domingo, 22 de janeiro de 2012

Vasquito

Só li citações (ando a poupar nos jornais), mas parece que o camarada Vasco, escrevendo sobre cultura, ontem falou de “produção nacional”. Diria que o fez para dar razão ao seu próprio argumento: em Portugal não falta quem fale sobre o que não conhece.
Acertou, não duvido, na questão dos vereadores — quanto a mim, acerta-se sempre quando se fala mal de vereadores.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Sai mais um bagaço

«O Governo de coligação PSD-CDS, desde que tomou posse, ofereceu, generosamente, à gente sua amiga uma dezena de lugares de proeminência muitíssimo bem pagos. O que produziu um escândalo de certa maneira inesperado. (…) À superfície não se vê por isso o motivo por que um acto, por assim dizer normal, de Passos Coelho provocou agora tanta indignação e tanta conversa.»
Vasco Pulido Valente, «Uma velha história», Público de 14/1/2012

A “análise” de que extraí o pedaço acima não se distingue, a não ser pelo acabamento da prosa, daquilo que produziriam habituados comentadores de tasca, exímios a concluir serem os políticos todos iguais e a defender ser profundamente estúpido considerar a mudança. Fecha a porta ao debate da mesma forma (embora com outra conveniência, mas não é esse o ponto que agora me interessa).
Por vezes espanta que as redacções de VPV, com frequência pouco mais do que fúteis, façam dele o cronista-mor do reino. Mas a explicação é simples: também a intelectualidade portuguesa não se distingue geralmente do auditório de taberna — excepto por uma mais aguda sensibilidade à gramática e à retórica. Se estivéssemos no século XIX, o corte da jaqueta seria igualmente considerado. E aí o escriba teria talvez de mudar de alfaiate.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Considerações de um músico de metro

Ainda que a biologia não permitisse a K. ter uma consciência estética desenvolvida ao tempo, os anos 60 e 70 do século XX são muito as suas décadas, musicalmente falando. Quer dizer, se tiver de declarar alguma coisa aos costumes, K. é um filho dos eighties, esquizofrénico como eles. Mas as maiores emoções, as mais lancinantes, reconhece, vêm-lhe de músicas anteriores. Se K. ouve algumas canções daquelas décadas, apetece-lhe frequentemente desfazer-se em lágrimas. Outras vezes desata aos pulos e a esbracejar como imagina que se esbracejava na altura. Há uma explicação. K. viveu por dentro os anos oitenta e, portanto, o que lhe acontece por vezes é sentir nostalgia — no máximo. Já os sessenta e setenta foram sempre, ainda que de forma indirecta, espiritualmente mais intensos, míticos, lendários, verdadeira religião de que lhe chegavam, como do além, rumores em fitas magnéticas e raro vinil. Uma religião de que testemunhou, com curiosos olhos infantis, as últimas manifestações, observando platonicamente, como sombras em cavernas, o difuso estertor alcoólico de festas num armazém da vizinhança. (Ainda se dançava Pink Floyd com charme e copo de tinto, cigarro na mão, mas era já uma despedida.)
Há a questão dos ídolos. K. não pode dizer que tivesse conhecido pessoalmente algum nos anos 80. Dos anos 80. Contudo, na sua adolescência ainda contactou com dois ou três dos que tinham alcançado grandeza na década anterior.
Objectivamente, não é bem assim. Os seus ídolos de vizinhança apenas tinham tocado a grandeza ao interpretarem, à guitarra e em cima de palcos apertados e pouco seguros, a musicografia de sessenta e setenta. No entanto, K. não sentiu neles a fraude que se sente quando se compra fancaria. Eles eram genuínos, the real thing. Podiam limitar-se a fazer covers dos êxitos da sua época, mas soavam como os originais, vestiam e não cortavam o cabelo como os originais, transpiravam como os originais, drogavam-se como os originais. Não se distinguiam dos originais excepto por estarem vivos ou fisicamente presentes.
Um tipo da geração de K. não procurava aprender com alguém musicalmente activo em 80 — competia com essas pessoas. A quem K. pedia conselhos e aulas de guitarra era aos ídolos de setenta. Aprender as canções que eles tratavam por tu, como filhos legítimos, era ser-se iniciado na linguagem dos deuses, de que todas as canções de 80, mesmo as que K. pudesse escrever, emanavam, eram sucedâneos. K. imagina-se a sentir vaga camaradagem por algum condiscípulo da sua geração, mas o respeito, a admiração, o afecto reserva-o todo para aqueles que usavam calças à boca-de-sino antes de elas serem retro fashion.
K. acredita, em suma, que há na música, ainda que revolucionária e libertária, uma hierarquia (ou uma cronologia) a respeitar, um código de honra e de valores onde os mais velhos ocupam lugares determinantes, como em certas tribos.

