpo inanimado de Octávio e eu sabia que isso iria pesar na consciência dele, mesmo que nos tivéssemos certificado, à distância, como malfeitores compassivos ou arrependidos, de que os amigos dele o tinham enfiado numa ambulância não muito depois da minha agressão.
Ter imaginado que estes acontecimentos me iriam deixar sem interlocutor (que importância tinha a minha história perante a enormidade daquilo que Leonardo e eu fizéramos?, era isto que Leonardo estaria a pensar naquele momento) fez-me desejar acelerar o relato, saltar etapas, chegar ao seu término, mas logo percebi que era uma coisa estúpida de fazer. Aquilo não podia ser varrido para debaixo do tapete, ignorado como mais um incidente numa noite excessiva de copos, nem sequer sepultado debaixo da torrente de revelações que eu reservara para Leonardo naqueles últimos dias, dez anos depois da minha primeira partida. Ele olhava para mim e — eu percebia — continuava a ver-me erguer o postalete e a fazê-lo descer sobre a cabeça de Octávio, felizmente sem usar a circunferência aguçada da base. Se fosse um dos seus próprios pacientes, Leonardo ter-se-ia aconselhado a afastar-se de mim, pelo menos enquanto não conseguisse ultrapassar o trauma, resolver o impasse existencial, moral, em que se afundara. Mas eu não era apenas parte do problema, ou nem sequer era o problema. Leonardo precisava de mim para se ver a si próprio a perder o juízo. Eu era o espelho, era mais fácil ver-se reflectido em mim de navalha na mão prestes a consumar uma loucura. Se tivesse de pensar sobre isto a sós — o que decerto também faria: à noite, na cama; durante a curta viagem de carro para o consultório; nos únicos momentos em que eu o deixava sozinho —, talvez não tivesse coragem de o fazer, pelo menos não profundamente, não tão cedo, não sem se socorrer de uma boa dose de whisky. A minha presença solicitava o que de racional e profissional havia nele, mesmo que desta vez a vocação tivesse de ser posta ao serviço da sua auto-análise.
Eu queria ajudá-lo forçando a normalidade. Estava de regresso à cidade para lhe contar a minha história e era isso que iria fazer, já que nada tinha acontecido — queria eu que parecesse, queria eu que fosse verdade — que impusesse uma mudança de planos. Mas daquela noite em diante tivemos de lidar também com a presença opressora dos fantasmas de Leonardo, que disputavam aos meus o espaço sofisticado do seu gabinete, ou todos os outros sítios por onde andámos.

A primeira vez que desejei enfiar um murro na cara de alguém, disse eu a Leonardo, não estava convencido, por razões físicas e morais, de que o podia fazer. Ignorava a extensão da minha força por nunca a ter verdadeiramente posto à prova e inibia-me o excesso de doutrina católica. Temia que um murro não fosse suficiente e eu não fosse capaz de sustentar a briga ulterior, mas temia ainda mais que o Céu estivesse de facto a observar-me e fosse testemunha da minha iniquidade. Fingia então indiferença, superioridade, desprezo. Passei a fazê-lo com demasiada frequência, ignorando o quanto era acreditado naquele meu papel (embora, no íntimo, supusesse que pouco: não poderia transmitir esses sentimentos, ou a ausência de sentimentos, uma vez que o que sentia era raiva, impotência, desejo de vingança). Eu lia algures que uma pessoa podia transmitir beleza, se se sentisse bela, ou confiança, se se sentisse confiante. O carisma, recitava de cor depois de ter lido, era algo químico, como o odor que os cães pressentem quando não conseguimos conter o medo. Mas eu sentia medo e raiva e ressentimento, como poderiam os outros ignorá-lo? Não agredia a murro todos aqueles que injustamente me incomodavam — o preto era também um medroso —, mas os meus pensamentos apresentavam um currículo de serial killer, ou pelo menos de alguém demasiado violento, incapaz de conter a cólera. Foi a consciência de que, para todos os efeitos, eu era um pecador, que me era impossível não transgredir em pensamentos e, consequentemente, impossível evitar o Inferno, que me fez entrar numa nova etapa da minha vida. A lógica infantil moldada pela catequese salvou-me, embora não da maneira que os catequistas desejariam. Convenci-me, por volta dos doze anos, de que era um pecador reincidente e que não tinha grandeza bastante para a redenção, já que não conseguia arrepender-me de cada maldade que pensava. Se havia uma paridade entre os actos e os pensamentos, por que me continha eu?
Quando a ocasião se proporcionou de novo, disse eu a um Leonardo enfraquecido mas ainda capaz de atenção, tinha-me livrado do obstáculo moral e desenvolvera uma estratégia para evitar a briga que consistia em dar o primeiro murro — e dar também todos os seguintes, numa sucessão e ritmo que imobilizasse o adversário antes de ele ter tempo de reagir e notar que era mais forte. Jogávamos futebol. Ou jogavam os outros, e eu limitava-me a sonhar que em algum momento poderia ser chamado a substituir um dos da nossa equipa (fazia figas para que alguém se aleijasse o suficiente para ter de sair do campo). Estava de pé junto à linha imaginária que delimitava a área de jogo quando um rapaz mais velho, que não jogava, se aproximou pelas costas e me puxou os calções até aos joelhos, perdido de riso e a gritar para as raparigas que assistiam envergonhadas se era verdade ou não que também a minha pila era preta.
Por segundos que me pareceram eternos, fiquei ali com os calções em baixo a sentir a maior humilhação da minha vida. Depois, baixei-me para os puxar para cima e com o mesmo movimento apanhei um pau do chão e atirei-me com ele para cima do tipo que me fizera aquilo. Não parei de lhe bater enquanto não houve sangue e quando terminei já não sentia raiva nem sentia nada. À minha volta todos estavam parados a olhar, sem decidirem o que fazer. Eu tinha sido o ofendido, era meu direito retaliar, mas na sua apatia eles pareciam buscar uma razão para se lançarem em grupo sobre mim. Abandonei no mesmo momento o jogo em que não participara e abandonei a obsessão em sentir-me injustiçado, rejeitado. Dali em diante seria verdadeiramente capaz da indiferença, do desprezo, não raro da superioridade. Passei por eles como numa despedida, a aguentar os seus olhares confusos e nervosos, vazio de sentimentos e estados de espírito.
Terminei a história sem convicção, não estava convencido de que as coisas se tinham passado assim, de que aquele tinha sido um momento inaugural ou sequer que tivesse existido. Por vezes, imaginava a minha biografia, ou alguns episódios dela, como uma ficção que eu próprio reescrevia de acordo com uma disposição posterior. Leonardo deve ter percebido esta hesitação e interpretou-a como se eu estivesse a tentar algo para o confortar, a inventar uma parábola, uma coisa que relativizasse o seu acto e lhe apontasse pistas sobre como lidar com ele e com o futuro, se acaso Octávio recuperasse com vontade de continuar a sua saga importunadora. Talvez fosse assim de facto, talvez esta história não fizesse parte da narrativa inicial que eu tinha para Leonardo e a tivesse inventado no momento, para ele e para mim, como uma forma de lhe ser útil.»

in Hotel do Norte

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Catalogue des prix d’amour

[O senhor flagrado não é Paul Nougé, apesar do ar satisfeito]

Mosquitos em Bruxelas parecia-me um contra senso, imaginando-os bichos eminentemente meridionais ou amigos de ambientes de gente pobre. Mas quando me começaram a cair no copo lembrei-me que sou pobre e meridional. Não, não foi isso. Quando passei a usar a vetusta base de copos como tampa contra os dípteros kamikazes, tomei consciência do sítio onde estava: La Fleur en Papier Doré (Het Goudblommeke in Papier para os amigos flamengos), um café que respeita o seu ilustre passado mantendo, quase sem a espanar, a decoração original. A Flor em Papel Dourado é um estaminet fundado em 1366, mas não creio que houvesse nenhum mosquito dessa colheita. Os que partilharam comigo o cabernet e mais tarde nadaram nos meus sucos gástricos deveriam ser do tempo da última remodelação do botequim, acontecida, diria, na transição de oitocentos para novecentos. Gosto de sítios assim, com verdadeira história. E se tomasse notas no meu moleskine (ou, menos romanticamente, usasse a câmara do telemóvel), poderia hoje reproduzir na íntegra, poupando o trabalho de inventar tema e coerência para um post, a piéce de résistance das antiquarias que enfeitam, emolduradas, amareladas e empoeiradas, as paredes da casa. Refiro-me ao tarifário de um prostíbulo, de 1915.
Não me parece que o nome do café derive deste dístico utilitário, mas podia: o “Catalogue des prix d’amour de Mademoiselle Marcelle Lapompe”1 é um belo documento histórico em papel dourado pelo tempo. E a flor… vocês sabem.
A informação disponível no café refere que Magritte e os surrealistas belgas passavam ali os dias, e acredito que eles tenham reparado, como eu, que chez Marcelle Lapompe2 havia descontos se o cliente não precisasse de luz (já a vela custava 15 cêntimos). Talvez, pensando bem, o tarifário tenha sido esquecido ali por um dos surrealistas, depois de o ter consultado disfarçadamente no meio de um exemplar que fingia ler de L’Amour Fou, do condiscípulo francês. Ou, quem sabe, o papelito comprometedor caiu do bolso de um Paul Nougé vindo de se ter feito “glouglouter le poireau”3, depois de “faire sucer une pastille de menthe a l’opératrice”. Tudo é possível (refiro-me à cronologia): o tarifário diz que “anula todos os precedentes”, mas pode ter vigorado nas décadas seguintes (é consultar a inflação da época).
A tabela de Mademoiselle Lapompe — que eu mesmo que tivesse tomado notas na verdade não citaria, por pudor — é simultaneamente um documento de grande objectividade e um catálogo de metáforas e eufemismos de 1915 para essa outra metáfora e esse eufemismo intemporal que é o “amor”.

