sábado, 29 de setembro de 2012

«Relvas alerta para perigo da falta de confiança nos políticos europeus»


Crime No Estádio Em Que As Coisas Estão

O Secretário de Estado da Cultura tem sido acusado de insensibilidade perante as artes. Há um ano no Governo e, tirando umas pilhérias sobre o dinheiro, diz-se, não cunhou nada que se veja. Ora, isto é injusto, esta percepção do SEC como emissor de moeda. Ele não está lá para isso. O SEC não é um patrono, um mecenas. Essas eram atribuições de príncipes e papas, e, como se sabe, o Estado além de laico é republicano. À maneira yankee, nestes dias.
Não se julgue, contudo, que ao SEC a arte passa ao lado. Não. No último ano ele tem-se preocupado bastante com a área. Sobretudo depois das cinco da tarde, depois de ter largado o serviço e as mangas de alpaca. Quem o acusa de não ter obra devia ler a edição de 31 de Agosto do oficioso Correio da Manhã. Há obra. Ela chama-se O Coleccionador de Erva e foi prometida ao editor José Alberto Valente até 15 de Setembro, para ser apresentada ao público em Novembro.
Talvez não fosse bem isto que os amantes das artes esperavam, mas cada um faz o que pode. E Deus sabe como tem sido difícil o ano para o SEC. Ponham-se no lugar dele. Um novo emprego, cheio de responsabilidades, numa época terrível para o sector, um emprego que, agora mais do que nunca, exigiu empenho, entrega, imaginação, criatividade, liderança, visão. Um homem comum nestas circunstâncias chega a casa derreado, não consegue pensar noutra coisa. Talvez beba um whisky ou dois, mas de certeza que sonha à mesma com as mil e uma diligências que tem de fazer no dia seguinte para salvar o barco, de certeza que ocupa a inescapável insónia a cismar nos dramas que testemunhou ou nos projectos que tem em mãos. Um homem comum nestas circunstâncias não conseguiria escrever uma linha depois do emprego, se lograsse ter um «depois do emprego».
Mas o SEC não é um homem comum. O SEC é, antes de mais, um Escritor. E não se pede a um Escritor que interrompa a prosápia só porque mudou de emprego, só porque lhe confiaram mais responsabilidades, só porque tem uma pasta melindrosa nas mãos. Um Escritor escreve, é tudo o que ele faz.
E no entanto também o Escritor também se consome. Quando chega a casa também matuta bastante — na intriga do seu novo romance. Também se debate com dilemas morais — dos seus personagens. Tem remorsos — de ter morto o marido da protagonista ou o seu amante. E tem pudor, grande pudor, comovente pudor: evita chamar ao seu livro Crime No Estádio Em Que As Coisas Estão, por mais que fizesse sentido no conjunto da obra e por mais que ao inspector Jaime Ramos agradasse a ironia da coisa.


***

O novo livro do Secretário de Estado da Cultura será muito popular. E sê-lo-á por um golpe de génio. O volume estava para se chamar apenas O Coleccionador, mas um dos spin doctors do Governo previu o escândalo, a inoportunidade da edição, e sugeriu que se acrescentasse erva à obra. A ideia era apaziguar a esquerdalhada das artes dando-lhe algo com que se identificar. O problema vai ser convencê-la a enrolar as páginas antes de as queimar.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Chefe mas pouco: notas sobre a segurança do PM


Não fiz uma análise intensiva das imagens televisivas que mostram o chefe da segurança do Primeiro-Ministro a passar-se. Mas identifiquei um padrão: o dos cães de estimação a reagirem em defesa do dono. Ali estava um exemplar impulsivo, com a perspicácia e a subtileza de um doberman jovem, apenas crescido de corpo. Imaginem o que aquele segurança não fará quando os cidadãos passarem do insulto ao bufardo.
   
