«A mota fez-se ouvir subindo com dificuldade o caminho
que conduzia à nossa casa. Eu estava no balouço, como em tantas tardes, só que
naquele dia era de manhã. Eurico tinha dito que vinha almoçar e eu preparei um
almoço bom, uma coisa de que ele gostava. Mas preparei-o muito cedo e depois
fiquei sem saber o que fazer. Ou nada do que tinha para fazer era mais
importante do que o almoço e por isso não me apetecia meter outros trabalhos
pelo meio. Deixei o bico do fogão no mínimo e vim cá para fora, para o sol. Era
um dia lindo de Agosto e havia fumo no Parque. Uma coluna de fumo escuro a sair
das copas das árvores que era mesmo assustadora, como se houvesse ali um vulcão
ou coisa assim. O Parque era, para mim, que o via de cima, um prado. Se eu
quisesse, podia imaginar que não havia nenhum tronco de árvore por baixo, que
as copas não estavam suspensas e niveladas uns metros acima do solo, que o chão
era logo ali encostado às folhas como nos prados. Por vezes conseguia ver-me a
correr colina abaixo e a deixar-me rebolar por cima daquelas folhas, como em
pequena fazia nos terrenos para onde ia guardar o gado. Havia certos prazeres
que a gente perdia quando crescia e eu pensava se não tínhamos razão em não
querer crescer. Mas depois crescíamos e era ridículo se nos puséssemos a
rebolar nos prados. Claro que não havia prado nenhum ali e as copas das árvores
estavam muito altas, nalguns sítios a mais de trinta metros, que no Parque
plantaram-se espécies da América e da Austrália ou lá o que foi. Mas eu estava
no balouço quando a mota chegou. A minha cara estava a ficar morena porque eu
cantava virada para o Sol, com os olhos fechados e o queixo levantado, e a pele
queimava mesmo, se eu lhe pusesse a mão. Às vezes adormecia assim, não no
balouço, que tinha medo de cair, mas quando me encostava num banco, e o Eurico
dizia-me que vermelha estás, rapariga, mas gostava e eu gostava que ele
gostasse, dizia-lhe põe aqui a mão e ele punha e eu gostava mesmo muito. E o
pescoço também ficava bronzeado e o peito se eu abrisse dois botões da blusa,
ali ninguém nos via e podíamos abrir botões, ou podia eu, não havia mais
ninguém a não ser eu e o Eurico e ele abria a camisa toda e até a tirava,
ficava em tronco nu e era bonito de ver, eu gostava muito. Eu tinha aberto dois
botões e estava mesmo com muito calor e vermelha e só queria que ele chegasse
para lhe dizer põe aqui a mão, não, aqui, e rir-me por o fazer pôr-me a mão nos
peitos. Depois ele chegou e trazia um embrulho nos braços e eu fiquei radiante,
era tão bom quando ele se lembrava de trazer um presente. Mas Eurico vinha com
ar cansado e sério e eu abotoei a blusa e endireitei-me no balouço enquanto ele
se aproximava como os pastores nos presépios, com a cabeça baixa e a
estender-me os braços com o embrulho. Era uma coisa pequenina e não era um
embrulho, mas um cobertor pequeno enrolado à volta daquilo deixando apenas uma
abertura pequenina para respirar. No início ainda pensei que fosse algum animal
para fazermos criação ou assim, mas não havia feira naquele dia, onde raio
teria ele ido arranjar tal coisa. Claro que nas aldeias às vezes lhe davam uma
galinha ou um coelho para comermos e eu gostava que ele fosse assim popular em
todo o lado mesmo que não fosse de se rir muito, mas se hoje vinha almoçar a
casa era porque não tinha ido para as aldeias e portanto não podia ser isso.
Também era absurdo que ele trouxesse um animal de criação embrulhado num
cobertor, onde já se viu, e não era um ar de alegria gulosa o que ele trazia,
nem sequer era alegria, se eu consegui compreender bem o ar que ele trazia.
Simplesmente foi-se chegando a mim a olhar-me com olhos que pediam perdão ou só
olhos de súplica que não pediam perdão mas pediam ajuda. E eu cada vez mais
inquieta e assustada, a sentir a felicidade descer-me pelo corpo, que se
arrepiava ainda que estivesse o calor do meio-dia, a fazer também olhinhos de
súplica, mas uma súplica diferente, uma que se condoía do ar desesperado dele e
que lhe dizia diz qualquer coisa, homem, que trazes aí que te deixa assim como
se te estivessem a matar os pais. E Eurico abriu a boca como um peixe num
aquário e não disse nada porque as palavras não lhe saíam embora estivessem
mesmo ali na ponta da língua onde a gente quase as conseguia ver. O que ele fez
foi estender-me a criança e dizer sei que não é a mesma coisa, Rosa, e a
criança começou a chorar nesse momento e antes de eu poder dizer alguma coisa
tive de a segurar contra o peito e dizer pronto, pronto, enquanto a embalava da
esquerda para a direita como via fazer às outras mulheres.»
* in Hotel do Norte
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