Pode ser encontrado na Internet. O "Catalogue". E o amor, parece.

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1 Ok, fui pesquisar na Internet, comprovando de passagem a minha teoria de que hoje não é preciso levar máquina fotográfica para as viagens, alguém já tirou as fotografias de que precisamos.
2 Na Rue du Chant-Noir, número, adivinharam, 69.
3 Pardon my french.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A necessidade de flanar

Algumas ruas aqui em volta fazem-me por estes dias lembrar Roma, a caminho do Trastevere. Nada nas ruas sem Tibre nem classicismo desta cidade se parece a Roma, excepto as coloridas folhas de plátano coladas ao chão pela chuva. Mas é de Roma que me lembro ao contemplar o que o Outono fez às folhas. O que me teria sucedido de interessante ali, se descontarmos estar desobrigado de horários e compromissos?
O caminhar à noite pela margem esquerda do rio, indagando abstraidamente a corrente rápida e acastanhada, o cruzar a Ponte Fabricio com vaga e preguiçosa curiosidade estética e histórica não estavam balizados por nenhum prazo ou ânsia, não tinham nenhum objectivo que não fosse descobrir algures, sem urgência, uma taberna simpática com preços módicos. E percebo que é isso o que de importante me aconteceu em Roma. Isso, essa suspensão do tempo, do trabalho, da existência social mesmo que misantropa, esse interlúdio da vida quotidiana que deambular por uma cidade estrangeira pode significar.
Há um prazer, uma leveza, um sentimento de eternidade quando se vagueia por uma cidade sem pressa nem destino nem desejos nem gente conhecida. Não é talvez de Roma que me lembro, mas de flanar por uma cidade atapetada de folhas no fim do Outono. Não é de Roma que tenho saudades (que patético seria reclamar-me saudoso de uma capital de fim-de-semana), mas daquela versão de mim que não tinha agenda.

Descubro que sou, por aspiração (e julgo que natureza íntima), uma espécie de flâneur. Um flâneur rústico, pelo menos provinciano, mas um flâneur. Fui-o quando saía de fim-de-semana da tropa e tinha de queimar horas entre estações de Lisboa ou do Porto. Fui, então, um flâneur do Cais do Sodré a Santa Apolónia, de S. Bento a Campanhã, fazendo grandes desvios pré-baudelerianos (no sentido de inconscientes de si), preferindo calcorrear horas a fio as cidades do que passar o tempo de espera em bancos frios e sujos de apeadeiro ou em cafés para cuja cerveja não tinha dinheiro. Fui um flâneur à maneira torguiana (figura que, contudo, me não desperta interesse), pisando em todas as oportunidades o saibro dos caminhos e escalando as rochas dos montes. Fui, a espaços, com certa pretensão walterbenjaminiana, digamos, um flâneur à medida das pequenas terras onde vivi ou procurando erguer-me ao tamanho de algumas das que visitava.

Mas só hoje, ao regressar a casa e aos deveres, ao olhar com nostalgia este tapete de folhas nesta terra que não é Roma, percebo mais intensamente que a felicidade talvez seja não aceitar na vida mais do que solas de sapatos e bilhetes low cost.

Algo que na verdade já devia ter intuído quando em Bruxelas me pus, não sem embaraço, — como aqueles fãs que vão a Paris visitar o túmulo de Jim Morrison — à procura dos sítios por onde andou o narrador flanante de Cidade Aberta, de Teju Cole. Não era uma emulação ou uma excentricidade constrangedora das que por vezes me assolam — era uma acusação e um apelo dirigidos a mim mesmo. 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O direito à poligamia

Decerto com razoável ironia, o escritor Nick Hornby propôs algures que se devia queimar os livros «complicados». Esta é daquelas frases que dão jeito a um provocador e está de acordo com o zeitgeist comercial, numa altura em que há empresas que não se importam de lançar e depois retirar compungidas do mercado produtos politicamente incorrectos porque sabem que a visibilidade concedida pelo “escândalo” lhes acabará por trazer lucros. Ainda que aqui não haja necessidade de Hornby se vir a queixar de citação fora de contexto: a sua afirmação tem tanto de provocador como de banal. Muitos disseram o mesmo, por aquelas ou outras palavras, e vários deles eram também escritores, ou coisa aproximada.
O El País, que traz a notícia e fala da repercussão que terá tido aquele fait divers literário, dá-se contudo ao trabalho de coligir uma lista de 10 livros que «carregam o estigma (muitas vezes injusto) de serem inacabáveis», por gigantismo ou ilegibilidade. Vai de O Arco-Íris da Gravidade a A Piada Infinita, mas passa por Crime e Castigo e Guerra e Paz. Isto é ir um bocadinho mais longe do que se atreveria José Rodrigues dos Santos, e o artigo mistura, com certa tontice, a suposta complexidade com o tamanho dos livros.
Teremos, portanto, duas razões, nem sempre acumuláveis, para queimar livros: a dificuldade de leitura que eles oferecem ou o número de páginas que os constitui.
Reparem que nenhum dos escritores citados na peça, Nick Hornby ou Kingsley Amis, teve a franqueza de Fernando Pessoa, nenhum defende que pura e simplesmente se não leia. Não. São (ou eram) escritores: naturalmente não querem afastar a clientela (pelo contrário, como se verá adiante). Consideram a leitura importante, claro, ou uma interessante «actividade hedonista».
No que toca ao tamanho dos livros, a estigmatização dos grandes é estulta, se tivermos precisamente em conta o prazer da leitura: o que importa ler dez novelas ou um só calhamaço, dez autores ou um só escritor, se o objectivo é o prazer que tiramos do exercício de ler? Eu, por exemplo, e pensando só no prazer, trocaria de bom grado uma dezena de livros menores que li por um novo tomo de A Piada Infinita. Ganharia, entre outras coisas, novidade e variedade, tudo num só livro, vejam só.
De resto, para escritor, aquele Hornby parece ter um medíocre conhecimento da natureza humana. Ignora que, nos prazeres literários como, digamos, na culinária, os seres humanos são diferentes?
E vamos ao argumento da complexidade. É claro que há gente que lê ou diz ler destas obras «estigmatizadas» para poder fazer alarde de superioridade intelectual ou para seguir, por pretensão, o mais exigente cânone. Eu li o Ulisses em bicos de pés e pouco percebi dele na altura, mas não me arrependo de ter seguido a via pedante (se quiserem) em vez da via pirómana. Acredito que, neurologicamente, duas pessoas diferentes possam sentir o mesmo grau de prazer a ler o supra-referido dos Santos, por exemplo, ou o falecido Wallace, mas desconfio que o cérebro do leitor que lesse o segundo sairia bastante mais colorido e refulgente de uma ressonância magnética. E eu não vejo, com franqueza, razões para se preferir levar para casa imagens de um blackout quando se faz uma IRM.
Tirando Philip Roth — que chegou ao ponto de desaconselhar a leitura tout court mas porque, bem sabemos, decidiu deixar de escrever —, o aprendiz de Torquemada que manda queimar livros alheios está, geralmente, com consciência disso ou não, a ser juiz em causa própria, a autojustificar as suas opções enquanto escritor, a puxar a brasa à sua sardinha literária, a defendera a sua bancazinha no mercado livreiro. Adicionalmente, mostra que, por infelicidade, o ter-se tornado escritor não preservou o leitor que eventualmente havia nele. É que nenhum leitor verdadeiramente interessado na leitura (ou viciado na leitura, se quisermos continuar nas metáforas hedónicas) escolherá ou rejeitará um livro pelo seu tamanho, ainda que possa ter o seu próprio calendário de leituras e tendência a postergar indefinidamente luxações nos pulsos.
Nick Hornby diz, e nisto tem razão, que «de cada vez que continuamos a ler sem vontade reforçamos a ideia de que ler é uma obrigação e ver TV um prazer». Mas um escritor com alguns conhecimentos de sociologia, psicologia, neurologia ou o diabo a quatro e que apreciasse a diversidade humana talvez não devesse ignorar que se pode não ter a menor vontade de ler o mais fininho dos livros de JMS (J), se ele algum dia escrever um à sua imagem, e encontrar em cada magra página um trabalho de Hércules. Num mundo em que o cânone excluísse livros complicados e/ou grossos (e esse mundo já está aí), haveria sempre gente a reconhecer que prazer é ver TV.

