Algumas ruas aqui em volta fazem-me por estes dias lembrar Roma, a
caminho do Trastevere. Nada nas ruas sem Tibre nem classicismo desta cidade se
parece a Roma, excepto as coloridas folhas de plátano coladas ao chão pela
chuva. Mas é de Roma que me lembro ao contemplar o que o Outono fez às folhas. O
que me teria sucedido de interessante ali, se descontarmos estar desobrigado de
horários e compromissos?
O caminhar à noite pela margem esquerda do rio, indagando abstraidamente
a corrente rápida e acastanhada, o cruzar a Ponte Fabricio com vaga e preguiçosa
curiosidade estética e histórica não estavam balizados por nenhum prazo ou
ânsia, não tinham nenhum objectivo que não fosse descobrir algures, sem
urgência, uma taberna simpática com preços módicos. E percebo que é isso o que de importante me aconteceu em
Roma. Isso, essa suspensão do tempo, do trabalho, da existência social mesmo
que misantropa, esse interlúdio da vida quotidiana que deambular por uma cidade
estrangeira pode significar.
Há um prazer, uma leveza, um sentimento de eternidade quando se vagueia
por uma cidade sem pressa nem destino nem desejos nem gente conhecida. Não é talvez
de Roma que me lembro, mas de flanar
por uma cidade atapetada de folhas no fim do Outono. Não é de Roma que tenho
saudades (que patético seria reclamar-me saudoso de uma capital de fim-de-semana),
mas daquela versão de mim que não tinha agenda.
Descubro que sou, por aspiração (e julgo que natureza íntima), uma
espécie de flâneur. Um flâneur rústico, pelo menos provinciano,
mas um flâneur. Fui-o quando saía de
fim-de-semana da tropa e tinha de queimar horas entre estações de Lisboa ou do
Porto. Fui, então, um flâneur do Cais
do Sodré a Santa Apolónia, de S. Bento a Campanhã, fazendo grandes desvios pré-baudelerianos
(no sentido de inconscientes de si), preferindo calcorrear horas a fio as
cidades do que passar o tempo de espera em bancos frios e sujos de apeadeiro ou
em cafés para cuja cerveja não tinha dinheiro. Fui um flâneur à maneira torguiana (figura que, contudo, me não desperta interesse),
pisando em todas as oportunidades o saibro dos caminhos e escalando as rochas
dos montes. Fui, a espaços, com certa pretensão walterbenjaminiana, digamos, um
flâneur à medida das pequenas terras
onde vivi ou procurando erguer-me ao tamanho de algumas das que visitava.
Mas só hoje, ao regressar a casa e aos deveres, ao olhar com nostalgia este
tapete de folhas nesta terra que não é Roma, percebo mais intensamente que a
felicidade talvez seja não aceitar na vida mais do que solas de sapatos e
bilhetes low cost.
Algo que na verdade já devia ter intuído quando em Bruxelas me pus, não
sem embaraço, — como aqueles fãs que vão a Paris visitar o túmulo de Jim
Morrison — à procura dos sítios por onde andou o narrador flanante de Cidade Aberta, de Teju Cole. Não era uma
emulação ou uma excentricidade constrangedora das que por vezes me assolam —
era uma acusação e um apelo dirigidos a mim mesmo.
Sem comentários:
Enviar um comentário