Sentando no túnel do metro para mais um dia de trabalho, com um orgulho melancólico nas suas calças de ganga genuinamente gastas e rotas, K. reflecte sobre tudo isto na hora de escolher o repertório. Experimentou alguns temas seus contemporâneos, mas nenhum lhe soa bem à viola acústica. K. não dispõe de suporte electrónico mas não julga ser esse o principal óbice à verosimilhança, embora lhe pareça haver um problema de credibilidade quando se está de chapéu estendido a evocar um imaginário tão eminentemente burguês e entediado como o de oitenta. 

A vida de K. (7)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Problemas de (co-)habitação

Quando, há vários anos, K. ficou com a casa só para si, sentiu um peso na consciência: eram cinco quartos a mais, até para alguém como ele, que precisava de espaço. Mas na altura não havia assim tanta gente com dificuldades, e a pátria, que tinha casas de sobra, não parava de as construir, era preciso vendê-las. K. permitiu-se essa comodidade extravagante e os remorsos não foram um problema muito grande, já que casas novas mais pequenas tinham rendas maiores (as pessoas até preferiam comprá-las). Mudar-se significaria quase de certeza gastar mais dinheiro.
Depois a habitação tornou-se um problema. Não a habitação: as rendas, houve uma reforma legislativa, com a qual nem discordava fundamentalmente. Ainda assim, aquilo que K. pagava em três meses passou a custar-lhe a casa num, o que alterava substancialmente as regras do seu jogo. Habitar o palacete, mesmo que decadente, sem atractividade para a anterior classe média, era agora um luxo que não podia pagar.
Antes de se mudar para a rua, K. pôs um anúncio, e durante algum tempo viveu com companhia. Mas não se habituava. A decisão de subarrendar partes da casa, para além de o ter ajudado a suportar a prestação mensal por um curto período, estava de acordo com o seu pensamento político — união de esforços, partilha de sacrifícios, coisas assim. Porém, uma coisa é encontrar virtudes teóricas em certos aspectos do comunismo, outra é viver em comunidade. Por mais que o satisfizesse acolher pessoas que os bancos tinham posto na rua, K. não se acostumava a comungar o quotidiano. De repente era como viver num hostel, desconhecidos a partilharem a louça, a cozinha e a sala de televisão, o autoclismo a soar sem que sejamos nós a puxá-lo, gente que canta no banho ou fala a dormir, tipos que arrotam ou cortam as unhas enquanto vêm as notícias de mais austeridade — o teatro impudico e repugnante da intimidade alheia. Ter reservado para si o direito de ficar na velha suite, com a sua casa de banho privativa e a sua antecâmara, não protegia K. de uma excessiva proximidade às vidas dos outros.
Por isso, até agora K. animava-se a si próprio dizendo com humor que uma das vantagens de dormir na rua era não ter de suportar gente a ressonar no quarto ao lado.

Infelizmente, há males piores, descobriu K. com desalento quando um casal de maltrapilhos particularmente roncante fez a cama de papelão nas imediações da sua. «Esperemos que sem-abrigo sejam gente a quem falte o ânimo da cópula», rogou depois K. a Ninguém, lembrando-se de que na sua curta experiência de vida em comunidade havia coisas mais intrusivas do que pessoas a ressonar.


A vida de K. (6)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Sono criogénico

A segunda vida d’O Canhões de Navarone não foi longa — cerca de seis meses, por vezes agradáveis, por vezes sofríveis, com algumas satisfações e vários tiros na água —, mas agora impõe-se por tempo indeterminado um novo sono criogénico. Ou nem tanto. Serviços mínimos, ocasionais posts, talvez, textos sem bússola — um tipo respira, anda por aí a observar a vida dos outros, não é? Vão passando.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Cientistas dão razão aos críticos da função pública

«Declínio do cérebro afinal começa aos 45 anos. Estudo avaliou três vezes as capacidades cognitivas de mais de sete mil funcionários públicos num período dez anos, concluindo que, afinal, a deterioração não começa aos 60 anos.»
Ao cuidado do Governo: face aos novos dados científicos, propõe-se que a idade da reforma seja antecipada na mesma proporção. 

Cibernices

1. Da evolução do homem
O saber wikipédico substitui o saber enciclopédico.

2. Tábua rasa
Desligar o homem da net é um acto filosófico.

3. Revolução
O motor de combustão está para a revolução nos transportes como o motor de busca está para a, digamos, revolução cultural.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A fina linha

A China respondeu a certas inferências do meu post de ontem (e de outros em que falei de televisão). Segundo o Público, o «entretenimento de “mau gosto” está a desaparecer velozmente da televisão chinesa». Claro que a China não espera que isso aconteça voluntariamente, por decisão sensata dos directores de canais, intervenção escrupulosa da entidade reguladora, ou exigência criteriosa dos telespectadores. A China é um país autoritário, toma medidas. (Como aliás propunha, não exactamente quanto ao entretenimento, certo grupo de trabalho reunido pelo governo português.)
Mas também é claro que a China toma por entretenimento de mau gosto programas que classifica de «golpes estratégicos para ocidentalizar e dividir o nosso país». E impõe em sua substituição outros que «promovam as virtudes tradicionais e os valores fundamentais socialistas». Se se tivesse ficado pelo banimento dos reality shows, sem considerandos de ordem geopolítica nem sucedâneos proselitistas, os leitores do Canhões corriam o risco de lerem aqui amanhã um hino ao Império do Meio — e debandariam de vez, considerando irreversível a demência do artilheiro.