A redutora imagem da humanidade implícita numa condenação dos livros «excessivamente complicados» é, insisto, apologia de uma escola ou da obra própria. Infelizmente, uma parte dos escritores não resiste a esta tendência, e é por isso que tantas vezes ler-lhes as entrevistas se torna penoso. Detesto escritores possessivos, que me queiram só para si. Enquanto leitor, reclamo o meu direito à biodiversidade — ou à poligamia, para regressarmos ao prazer.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Coisas que não anoto no moleskine (2): em Mainz

Recordo assim de repente Mainz como cidade irmã de outras imaginadas onde o adro fronteiro à gare se reveste de uma anarquia lânguida, vagamente ameaçadora ou repulsiva. Bandos esfarrapados de punks, com as suas repas coloridas e hirtas, chocalhavam quando ali desembarcámos correntes de forçados e constituíam uma pequena multidão de rebeldes ociosos, espalhados no lajeado cinzento e sujo como focas gordas ou tartarugas trazidas pela maré com o lixo a uma praia vulcânica. Sentados ou recostados como romanos em orgia, bebiam e derramavam as suas cervejas enquanto lançavam por rotina insultos aos passageiros que, como nós, ziguezaguevam por entre eles na direcção da paragem de táxis ou dos meandros do centro urbano. Não é um bom cartão-de-visita de uma cidade, mas suponho que ninguém se dá ao trabalho de ir até à Alemanha para acabar a apear-se do comboio em Mainz. O acampamento punk não se monta quotidianamente ali para assediar turistas, creio, mas para chocar os concidadãos burgueses e devotos do trabalho que usam o comboio nas suas idas e vindas diárias para Frankfurt ou para localidades próximas. De resto, a cidade, que até tem os seus encantos, não precisa da estética punk para enjoar os visitantes: tem a cozinha, com salsichas sensaboronas e puré de bata avinagrado, que se serve com um apfelwein menos entusiasmante do que um Fruto Real que tivesse sobrevivido aos anos 80 e decidíssemos por estultícia arriscar beber hoje.

Se contudo o viajante se dá, como nós, ao trabalho de ir até Alemanha para acabar a apear-se no comboio em Mainz, não adianta ir fazer perguntas ao estabelecimento tuga a dois passos da estação: ali deixam de falar português quando descobrem que os entendemos. A alternativa é acreditar no casal simpático que nos aborda mais tarde, vestido para ir ao teatro num fim de dia de Agosto, e que garante ter um quarto vago, se no fim da peça ainda andarmos pelas ruas de mapa na mão e falhos de abrigo. Em Mainz fica-se então a olhar para estoutro cartão-de-visita, um pequeno rectângulo de papel que assegura serem os elementos do casal cientistas numa universidade próxima, e, enquanto se continua a busca por hotel barato, entreolham-se os viajantes perguntando-se se há alemães calorosos ou se um currículo universitário distinto é atributo que os teutões julgam necessitar para seduzir swingers meridionais. Como entretanto escurece de vez naquela parte da cidade com arquitectura vagamente pré-Segunda Guerra Mundial, e como se levanta uma brisa de inquietação e preconceito, os viajantes deixam de se sentir lisonjeados com a ideia de assédio intelectualizado e passam a interrogar-se academicamente o quão sedutor poderia ser Norman Bates para copycats germânicos. A imagem hitchcockiana de uma faca no duche diverte os viajantes — e leva-os a optar por subir um bocadinho a quantia que estão dispostos a despender por um quarto em Mainz. Alojam-se naquele hotel que era antes bom de mais para portugueses temporariamente sem bússola mas permanentemente sem dinheiro, trocando uma aventura literária por um pequeno luxo capaz de aliviar o corpo e a alma. No moleskine anotei o preço do hotel.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Coisas que não anoto no moleskine

Dificilmente poderia viver com a humidade tropical, mas com a chuva e a monção sim. No Vietname usei o tempo todo uma echarpe feminina enrolada e empapada no pescoço e arrastava-me pelo território como um alucinado no deserto, seguro de que se parasse desfalecia ali mesmo. O meu caminhar era como o de alpinistas a 8 mil metros de altitude sem forças, oxigénio e discernimento, mas com aquela motivação ou obsessão prévias que lhes concedem um caminhar de autómato, pondo lenta e lunarmente um pé após o outro, mais como estertores em slow motion de morto do que passadas voluntárias de vivo. Era assim eu naquela latitude, a deslocar-me em linhas rectas entre duas sombras em vez de vaguear turisticamente pela paisagem; a olhar as coisas pitorescas pelo canto do olho enquanto elas iam desfilando a meu lado como noutra dimensão, sem nunca me deter para apreciar pormenores ou comentar particularidades; anunciando com desespero homicida na voz que se parasse para fazer fotos ou me desviasse do caminho da sombra fosse por que razão turístico-imperiosa fosse seria um português suado morto, e não um ocidental vivo enriquecido pela viagem. Descobri que nos trópicos tenho espírito de mula atrelada à nora: caminho porque tenho de caminhar, remoendo pensamentos asininos, obstinados, sem nexo nem finalidade, incapaz de parar depois de me pôr em marcha e impedido pelo jugo tropical de gestos de revolta, de qualquer gesto, aliás, que não seja descolar um pouco a t-shirt do corpo. Mudava de trajectória de vez em quando, é verdade que mudava, se a companhia me reorientava os passos segurando-me pelos ombros como se faz a um bebé ou ao tal autómato com pilhas Duracell e uma versão muito beta de GPS. Por vezes também chocava com postes e paredes, e conseguia inflectir ou contornar o obstáculo com a mesma destreza convulsiva das sondas robóticas em Marte. As primeiras e mais primitivas, que se atolavam à terceira tentativa — não sem o alívio que devem sentir os moribundos finalmente autorizados a fenecer.
Mas é da chuva que queria falar, não de como viro zombie em atmosferas de 30 ou mais graus e 100% de humidade.
Já fui feliz à chuva no Inverno, fazendo jogging ensopado como um náufrago escocês emerso do Loch Ness (e portanto com razões para correr), fazendo trekking com botas encharcadas que emitem barulhinhos ora constrangedores ora estupidamente cómicos como dobragens de filmes porno (mas não suficientemente sugestivos para um escroto alojado em boxers impregnados de chuva e frio), e, se recuar um pouco mais na biografia, também já fui feliz no Inverno chegando como um pito a casa vindo da escola com os pés enfiados em sacos plásticos dentro dos sapatos e pronto para café com leite, torradas, luz de velas e livros de Júlio Verne.
Gosto de apanhar molhas, como se vê, mas como não sou um masoquista indefectível, as minhas melhores molhas são as de Verão. Chuva quente é a minha ideia de Paraíso. Debaixo de borrascas estivais tenho reminiscências do Éden, como se cada cromossoma do meu ADN estremecesse de um prazer herdado de quando a humanidade tinha guelras e dava as primeiras braçadas no aquaworld primordial. Debaixo da chuva de Verão, de virilhas ensopadas, sinto-me feliz, purificado e nu como Adão e Eva. (Não duvidemos que estas figuras bíblicas existiram, só que, ao contrário do que pensa a religião, eram batráquios ou girinos sem nada pudendo a esconder.)
Mas se invoquei o tema chuva foi porque hoje me lembrei, não sei bem porquê, que uma das vezes em que fui feliz estava encharcado até aos ossos na Alemanha. Não encharcado e tremelicante como trabalhador meridional na suja neve teutónica, mas encharcado e esfusiante como vagamundo munido de moleskine e optimismo. Tínhamos descido do castelo de Stahleck, transformado em pousada da juventude e sobranceiro à pitoresca aldeia de Bacharach, por sua vez ancorada à margem do Reno. O Reno é ali o Douro da Alemanha, com os seus curiosos vinhedos de bardos perpendiculares às curvas de nível, mas inebria um pouco mais. Não porque os seus famosos brancos tenham mais teor de álcool, mas porque as suas paisagens urbanas têm menor teor de mau gosto. Fosse como fosse, talvez viéssemos um pouco tocados de Stahleck — tínhamos bebido um copo ou dois enquanto assistíamos a um ensaio da banda da juventude ali hospedada e não nos pareceu loucura caminhar os três ou quatro quilómetros para montante (até ao ancoradouro de onde partia o barco que fazia a travessia para a estação na margem oposta a tempo de apanharmos o nosso comboio para Coblença), mesmo que a chuva começasse a cair com intensidade e os nossos impermeáveis tivessem sido comprados na loja dos chineses que ficava no rés-do-chão do meu prédio em Portugal. Subimos o Reno encharcados e eu feliz, de calções e a chinelar como se a Alemanha ficasse abaixo do Trópico de Câncer, indiferente à distância e à chuva. Recordo-me que fiquei ligeiramente aborrecido quando parou de chover e o barco partiu a horas e vi que o nosso plano se iria cumprir, o que era bom, mas já não, o que era mau, sob uma chuva que aspergia como se os deuses, de luvas e galochas no seu jardim, se entretivessem a irrigar a felicidade dos homens.
Depois disso, fui então feliz à chuva nos arredores de Hué, viajando na traseira de uma motoreta e agarrado ao meu oriental como Leonardo DiCaprio a Kate Winslet (só que ele, o meu oriental, felizmente não largava as mãos do guiador para abrir os braços à proa e era eu quem tirava os chinelos dos apoios e levantava as pernas como se estivesse a vogar cinematicamente num Titanic meridional). Nessa tarde tínhamos ido ver templos funerários e no caminho de regresso havia ao longo da estrada telas de artistas plásticos, uma exposição de arte contemporânea a céu aberto que se afogava por uma hora ou duas e depois secava num instantinho, como tudo ali secava num instantinho excepto o meu suor.
Mais tarde fui ainda feliz à chuva em Roma, a correr para o metro acima da Piazza di Spagna e a ter tempo de achar afinal pequena e banal a Via dei Condotti que o guia dizia ser «a busy and fashionable street».
Em Paris não choveu, e eu que levava um kispo novo à espera de o estrear com o mesmo ânimo pueril e inconfessável de quando, adolescente, vesti em Agosto um kispo em segunda mão — herdado de um primo afastado e a cheirar a essências que não eram o sabão rosa lá de casa —, pela primeira (e última) vez impaciente pelo Inverno, só porque tinha caído uma chuvita de Verão antes da missa.