Também foi um pouco canina a corroboração dos agentes fardados no exterior. O estudante detido para identificação podia ter-se manifestado contra o PM, concederam — mas não com insultos, repetiu um dos agentes. Estará o Governo a preparar-se para criminalizar o insulto? É possível. E talvez a blasfémia. Ideologia para isso não lhe falta. A ser assim, cos diabos, cheira-me que a polícia vai ter muito trabalho nos próximos tempos. Nem os santos se livrarão de tanto praguejar.

Já vi aquele chefe de segurança à ilharga do PM algumas vezes e, se não era exactamente um low profile, também não denunciava ter o sangue assim tão quente. Isso mostra que a) o estudante é particularmente dotado na arte de insultar, b) disse alguma verdade incómoda, ou c) o Governo anda com o dedo leve no gatilho. Nervosos, meus senhores?

Alguém devia explicar ao chefe da segurança do Sr. Primeiro-Ministro que a sua função não é ladrar aos manifestantes. A sua função é deixar-se crivar de balas em vez do dono. Não vê filmes?

De resto, se queria que o país não lhe conhecesse a cara conseguiu exactamente o oposto. Saltar para cima de um insultador e de uma câmara daquela forma é tão néscio como concorrer ao Big Brother com a esperança de não ser filmado.  

Se queria proteger o Primeiro-Ministro tapava-lhe as orelhas.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Pequenos posts perfeitos

«Setecentos
Voltaire dizia que para ter sucesso não bastava ser estúpido, era também preciso ter boas maneiras. Como o mundo mudou.»

Pedro Mexia, no Lei Seca

Testemunho de Rosa*

«A mota fez-se ouvir subindo com dificuldade o caminho que conduzia à nossa casa. Eu estava no balouço, como em tantas tardes, só que naquele dia era de manhã. Eurico tinha dito que vinha almoçar e eu preparei um almoço bom, uma coisa de que ele gostava. Mas preparei-o muito cedo e depois fiquei sem saber o que fazer. Ou nada do que tinha para fazer era mais importante do que o almoço e por isso não me apetecia meter outros trabalhos pelo meio. Deixei o bico do fogão no mínimo e vim cá para fora, para o sol. Era um dia lindo de Agosto e havia fumo no Parque. Uma coluna de fumo escuro a sair das copas das árvores que era mesmo assustadora, como se houvesse ali um vulcão ou coisa assim. O Parque era, para mim, que o via de cima, um prado. Se eu quisesse, podia imaginar que não havia nenhum tronco de árvore por baixo, que as copas não estavam suspensas e niveladas uns metros acima do solo, que o chão era logo ali encostado às folhas como nos prados. Por vezes conseguia ver-me a correr colina abaixo e a deixar-me rebolar por cima daquelas folhas, como em pequena fazia nos terrenos para onde ia guardar o gado. Havia certos prazeres que a gente perdia quando crescia e eu pensava se não tínhamos razão em não querer crescer. Mas depois crescíamos e era ridículo se nos puséssemos a rebolar nos prados. Claro que não havia prado nenhum ali e as copas das árvores estavam muito altas, nalguns sítios a mais de trinta metros, que no Parque plantaram-se espécies da América e da Austrália ou lá o que foi. Mas eu estava no balouço quando a mota chegou. A minha cara estava a ficar morena porque eu cantava virada para o Sol, com os olhos fechados e o queixo levantado, e a pele queimava mesmo, se eu lhe pusesse a mão. Às vezes adormecia assim, não no balouço, que tinha medo de cair, mas quando me encostava num banco, e o Eurico dizia-me que vermelha estás, rapariga, mas gostava e eu gostava que ele gostasse, dizia-lhe põe aqui a mão e ele punha e eu gostava mesmo muito. E o pescoço também ficava bronzeado e o peito se eu abrisse dois botões da blusa, ali ninguém nos via e podíamos abrir botões, ou podia eu, não havia mais ninguém a não ser eu e o Eurico e ele abria a camisa toda e até a tirava, ficava em tronco nu e era bonito de ver, eu gostava muito. Eu tinha aberto dois botões e estava mesmo com muito calor e vermelha e só queria que ele chegasse para lhe dizer põe aqui a mão, não, aqui, e rir-me por o fazer pôr-me a mão nos peitos. Depois ele chegou e trazia um embrulho nos braços e eu fiquei radiante, era tão bom quando ele se lembrava de trazer um presente. Mas Eurico vinha com ar cansado e sério e eu abotoei a blusa e endireitei-me no balouço enquanto ele se aproximava como os pastores nos presépios, com a cabeça baixa e a estender-me os braços com o embrulho. Era uma coisa pequenina e não era um embrulho, mas um cobertor pequeno enrolado à volta daquilo deixando apenas uma abertura pequenina para respirar. No início ainda pensei que fosse algum animal para fazermos criação ou assim, mas não havia feira naquele dia, onde raio teria ele ido arranjar tal coisa. Claro que nas aldeias às vezes lhe davam uma galinha ou um coelho para comermos e eu gostava que ele fosse assim popular em todo o lado mesmo que não fosse de se rir muito, mas se hoje vinha almoçar a casa era porque não tinha ido para as aldeias e portanto não podia ser isso. Também era absurdo que ele trouxesse um animal de criação embrulhado num cobertor, onde já se viu, e não era um ar de alegria gulosa o que ele trazia, nem sequer era alegria, se eu consegui compreender bem o ar que ele trazia. Simplesmente foi-se chegando a mim a olhar-me com olhos que pediam perdão ou só olhos de súplica que não pediam perdão mas pediam ajuda. E eu cada vez mais inquieta e assustada, a sentir a felicidade descer-me pelo corpo, que se arrepiava ainda que estivesse o calor do meio-dia, a fazer também olhinhos de súplica, mas uma súplica diferente, uma que se condoía do ar desesperado dele e que lhe dizia diz qualquer coisa, homem, que trazes aí que te deixa assim como se te estivessem a matar os pais. E Eurico abriu a boca como um peixe num aquário e não disse nada porque as palavras não lhe saíam embora estivessem mesmo ali na ponta da língua onde a gente quase as conseguia ver. O que ele fez foi estender-me a criança e dizer sei que não é a mesma coisa, Rosa, e a criança começou a chorar nesse momento e antes de eu poder dizer alguma coisa tive de a segurar contra o peito e dizer pronto, pronto, enquanto a embalava da esquerda para a direita como via fazer às outras mulheres.»