Levava também, em Paris, o moleskine que me foi oferecido como ferramenta de escritor mas que uso apenas para anotar despesas e coisas práticas.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Futuro próximo

Devido a uma mudança de fornecedor de serviço de internet que implicou a instalação de mais parafernália informática do que a que na realidade necessito, fiquei com uma tal quantidade de luzes a piscar na secretária que sinceramente não sei se a minha sala vai entrar em órbita daqui a pouco ou se o mundo vai explodir dentro de trinta segundos. Só não fico apreensivo porque há algo de sedutor em ambas as hipóteses.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A insustentável leveza da pubescência

Talvez houvesse também razões musicais, mas parece-me que na disputa entre Spandau Ballet e Duran Duran eu preteria os primeiros porque pareciam demasiadas vezes vestidos para casar (ou ser padrinhos de casamento), enquanto a mistura de farrapada punk e marinheiro russo que frequentemente cobria os segundos os tornava românticos aos meus olhos adolescentes. Mas românticos de aventuras, não do coração. Afinal, na altura eu também preferia a Rama de Arthur C. Clarke à Praga de Milan Kundera. E ainda revirava os olhos nas cenas de beijo dos filmes, fazendo mentalmente zapping para Mad Max.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Tudo o que era certo e errado

«A minha mãe nasceu num casebre com piso de terra e duas divisões, numa das quais vivia o gado, uma vaca e um burro — suponho que há pouca originalidade nisto, disse eu. Jantava com Leonardo num restaurante novo e gastei pouco tempo a estudar o espaço, um japonês de asséptico minimalismo. É fastidioso tentar perceber o que cresceu mais depressa, continuei, se a família se o número de animais, mas ainda que ambas as expansões denunciassem uma certa prosperidade, isso não aproximava a infância dela dos padrões mínimos de conforto que hoje reivindicamos, nem acrescentou compartimentos à casa, à excepção de um telheiro sem paredes. Com oito anos e três irmãos mais novos viu-se investida de responsabilidades maternais e mandada diariamente para os montes atrás de uma pequena manada de vacas indolentes. Não sei se há um momento limite para a salvação — se decidirmos considerar que retirar alguém de um mundo rústico daqueles salva —, mas o resgate da minha mãe aconteceu talvez um pouco tarde, deixando-a num limbo entre duas existências. Não era demasiado tarde para alguma escolaridade, mas havia já uma vida de memórias indeléveis, todas efectivamente marcadas na pele.
Leonardo estava a gostar do peixe cru; eu aproveitava a minúcia que os hashi permitem para debicar como alguém devoto de uma filosofia ascética. Andei muitas vezes pelo território onde ela guardara gado, disse, mas só no fim senti ter incorporado um pouco daquela experiência. Faltava-me, claro, a herança genética, e de todas as versões da história a única que me penetrou com força foi a última, quando ela se despiu de vaidades, de vergonhas, quando deixou de interpretar ou justificar a sua própria vida e, solicitada pela velhice, apenas reviveu, com distanciamento, ou talvez com alegria feroz, um conjunto de factos.
Creio que há uma certa justiça na senilidade, dei por mim a dizer, em algum momento as pessoas deveriam sentir-se livres para falar de si próprias e das suas vidas sem o peso da moral. Claro que a minha mãe acreditava na vida depois da morte e por sua vontade deixaria as confissões e os ajustes de contas para o outro lado ou para a sua antecâmara, mas por vezes a biologia antecipa o alívio. A degenerescência convidou-a a esquecer a religião e a tomar as coisas pelo lado físico, brutal, que elas tinham representado para si. A destruição dos neurónios começou por aquele punhado deles que se ocupava das conveniências.
Também para mim era uma experiência inesperada, disse eu a Leonardo. Um ano antes de ela morrer, era uma outra mulher aquela que eu levava a revisitar a aldeia na montanha onde nasceu. O exercício do dever filial há muito deixara de ter significado para mim, mas de repente aquilo revelava-se algo diferente. Tomava-a pelo braço e sentia uma corrente de afecto, uma vontade de a abraçar e de a beijar, o que passei a fazer com uma frequência que não punha em prática desde a infância.
Também eu, por razões diferentes, tinha entrado num estado amoral, ou pelo menos associal. Vais-me censurar por dizer isto, disse a Leonardo, mas tive uma espécie de flirt com a minha mãe nos meses que ela levou a morrer. Era algo que não nos estava vedado, não éramos consanguíneos, não havia nenhum tipo de jurisdição sobre nós que não fosse pura convenção, e a isso já não ligávamos, enlaçávamo-nos apenas, nas encostas da sua infância, ela a achatar camadas de memórias e eu, galante, ao serviço da rapariga em que ela se transformara.
Dançávamos, porque, ao mesmo tempo que recordava cada uma das vacas que pastoreara, lhe vinham memórias de bailes em que não participara, ou que aproveitara pouco. A dança era, aliás, logo a seguir ao canto, uma parte fundamental da sua existência, dizia-me ela e dizia eu a Leonardo. Achava-se uma tola por algum dia ter sentido timidez, ligado às conveniências, dado prioridade aos deveres. Havia um filme, como se chamava?, dizia a minha mãe, em que uma moça bonita cantava e dançava nas montanhas da Suíça. Eu sabia que era na Áustria, Música no Coração, mas que importavam estas clarificações quando me podia limitar a rodopiar com ela nos braços, bebendo da sua felicidade, zelando para amortecer as suas quedas?
Ali em baixo, dizia a minha mãe à vista das ruínas do casebre onde crescera, ali em baixo não viviam pessoas, viviam animais. Não digo isto com mágoa nem nostalgia. Era assim. Éramos assim. Agíamos por impulsos e necessidades, como o gado do outro lado da parede. Quando vi o meu primeiro lobo, aqui mesmo onde estamos, senti medo, claro, ia nesse sentido a escassa instrução que tínhamos, mas também me achei em pé de igualdade com ele. Durante toda a vida pensei nestes encontros como se fosse uma pobre criança indefesa à mercê de uma fera sem compaixão, mas ultimamente vejo as coisas de outra forma. Sabes, dizia a minha mãe e repeti eu a Leonardo, acho que agora me lembro melhor de tudo. Eu não ficava petrificada, nem os lobos estavam convencidos da sua superioridade. Medíamo-nos com respeito e curiosidade, muita curiosidade, e depois eu pensava que tinha de proteger as vacas, que tratava pelo nome próprio, e de me salvar de uma sova em casa: pegava em paus e pedras e gritava-lhes, aos saltos, como aqueles chimpanzés da televisão. Podes-te rir, não me envergonho da comparação, eu era pouco mais do que uma macaquinha, trepava às árvores e nadava nua no ribeiro — depois é que tive de aprender tudo o que era certo e errado.»

in Hotel do Norte

'Teoria Geral do Verão'

«Mário foi o primeiro a chegar. Acordou com o dealbar do dia. Na verdade, quase não dormiu, sentia demasiada excitação. Estar ali era como ter congeminado um teorema e ser-lhe oferecida depois a oportunidade de o testar e demonstrar ele mesmo. Já tinha um nome para aquilo, passou a noite com ele na cabeça: Teoria Geral do Verão. Basicamente, a sua ideia postulava que não havia felicidade na chuva, no vento, no frio, nos dias cinzentos e ensimesmados. O estio era o quinhão de paraíso que Deus legara à Terra, um vislumbre do que esperava na outra vida os bons, os justos, os impolutos. Era talvez também a manifestação do Seu sadismo, permitia-se Mário pensar, já que Ele sabia como falhara com o homem. Desvelar o paraíso era como mostrar imagens de fontes e lagos suíços a um moribundo no deserto africano ou deixar um suculento naco de carne meros centímetros fora do alcance da corrente de um cão esfaimado.
Tinha havido alguns erros no desenvolvimento humano, no seu desenvolvimento biológico. Havia tanto que aprender com aves, répteis, insectos. A selecção natural falhara ao fazer do homem um animal sedentário. Não tardaria a perceber-se porque definhava a civilização ocidental, por que é que o Hemisfério Norte se fazia triste e evitava reproduzir-se. Por que se suicidavam os nórdicos (por enquanto eles). Séculos de saber acumulado e ainda não havia uma solução para o mal-estar. E era tão simples: migração sazonal ou hibernação.
Lembrava-se de um episódio: dois casais de patos a esvoaçarem sobre uma albufeira. Talvez não fossem dois casais, podiam ser quatro machos ou quatro fêmeas, ou três de um género e um do outro, quem saberia dizê-lo? Era um daqueles dias de Outono apelidados de perfeitos, um dos que se rejeitariam na Primavera ou no Verão (demasiado frios e cinzentos, com o maldito nevoeiro a ameaçar cobrir tudo) e que pela sua pouca dureza seriam ignorados no Inverno, mas que, com um fundo de folhas coloridas e uma promessa de lareira, pareciam irrepetíveis. Mário estava com o pai e lembrava-se de o ver subir a gola do casaco ao mesmo tempo que falava de castanhas assadas e vinho tinto. Ali, ao seu lado, trinta anos antes, com a elegância enfiada num fato de três peças e camisa branca, o cabelo submetido pela brilhantina, o pai de Mário explicava que o pato selvagem era uma espécie rara naquelas paragens e a lagoa era apenas uma estação de serviço onde eles se detinham para abastecer no caminho para África, para terras mais quentes. Mário a tremer de frio e desconforto, insensível à beleza outonal, invejou a inteligência dos patos.
O europeu era intrinsecamente estúpido: rumava a sul no Verão e procurava a neve no Inverno, quando o que devia estar a fazer era aprender com as aves, descer uns quantos paralelos à medida que os dias diminuíam e regressar logo que as plantas ameaçassem florir. Claro que este tipo de migração em massa enfrentava obstáculos severos, por mais que os serviços de turismo do Magrebe esfregassem as mãos. As grandes deslocações de Estaline não tinham ficado bem vistas (mas essas não incluíam bilhete de volta); contudo, pondo de parte a engenharia social, ainda havia a biologia, a hibernação induzida. Se o homem, no seu longo percurso evolutivo, recusara um metabolismo como o dos ursos, estava ainda muito a tempo de se reencontrar por via científica com esse ramo da família. O que não se pouparia em recursos se a Europa adormecesse no Inverno. E o que se ganharia em felicidade social se todos saíssem do quarto apenas em Abril ou Maio, quando o Sol mostrava finalmente músculo.»

in Aranda

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

13/9 ou a arte de procrastinar resolvendo sudokus

Gostaria de poder dizer que sou um daqueles procrastinadores que o filósofo John Perry considerou “produtivos”, aqueles que enquanto adiam indefinidamente uma tarefa realizam muitas outras igualmente importantes. Não sou. A não ser que se considere importante resolver sucessivas colectâneas de Sudoku Master.
A minha pilha de livros para ler só não aumentou porque desde que há crise quase não tenho comprado livros. Em contrapartida, a minha pilha de livros por escrever aumentou consideravelmente. Não porque ande a coleccionar apontamentos de ideias para romances ou ensaios (o sudoku não me deixa tempo para isso), é só a idade a acumular-se sem que daí resulte obra.
Para bem da minha sobrevivência física, sou tecnicamente incapaz de procrastinar no emprego (qualquer coisa genética, herdei do meu pai isso e a rabugice). É só ao chegar a casa que adopto o hedonismo pessoano de ter um livro para ler (ou escrever) e procrastinar. A coisa está tão grave que já não compro o Público ao fim-de-semana, como antes, por causa do Ípsilon, da Fugas ou da 2, mas porque é nesses dias que saem os sudokus de maior grau de dificuldade (que naturalmente me farão perder mais tempo).
Nem me posso defender dizendo que a ginástica dos números me foi prescrita pelo meu intelectual trainer: passar a noite naquilo não me põe mais ágil na tabuada (continuo bastante dependente da calculadora) e definitivamente não acordo com a mente mais preparada para as obrigações do dia. Procrastinar por interpostos sudokus é antes um vício tão alienante como a coca. O hábito poderia ter-me sido prescrito, isso sim, pelo meu psicanalista, com o intuito de me fazer limpar a mente depois de dias intensos de trabalho (como faz o resto dos portugueses, submetendo-se ao brainwashing da TV). Ou melhor: a sudokumania é coisa que recomendariam no Conde Ferreira ou no Magalhães Lemos: terapia ocupacional para distrair os malucos de fazerem maluquices. Sim, que disparates não teria eu escrito se não tivesse passado o Verão a preencher números em linhas e colunas?

Quando terminei de escrever Os Idiotas (que, a propósito, fez sexta-feira um ano e é a única razão para ter escrito este post), senti que tinha finalmente atingido a maturidade, estava pronto para ser o Wallace português (ou o Franzen, pronto*). Mas senti também que a probabilidade de falhar nisso era muito, muito grande. O sudoku, temo bem, é apenas um dos meus álibis para não arriscar falhar.
* Também gosto de passarada e na verdade não sou lá assim muito de notas de rodapé.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O regresso da cantora careca


Ontem e hoje assisti no Youtube a dois regressos: U2 e Sinéad O’Connor. Sendo um genuíno filho dos eighties, não fico indiferente a notícias que se relacionem com gente desta. Mas ouvi com total indiferença a “nova” música dos U2 (indiferença não, um tédio assassino) e com bastante curiosidade a da Sinéad. “Take Me To Church” entusiasma, raios!, apesar do final fraco e de a imagem da cantora, pareceu-me, não ter escapado ao Photoshop, ou ao equivalente em vídeo ou maquilhagem.
Nos últimos anos, sempre que calhava cruzar com Sinéad O’Connor no Youtube, assistia com certo embaraço (e desapontamento) a entrevistas um pouco constrangedoras de uma senhora de meia-idade desnecessariamente gorduchita, notoriamente aborrecida e até ressentida por estar a dar entrevistas ou a apresentar canções, quezilenta, a responder com dissertações esotéricas ou implicativas, desagradáveis, a questões banais sobre a sua música. O anjo que conhecêramos quando adolescentes lamentavelmente desaparecera sob o diagnóstico de distúrbio bipolar que Sinéad um dia revelara de si mesma. A cantora careca — pensava eu, definitivo —, envelheceu mal.
Mas o adulto que agora somos compreende na pele isso de envelhecer e aprecia novos fôlegos do talento, mesmo que breves e isolados, quando os ouve. Era este o meu espírito quando, espevitado pelo vídeo, fui espreitar o álbum completo (“I’m Not Bossy, I’m The Boss”), disposto a perdoar aquilo do Photoshop. Mas eis que, junto com várias outras canções bem inspiradas, no lugar de um anjo caído deparo com uma gloriosa Fénix. (Depenada, é certo — mas neste particular quem esperaria outra coisa?)
Os vídeos de entrevistas e concertos que agora me surgem nos lugares cimeiros do Youtube mostram uma Sinéad O’Connor coberta de hieróglifos e Cristos de Cecilia Giménez, sim, mas de novo elegante, simpática, comunicativa, assertiva, aguerrida, coerente, bem-disposta, exibindo empatia com o público e os entrevistadores. A interpretar com gosto as suas mais recentes canções e a emocionar o público e os voyeurs do tube.
A Wikipedia diz que a cantora já há uns anos tinha desmentido o seu próprio diagnóstico de distúrbio bipolar, mas isto não me parece credível. Por definição, o novo momento da cantora desmente-o, aliás. O que me parece é que, para bem de todos os fãs, finalmente alguém acertou na medicação. Passem a receita ao Bono.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O apêndice marital

É tristemente irónico que Siri Hustvedt, escritora de talento, erudição e densidade intelectual, com obra e reflexão sobre preconceito de género, seja apresentada em Portugal como esposa de Paul Auster. Percebo o atractivo comercial da informação, mas, quatro livros depois — o penúltimo intitulado “Verão Sem Homens” e o último versando sobre «os preconceitos que imperam no mundo da arte» — quatro livros depois, perturba que a D. Quixote continue a incluir nas badanas o apêndice marital. Quantos escritores masculinos são apresentados como maridos de não sei quem? Eu, se fosse a Siri Hustvedt, mandava passear a D. Quixote no próximo livro. Se a editora não consegue vender-lhe as obras pelo mérito ou se os portugueses não as compram senão pelo popular marido, não a merecem. E, claro, não a entendem.