* in Hotel do Norte

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Determinismo a la carte

«Que parte não perceberam: não há dinheiro!» Esta é uma forma estúpida de expressar as coisas, dotada do carisma e do potencial mobilizador de um preguiça pendurado pelas unhas, mas é possível que esteja certa. As reivindicações sectoriais, no seu egoísmo cego, conseguem aqui e ali um alívio para as suas particulares dores (quanto mais acima estiverem na hierarquia do capitalismo mais o conseguem), mas não resolverão nada de geral e fundamental. Provavelmente a crise é de tal forma que não nos vai restar alternativa ao empobrecimento e ao desemprego, ao desemprego desamparado. A distopia deixou de ser um género literário ou cinematográfico para ser o degrau seguinte da evolução. Talvez regressem a fome, a guerra, as deambulações fantasmais de massas esfaimadas. O fluxo urbano será no futuro constituído por hordas cambaleantes de novos caçadores-recolectores, antecedidas de breves incursões iradas de gangues apocalípticos à procura do último supermercado, da última mercearia, da última lata de conservas. Antes disso, um bife, quando aparecer, há-de novamente ter de chegar para uma família, e a semana de trabalho, para os que o tiverem, deixará de ser inglesa para ser neo-helénica (seis dias, não é?) e depois asiática (full time). Regressaremos às hortas, à pesca à linha, à economia baseada na troca de artigos, e um dia a população na Terra começara finalmente, naturalmente, a regredir.
Talvez os crentes na austeridade estejam certos e não mais possa haver classe média, assistência social, solidariedade de estado. Talvez seja até justo irmos ao encontro do nosso lugar no Terceiro Mundo, o destino a cobrar-nos a arrogância e o egoísmo de séculos, a cobrar-nos a imprevidência de cigarras patetas e eleitores imbecis. Sim, talvez não haja alternativa ao castigo.
Mas em que momento começarão o Governo e os poderes na Europa a testar outras vias? Em que momento concederão que por este caminho o desemprego não vai diminuir nunca? Quando estarão dispostos a aceitar que, com o empobrecimento geral da sociedade, era natural, expectável, que houvesse um empobrecimento proporcional dos ricos?
Que constatação determinista, fria, escolheram os líderes europeus: que tem de haver pobres ou que tem de haver ricos? Dito de outra maneira: para a gente que nos governa, a pobreza generalizada é inevitável ou é a riqueza de uns poucos que é em qualquer circunstância inegociável? 