Os homens sobre as mulheres

Noto como intelectuais, escritores e homens afins se assemelham ao cidadão comum no que se refere a considerarem as mulheres uma coisa à parte (ainda que não exactamente, ou não sempre, com um intuito discriminatório).
Quando denunciam a seu espanto, a sua estranheza, a sua admiração, a sua permanente perplexidade com as mulheres parece-me que estão, com frequência, a revelar o quão pouco ou distantemente convivem com a variedade feminina.
Não há isso de as mulheres serem assim ou pensarem assado. As mulheres não são um grupo homogéneo, como os homens o não são. Não são mais agrupáveis entre si do que com homens. É possível agregar pessoas por graus de afinidade psicológica, mas disso não resulta que tenhamos mulheres aqui e homens ali.
Quando Pedro Mexia escreve que «o gosto das mulheres nem sempre é compreensível, mas raramente é infundado» não está (e ele sabe disso) a falar das mulheres, mas de algumas mulheres, daquelas que lhe são próximas, física, intelectual, ou, diria, oniricamente.
Quase tudo o que os escritos masculinos sobre mulheres dizem pode ser aplicado com propriedade — e não necessariamente com promiscuidade — a uma quantidade não desprezível de homens. As mulheres são apenas, tradicionalmente, convencionalmente, o outro mais confortável para a discorrência masculina. (Não raro são o biombo de outro outro, mas isto já é derivar.)
Séculos de confessionalismo masculino sobre as mulheres resultaram nisso a que também se chama poesia, uma espécie de obscurantismo de divã que, em obediência a uma teoria institucional da arte (masculina, naturalmente), foi como arte validado.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Já ninguém lê o Tio Patinhas no Verão

«Já ninguém lê o Tio Patinhas no Verão e não sei bem o que fazem os putos no Verão. Talvez ainda joguem às cartas, mas para o Patinhas já não têm tempo. Fico às vezes a vê-los, todos iguais, como clones saídos de uma máquina que tivesse sido inventada para fazer face à crise demográfica. O mesmo cabelo cuidadosamente despenteado, os mesmos ténis de marca, as mesmas t-shirts, as mesmas calças de ganga pré-rotas — porque eles já não rompem os seus próprios jeans, não os vestem durante tempo suficiente para que eles se rompam, têm de os comprar previamente esgaçados. É a geração MTV, diz-se. Mas pergunto-me se a nossa não era também uma geração qualquer coisa — pós-punk, new wave, dos primórdios do videoclip, ou ainda não isso, a geração jornal Sete, algo do género. Seja como for, quando se é adolescente sente-se uma necessidade grande de copiar, e nem sempre se copia o melhor ou o mais adequado. Sabemo-lo quando regressamos de uma desintoxicação e temos a certeza que vamos recair, porque algures lá atrás experimentámos qualquer coisa que era imensamente fixe mas trazia inclusa a receita da nossa destruição.
Os montes em Aranda ardem com admirável regularidade e o vento percorre o vale como se soprasse num túnel. Nessas alturas recebemos na cara o seu bafo quente, impregnado de cheiros, e eu por vezes penso em corpos cremados, milhares de fantasmas arrancados do solo, e é a energia deles que nos toca, são as cinzas deles que vemos cair no chão da varanda, as suas memórias que nos visitam e avivam as nossas.
Passaram três carros particulares para o hipódromo, mas foi o táxi o que mais me intrigou. Um perfil, um rosto, os cabelos ondulados. Era uma lástima que não pudesse distinguir-lhes a cor, a cor dos cabelos, como tinha sido uma lástima deixar de ver o casaco vermelho do Tio Patinhas, o dólman azul do Pato Donald, a camisola amarela do Peninha, a laranja do Pateta, as penas verdes do Zé Carioca, toda a paleta viva saída dos lápis de Walt Disney.
A cor era uma das componentes das trips: voltávamos às drogas também pelas explosões de cor, pelas cornucópias e espirais psicadélicas, os abismos e túneis curvilíneos, labirínticos, os milhares de cintilações e raios, um firmamento extático que a natureza não podia copiar, porque com as cores vinham sensações físicas fabulosas, elas agiam como agulhas na acupunctura, cada cor o seu prazer; e não havia tempo, ali, cronologia, era um hiato infinito. Não tínhamos como saber que as visões fantásticas que desfrutávamos eram o nosso próprio cérebro a explodir, os neurónios que queimávamos, a fissão das sinapses. Andávamos nos ácidos e chutávamo-nos para ver por dentro o fogo-de-artifício na nossa cabeça e não o sabíamos; o cavalo era o bilhete que comprávamos para assistir ao vivo e em directo à auto-destruição da mente.
Depois veio uma tarde como esta, à varanda, Verão, a nostalgia benigna de mergulhar numa aventura do Tio Patinhas. E as cores a esbaterem-se, a desaparecerem, como se alguém tivesse escolhido a opção transformar em escala de cinza do Photoshop. O universo Disney a preto e branco, como algumas histórias em certas edições mistas. Mas não adiantava virar as páginas, avançar ou voltar atrás até aonde havia cor; de repente toda a edição estava descolorida, a própria capa, em papel brilhante, plastificado, era cinzenta.
Talvez não tenha sido assim de imediato, talvez eu tivesse perdido as cores de forma progressiva. Como o cabelo: não recordamos cada centímetro que ele cresce, mas sabemos, na altura de o cortar, que um dia o tivemos curto. Ou, se formos carecas, não recordamos a queda, mas a cabeleira que deixámos de ter. No entanto, é desta forma que eu lembro as coisas, num momento o mundo era normal e no seguinte parecia um filme do Frank Miller, redundante como um filme de Frank Miller. A vida já era suficientemente soturna, não havia necessidade de sublinhar o facto com o preto e branco. Eu percebo que os espectadores dos filmes precisem de uma representação gráfica da atmosfera para melhor entenderem a ideia, mas eu não era um espectador, não observava de fora.
Acromatismo. Havia os daltónicos, que confundiam o verde com o vermelho — coisa chata em dia de derby desportivo ou quando se esquecia a ordem das luzes num semáforo — e havia eu, um caso extremo e raro de discromatopsia. Não era apenas estar na merda, olhar em volta e ver tudo cinzento como num dia de chuva. Não era alucinação, supondo-se que há alucinações descoloridas. Não era passageiro. As substâncias químicas têm destas coisas, ninguém sabe muito bem o alcance dos seus poderes, como algumas personagens da Marvel. Um dia salvam a humanidade de ameaças terríveis e no seguinte caem em desgraça e destroem tudo aquilo em que tocam. Eu conhecia (e apreciava) enredos destes — não contava era ser vítima de um deles.
Ruivos. Adivinhei-os ruivos, aos cabelos que passaram na parte de trás do táxi. Tão ruivos que evocavam os montes em chamas de Aranda e tão ruivos que me doía a alma por não os poder já ver desta forma.»

Pedro, in Aranda

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Deserção à hora do chá*

«Os escritores ingleses são todos snobs
«Pois eu queria ser um escritor inglês. Nem precisava, aliás, ser escritor. Inglês snob era suficiente. Ou apenas snob. Um snob convicto, sem escrúpulos nem clemência, em vez de português suave com filtro. Da próxima vez que der por mim com rosadas pretensões tugas, faço-me um ultimato britânico, juro. Antes a cor do sangue que o apelo do sangue, if you know what I mean


* Diálogo de uma novela por escrever.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Considerações sobre o bacalhau

Nunca, na minha vida civil, estou preparado para um aperto de mão. Quando se vive uma existência ensimesmada, o exuberante comércio social que é o aperto de mão surge inesperadamente, de súbito, como uma bala no campo de batalha (nunca estamos preparados para uma bala, nem num campo de batalha, há toneladas de bibliografia a asseverá-lo).
Resulta que a extremidade que estendo em reacção a um cumprimento, mesmo quando o faço de bom-grado, se apresenta geralmente frouxa, é apertada sem chegar a apertar. Nos melhores momentos, naqueles em que não dou choques eléctricos e consigo tempo para invocar o conceito de aperto de mão, estalam-me as falanges e os ossos do pulso no exercício de tentar que o destreinado conjunto se configure na posição correcta. Num ápice a minha mão direita é esmagada sem oposição (quando do outro lado está um culturista ou um operário) ou humilhada (quando acomodada num cumprimento competente, franco). Conheço pessoas assim, cujos bacalhaus me embaraçam, pela assertividade férrea ou pela afabilidade uterina com que acolhem os meus metacarpos. E invejo-as, sobretudo as segundas. Sim, invejo as afáveis. Um cumprimento triturador pode ser involuntário (num madeireiro habituado ao machado), mas é frequentemente exibicionista, uma pueril forma de cotejamento, não raro uma pré-declaração de guerra. Pelo contrário, um aperto de mão afável, acomodatício, ergonómico, envolvente e restaurador como uma massagem é gesto de quem vive em estado de graça. Ou é como a ironia em quem a sabe usar. Um gesto de verdadeira superioridade.
Ah, não ser um desses que levitam enquanto dão apertos de mão; dar mais cinco como quem unge Lázaro ou administra a extrema-unção. Ah, não ter sido bafejado com uma anatomia sociável, mãos como berços em vez de apêndices desajeitados, misantropos. Antes mãos de tesoura — e podia ganhar sossegadamente a vida a podar sebes. Afinal, ninguém estranha a soturnidade num jardineiro.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

A constante da equação


Entre uma foto e outra passaram dois anos. Na primeira, de 2012, o livro era A Informação, de Martin Amis. Na segunda, actual, o livro é Os Velhos Diabos, de Kingsley Amis.
Há duas ordens de leitura possíveis para estes livros — por data de edição ou por idade dos autores e dos protagonistas —, mas só uma é cronologicamente correcta.
Há também inúmeras formas de os ler, mas só uma nos salva deles. É que ambos são divertidos, mas a matéria de que fazem uso (a vida) não o é assim tanto, se levada a sério. Não caia na asneira de os ler na cama ou no sofá lá de casa. É necessário descer ao sol promissor do Alentejo e enfiarmo-nos em calções curtos numa piscina infantil, se quisermos sair verdadeiramente risonhos de ler os Amis.

Publicado originalmente em 1995, quando Martin tinha 46 anos, A Informação trata de gente na casa dos quarenta. Os Velhos Diabos saiu antes, em 1986, tinha Kingsley 64, e fala de sexagenários. Martin, que tem agora 65 anos, há-de andar desesperado para não escrever um romance demasiado parecido a Os Velhos Diabos. Ser-lhe-á difícil. Não porque esteja condenado a imitar o estilo do pai — mas porque a vida (a tal matéria literária) não muda, verdadeiramente. Da minha relativa juventude, prevejo que não difere muito ser-se sexagenário em 1986, 2014 ou 2034. Daqui a vinte anos eu próprio estarei a ter as minhas dificuldades para não publicar uma imitação de Os Velhos Diabos.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Rule, Britannia!


Ordenar cavaleiro um escritor era matá-lo. Aos meus olhos.
Sir Kingsley Amis soou-me sempre demasiado pomposo e isso manteve-me à distância. Não admira que os livros do filho tivessem degenerado, imaginava eu. Quem suporta um pai hierático, com assento no panteão? Um tipo torna-se pornógrafo ou bombista, algo que ofenda a moral paterna, se tem de viver à sombra de um pai destes.
Entretanto, deu-me para ler Os Velhos Diabos do Amis sénior e tive de reconsiderar. A luta de Martin com o pai, percebo agora, foi de outro cariz. Não teve de o afrontar — teve de o suplantar. Na prosa e na corrosão. Amis pai é Amis filho adiantado umas décadas e um pouco menos à-vontade com palavrões.
Kingsley Amis, descobri com espanto e embaraço, de sir (na acepção palaciana) só tinha o título, no resto era um de nós, disfuncionais e reles humanos. Alguém que vale a pena ler, portanto.

Ordenar cavaleiro um escritor é dar-lhe um lustro despropositado, afastar leitores avessos a salamaleques. Em alguns casos é mesmo ridículo. Ou então, ordenar cavaleiro um escritor é um gesto de uma civilização superior. Se calhar é isto e eu é que estou demasiado habituado a ser tuga.

P.S.: Sim, talvez haja algo a dizer sobre esta estranha propensão para ler os Amis numa piscina infantil.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Ouroboros (ou Vai haver cachaporra!)

[Foto de Renato Roque]

Depois de uma conversa com o senhor da foto, em 2012, achei-me tolamente incumbido de escrever uma sinopse de uma peça. Duas semanas mais tarde, à falta de outra inspiração, fi-lo — e a seguir, encorajado, comecei a escrever o livro que o senhor lê. A peça tinha um bordão — «Vai haver cachaporra!» — que é capaz de se cumprir quando ele descobrir que roubei a foto para aqui expor. Mas ao tropeçar há um bocado nela pareceu-me inevitável publicá-la. A imagem é bonita e (para mim) perturbadora, como se o R. tivesse vindo ao futuro ler a obra que de algum modo começou a germinar na conversa que tivemos. Os gregos chamavam a isto ‘ouroboros’, a serpente que morde a própria cauda, ou coisa assim. Eu vou chamar-lhe o fim de um ciclo, forma ingénua de convocar de novo as musas. (É mais bonito do que ameaçar-me com uma cachaporra; duvido, porém, que mais eficaz.) 

quinta-feira, 17 de julho de 2014

O estado do trânsito

Comparado com o resto do parque automóvel português, o meu Chevrolet parece um arraial minhoto. Não porque eu seja um adepto do tuning; apenas porque uso com bastante regularidade os piscas. Em cruzamentos e rotundas, por exemplo.
Na verdade, o meu carro não é feérico — os restantes é que são, de um ponto de vista eléctrico, sombrios, como electrodomésticos no blackout americano de 65. Ou lúgubres, do ponto de vista do código da estrada.
Os únicos momentos em que não pareço conduzir um carro alegórico no meio de um desfile de incônscias limusinas funerárias são os dias vitoriosos da Selecção, do Benfica* ou de um partido do arco governativo, quando naquele trânsito cintilante o meu utilitário parece de súbito circunspecto. Até fúnebre, é justo dizê-lo.



* Ou Porto, riscar o que não interessa.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Voyeurs

A propósito dos voyeurs do post anterior: o provincianismo lisboeta habituou-se a pensar que os melhores deles, dos voyeurs, literariamente falando, andam pela Baixa Pombalina, por Alfama, pelo Bairro Alto, por Alcântara ou lá por onde acha que andam. Uma das virtudes da Internet foi mostrar-nos que não, rapaziada, vocês apenas têm mais gente a aplaudir nos cocktails e mais sedes (não subestimem a polissemia) de redacção. O vício, esse, está mais disseminado. Já aqui falei de alguns belíssimos devassos e um destes dias acrescento mais à lista. Para o caso de interessar a alguém.

Humans of New York and everywhere

‘Humans of New York’ é uma página de Facebook que quotidianamente publica fotografias de nova-iorquinos na rua adicionando-lhes pequenas histórias ou declarações das pessoas fotografadas. As citações são por vezes apenas curiosas, mas não raro são surpreendentes revelações de mágoas, traumas, fobias, ódios, tragédias e até crimes, mas também testemunhos de alegrias, sucessos, epifanias.
A página não é exactamente anónima (mais de 7 milhões de seguidores, número quase equivalente à população da cidade), pelo que é possível que muitas das confidências sejam forjadas. Mas como aquilo se passa em Nova Iorque, cidade com tanta e tão variada fauna, não custa acreditar que muitas das pessoas acedem verdadeiramente a que se lhe tire o retrato e roube a alma. Who cares?, dirão.
O exercício é voyeurista, mas não mais do que o dos escritores que bebem imperiais, taças de vinho ou, nos casos mais nobelizáveis, café e bagaço nas esplanadas e fingem compor poemas. Brandon, o autor da página, é apenas um pouco menos passivo e um pouco mais latoso do que o comum dos Pessoas.
Na verdade, a página é um catálogo de tipos e tópicos humanos. Um gajo que queira escrever um romance mas esteja sem tempo para ir para a rua fazer trabalho de campo pode limitar-se a colher do iPad as personagens e a base do enredo. Depois é só esconder a fonte e escolher um lugar à sombra no Parque Eduardo VII em Maio.
Eu próprio dei por mim a pensar uma ou outra vez que o assunto para mais um romance estava ao alcance de um clique (e com sorte o Brandon era suficientemente porreiro para ceder os direitos da foto para a capa). Contudo, os ladrões têm uma ética, como se sabe. Ladrão que rouba ladrão até pode ter cem anos de perdão, mas os melhores, os mais genuínos, preferem o picante e o correspondente Inferno de roubar as suas próprias histórias. Be aware.

domingo, 6 de julho de 2014

É caro e ineficiente manter o interior: encerra-o e deita fora a chave

Vasco Pulido Valente costuma dizer que este Governo não é neoliberal, e de facto talvez Passos Coelho não tenha conseguido ir tão longe quanto a casta desejaria em algumas áreas. Mas em várias medidas já concretizadas e em muitas outras planeadas o menino-cantor, com a sua melena beta e ar de sacripanta, é merecidamente o orgulho dos thatcherianos meridionais e setentrionais. É, por exemplo, um empenhado darwinista social (sector privado contra função pública, professores contra professores, jovens contra velhos, tudo tem promovido) e só não encerrará definitivamente o interior se o interior, por vezes tão irritantemente tradicionalista e atávico, não recuperar por um dia velhos hábitos e não se munir de varapaus e chuços para o correr daqui para fora da sua zona de conforto.