Ócio: a última fronteira da humanidade

Num tempo em que os economistas parecem gurus lunáticos, com a fiabilidade de um Zandinga, e quando a economia avançou tanto na capacidade de distribuir bem-estar quanto a ciência na capacidade de prever sismos, talvez não fossem de deitar fora certas considerações que circulam na net, como as atribuídas a Agostinho da Silva no que toca à, mais tarde ou mais cedo, fatal incapacidade de o capitalismo assegurar emprego generalizado e de isso não ser por si um mal (ócio: a última fronteira da humanidade). Para cenários futurísticos, não viria mal em considerar-se desde já um que pensasse na partilha do trabalho, em horários individualmente reduzidos, sustentada por uma melhor redistribuição da riqueza produzida. Não é bem comunismo. Talvez bom senso?

O pateta elegante

Já me aconteceu antes, regressar de um curto período sem internet nem jornais e levar com a realidade nas ventas. Não há nenhuma surpresa, não é isso. O anúncio de Passos Coelho era previsível (como tudo nele), mas esperar as más notícias não nos alivia do mal que elas, quando ditas, oficializam e na hora começamos a sentir.
Leio agora os jornais e os blogues e deparo aqui e ali com perfis do Primeiro-Ministro, todos excessivos, todos errados. Estive poucas vezes perto dele, mas em algumas estive suficientemente perto para notar como Passos Coelho me faz lembrar o irmão de um amigo de há vinte anos: os mesmos olhos claros, os mesmos somíticos lábios finos, as mesmas sobrancelhas em calimérico vê invertido (já imortalizadas numa versão de célebre quadro piegas a pedir intervenção especializada de Celina Giménez), o mesmo cabelo ternamente alourado, à betinho, de minuciosa risca ao lado e com um corte que lhe deixa coberto o arco (ou ogiva spockiana?) superior das orelhitas, o mesmo queixo proeminente, quase, quase à Kirk Douglas, a mesma fotogenia de boneco de cera hollywoodesco — e o mesmo vazio sideral entre as orelhas.
Como o irmão do meu amigo, Passos Coelho tem presença e vaidade, faz-se notar e fala com voz segura, autorizada, mesmo quando diz alarvidades. Os imprudentes e os deslumbrados rendiam-se ao halo do irmão do meu amigo — na verdade um caixeiro-viajante ao serviço de uma multinacional do perfume ou da aspirina. Vanglória ou placebos eram o seu negócio e ganhava bom dinheiro com isso, o elegante pateta alegre.
No Governo, está de um lado o insustentável Relvas, com as suas negociatas e representando certos interesses com rabo de fora; do outro, estão os dogmáticos Gaspar e Santos Pereira, espécie de ultrazelosos marxistas do capital prontos para irem ao fundo com a sua cartilha, que é, nos dias que correm, tão útil como a carta de ligeiros para os submarinos de Portas; e no meio está Passos Coelho, vendendo com os seus melhores colgate, gravata e argumentário de literatura inclusa o que lhe impingem os outros três — sem olhar às contra-indicações. Tal como o irmão do meu amigo, Passos Coelho é um bom ventríloquo dos seus incumbentes — mas infelizmente a sua prosódia de papagaio só é boa para ele e para os seus patrões, não para o país que num dia de humor delirante o elegeu.