A propósito disto: 

domingo, 22 de junho de 2014

Elogio da impassibilidade

O suspense, a expectativa, os sustos, a angústia, as frustrações de assistir a um jogo de futebol têm uma certa equivalência aos prazeres da melancolia. Com a diferença de que no futebol ninguém suporta perder e na melancolia isso está implícito. Tive estes pensamentos enquanto antecipava gostosamente uma noite de mortificação em frente à TV, mas amigos muito mais ligados ao futebol do que eu dizem-me coisas como: «hoje, torcer pela selecção é mais ou menos como torcer pelos banqueiros, torcer por um negócio de outros que circunstancialmente são nossos compatriotas e usam as nossas cores». Postas as coisas nestes termos, se assistir ao jogo, fá-lo-ei de modo clandestino, anelando patrioteiramente (e por traição de classe) a vitória e reconhecendo maior justeza social na derrota.
Devo confessar ainda que a derrota me é mais conveniente também porque tenho ouvidos sensíveis e uma certa aversão estética a desfiles de carros buzinando inglória e jactantemente, como limusinas em Adis Abeba.
Ah, que saudades de sermos o povo melancólico que às vezes dizem sermos, impassível na vitória como na derrota.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O Tua e a sua canção (ou)vistos pela nova direita

Um grupo de artistas dedicou uma canção ao Tua. A Helena Matos já deverá estar a escrever no pravda da nova direita um artigo a defender que se afogue não só o vale como os artistas. Se faltavam motivos para construir a barragem, dirá ela, agora temos um. João Miguel Tavares, pelo seu lado, pessoa sensível, aumentará o caudal do Tua com uma lágrima ou duas pelo vale e pelos artistas, mas lembrar-lhes-á a sua culpa por canções e paisagens belas serem actividades condenadas num Portugal falido.
Pedro Lomba dirá num briefing falhado que os artistas deviam era estar a contribuir para a demografia fazendo filhos enquanto a água não os cobre. Poiares Maduro tentará tirar-lhes o subsídio de férias e Passos vender-lhes uma formação em aeronáutica que lhes permita emigrar a partir de qualquer aeródromo das redondezas. Que os há-de haver.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Lição n.º 1

Muitas pessoas (e tantas delas são gente da informática ou das novas tecnologias) pensam que regras e convenções da escrita são uma espécie de capricho de gente conservadora, quando não uma demonstração de intolerância ou fascismo em relação a quem tem uma atitude mais «descontraída» com a língua e a escrita. Suponho que essas pessoas lêem pouco, ou apenas lêem o que escrevem. Ou ignoram regras e convenções quando escrevem porque na verdade se estão nas tintas para quem as vai ler.
O problema é quando algumas destas pessoas escrevem textos que, por uma razão ou outra, nos vemos forçados a ler. A sua forma «descontraída» de escrever geralmente significa que nós não vamos ter uma leitura descontraída, mas trabalhosa, aborrecida, tentando decifrar a sintaxe para conseguir chegar à semântica. Irrita-me quando antes de perceber a ideia ou argumento tenho de parar para perceber a frase. E irrito-me mais quando, depois de finalmente perceber a frase, descubro que não há uma ideia ou argumento (o que também é frequente).
Os praticantes desta «escrita descontraída», mesmo que pensem o contrário, são meros principiantes das letras e da comunicação. Não se relacionam suficientemente com a língua e a linguagem para perceber duas coisas:
1) Que as frases que escrevemos saíram da nossa cabeça e, por isso, somos capazes de entender facilmente um texto nosso, mesmo que ele esteja descuidado, mal pontuado, sem acentos e que ao escrevê-lo lhe tenhamos comido uma parte das palavras. Quem alguma vez se deu ao trabalho de rever a sério o que escreve sabe que é assim.
2) Aquilo a que noutros escritores chamamos de «escrita simples» é geralmente uma escrita bastante trabalhada — e que não ignora regras e convenções. Este tipo de «escritores simples» trabalha arduamente os textos para que a comunicação resulte límpida, transparente, sem dar trabalho desnecessário ao leitor (a não ser o que resulta da compreensão das ideias expressas).
Meus amigos: aspas, acentuação, vírgulas, pontos, travessões, itálicos (em estrangeirismos e títulos, por exemplo), concordância em género e número, correcta conjugação e aplicação de verbos, escolha rigorosa de adjectivos, etc. não são coisas antiquadas, desnecessárias, descartáveis. Não são, sequer, caprichos estilísticos de escritor. São a essência formal da comunicação escrita. Se não têm nada a dizer, não escrevam. Se acham que têm alguma coisa a dizer, lembrem-se que estão a escrever para seres que não convivem intimamente com os macaquinhos que vocês têm no sótão.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Ao anterior inquilino deste domicílio tenho a agradecer uma frigideira que nunca usei e o não ter feito da varanda uma marquise. Estas horas não teriam sido iguais se ele tivesse sido mais tuga.

Love and War(paint)

Estas meninas já nos brindaram (à geração de 80) com uma bela versão de "Ashes to ashes" (Bowie) e agora têm o bom gosto de atacar "The Chauffeur" (Duran Duran). Conhecendo também os seus originais, só se pode amá-las. 

https://soundcloud.com/manimal-vinyl/warpaint-the-chauffeur-1/s-FYTII

Catástrofe

«também está um dia bom para apanhar peixe banana»
Adicionei o blogue há dias e agora acaba... Depois não querem que me sinta triste e amargo como o cavalo de Átila.

Problemas de habitação, no centenário de Sarajevo

No Verão de 2012, o jornalista Tim Butcher foi às profundezas da Bósnia-Herzegovina procurar a casa de Gravilo Princip, o assassino do arquiduque Francisco Fernando da Áustria. Quando encontra o que resta dela, pensa:

«Aquilo era uma casa europeia habitada por uma família inteira no início do século XX, mas fazia-me lembrar as choupanas com que me deparava frequentemente na África rural. O princípio era exactamente o mesmo: um chão de terra batida numa habitação construída com paredes de pedra, sob um telhado feito de madeira, colmo ou ramos apanhados localmente. Uma taxa de mortalidade infantil que podia matar seis dos nove filhos da família Princip soava mais a África do que a Europa. O mundo desenvolvido podia desesperar perante os problemas sistémicos da África moderna, mas estar ali, naquele jardim de Obljaj, ensinou-me como grande parte da Europa estivera recentemente em situação similar.»*

Duas décadas depois da morte de Gravilo, a minha mãe crescia numa casa similar à do sérvio-bósnio que serviu de gatilho à Primeira Guerra Mundial. Um compartimento de terra batida para a família, um compartimento adjacente com chão de carquejas para o gado. Como Gravilo, a minha mãe cuidou dos animais em criança, afastou lobos com paus e pedras. Não abateu nenhum arquiduque no final da adolescência, mas um dos seus filhos escreveu um romance onde se fala de «terrorismo inteligente».

Descontada a boutade pateta, há decerto uma maldição sobre domicílios impróprios. Resolver problemas de habitação é talvez um bom exorcismo para casas-assombradas. A Europa devia lembrar-se.  

* A partir do muito interessante excerto de O Gatilho, de Tim Butcher, publicado na LER de Junho.

Golo da Costa Rica

Não foi uma excentricidade como ir ao Solar Transmontano, mas perdi a cabeça e gastei doze euros numa churrasqueira. Por vezes, o bilhete para observar a vida selvagem sai caro.
O empregado perguntou-me o que estava a achar do Mundial e eu não dei parte de fraco: aqueles cinco a um da Espanha eram qualquer coisa… Passei no teste sem ter de explicar que coisa eram os cinco a um. De seguida chamaram-no a outra mesa e também não tive de opinar sobre o Uruguai x Costa Rica que se disputava no plasma (cujo resultado tinha espreitado preventivamente enquanto ele falava e sobre o qual estava a tentar pensar o que haveria de expectável a dizer).

Os clientes também podem ser constrangedores, quando são conhecidos do pessoal. Uma das cozinheiras passa a caminho da casa de banho mas é detida por umas perguntas e considerações mundanas da mãe de duas crianças do outro lado da sala. A cozinheira, não contando demorar-se, fica a três quartos, com um pé no ar, respondendo pelo canto da boca e pronta a continuar o seu caminho. Todavia, a cliente tem sempre mais uma coisa para dizer e a cozinheira, indecisa entre a delicadeza e a urgência, naquela postura de quem só ouvirá mais uma frase e continuará a andar, vai deixando os pés para trás e inclinando o corpo na direcção que pretende seguir. Estão nisto mais um longo minuto e eu preparo-me para amparar a cozinheira, que está mesmo no limite da sustentabilidade da sua posição. Mais uma frase da cliente e a queda é irreversível, foi atingido o ângulo máximo de inclinação que um corpo humano consegue atingir sem se estatelar. Por fim ouve-se uma interjeição telepática e a cozinheira dá o seu passo em frente, aquele passo que suspendera antes, e deixa a cliente a falar para a abertura que dá para o hall dos lavabos. Esta resigna-se, dá um safanão numa das crianças e comenta para o garçon que o golo da Costa Rica foi mesmo um grande golo.

Espertina

Gosto de madrugadas quentes, porque a vizinha vem para a rua aparar as sebes e eu vou para a varanda ver a vizinha aparar as sebes.

sábado, 14 de junho de 2014

Cristo sinaleiro

Cristo persegue-me (quando devia talvez ser o contrário, eu ir-lhe na peugada com veneração e toga de discípulo). Hoje postou-se-me a meio de uma bifurcação de estradas e, com aqueles seus braços permanentemente abertos, a apontar uma coisa e o seu contrário, fiquei sem perceber se me aconselhava a direita, se a esquerda. Como sinaleiro, tem muito a aprender. Nem deviam, aliás, autorizá-lo a exercer (mas neste país uns são filhos de deus, outros...).
A certa altura mais carente da viagem (havia uma recta de uns setenta metros antes de ter de escolher), achei que ele abria os braços mas era para me abraçar e fiquei tentado a ir em frente, entregar-me ao amplexo cristão com Chevrolet e tudo. Travei antes do muro.

(E ao passar-lhe ao largo devo dizer que me pareceu mais o Roger Hodgson do que o Cristo: ou há um culto novo na cidade ou anda alguém a brincar com os moldes.)