Qualquer intervenção do Estado nas televisões, nos jornais, nas editoras, nos teatros ou nos cinemas está sempre a um passo curto de ser um erro. A linha que separa o intervencionismo do paternalismo, do proselitismo ou da pura manipulação é fina, muito fina. A informação, a cultura, as ideias, a arte devem ser deixadas em paz, se o objectivo é ter uma sociedade democrática, livre, emancipada, plural, intelectualmente desenvolvida. No entanto, a realidade faz-nos suspeitar que deixar as instituições trabalhar livremente não garante todas as boas conquistas do mundo ocidental, não garante a sua perduração. Suponho que não precisamos de ser todos pessimistas para concluirmos que há um afunilamento do espaço público, uma tendência para a uniformização, uma simplificação que amputa, reduz a diversidade, elimina a exigência e o escrúpulo. Se tomarmos o exemplo das televisões, somos forçados a concluir que a liberdade de acção não assegura a qualidade do serviço, mesmo que falemos apenas de entretenimento. Teríamos de aplicar critérios muito estreitos e pouco exigentes, deixando de fora imensas manifestações da inteligência e do espírito humanos e da sua variedade se quiséssemos considerar que sim, que as grelhas actuais reflectem uma sociedade interessante. E é preciso ter em conta que, apesar da Internet e do cabo, o espaço público continua a ser em grande parte formatado pelos canais de televisão em sinal aberto, com todas as consequências que isso tem no próprio desempenho social e económico do país.

Terá, então, o Estado de intervir, a exemplo da China, erradicando programas de mau gosto e decretando grelhas correctas, seja qual for o critério? Não creio. A linha é fina, mas não deve ser cruzada. Diria que ao Estado compete talvez assegurar que a complexidade do jogo social não se reduz, que não se eliminam variáveis nem jogadores, que o espaço público é mesmo público e diverso, ou seja, passível de ser frequentado e influenciado por todos. Ao Estado compete assegurar que não se constroem guetos à margem da manada hegemónica. Que não se cria um canal 2 para alívio de consciências e álibi do fartar vilanagem nos restantes três canais, que há no gueto critérios de elevação do intelecto e dignidade do espírito que não se aplicam ao resto. Como se faz isto? Não perguntem a Hu Jintao.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Bronzeadores em África

Há muitos anos, uma trovoada providencial queimou a televisão lá de casa e desde então a caixa mágica só me enfeitiça em ocasional restaurante ou café, se não levar comigo um jornal ou companhia. Hoje, por qualquer distúrbio na ordem universal ou distracção do estalajadeiro, a coisa sintonizou-se por momentos na RTP2. Não me dei logo conta de que era a RTP2, mas a publicidade, os programas anunciados e o documentário que entretanto se iniciou pareciam assunto de outro planeta, não de um onde reina essa pouco inventiva invenção do demo que dá pelo nome de televisão generalista. Imaginei um canal do cabo, mas teria de ser um pouco esquizofrénico, dada a diversidade das propostas. (Imagino os canais de cabo temáticos, mas posso estar enganado.)
Depois passou uma publicidade institucional e percebi que era de facto a 2 (ok, também houve um separador que a anunciou). Estava numa mesa distante e não a vi em pormenor, mas a publicidade era sobre civismo, comportamentos censuráveis em diferentes circunstâncias, toques de telemóveis inoportunos, deselegantes, coisas assim. Ignoro se passa também no canal 1, mas desconfio que não. Seria contra a lógica nacional. O civismo implica sensibilidade, respeito, aceitação do outro e da diferença. É matéria de minorias, portanto, conclui a lógica nacional. Logo, passa na 2. Se fosse algo relacionado com estupidez de massas, sim, teria direito ao canal principal e a horário nobre. Se promovesse o uso polifónico do telemóvel no cinema, no teatro e na sala de aulas, sim, passaria frequentemente na RTP1. Mas como fala de valores, como tem uma mensagem que, se decifrada, pode ofender o povo do prime time (pelo retrato implícito), o melhor é passar na 2, onde a entendem e aprovam. Nem que isso equivalha a vender bronzeadores em África. A lógica nacional é assim, redundante e pusilânime. Capaz de conceber uma campanha de promoção do civismo, mas receosa de a passar no canal onde ela faria falta. (Ainda a acusariam de querer educar o povo.)

Talvez eu esteja enganado e a campanha passe nos dois canais. A lógica nacional por vezes distrai-se. 

Javier Marias

«Cinquenta e sete críticos e colaboradores do Babelia, suplemento cultural do El País, escolheram Los enamoramientos (Alfaguara) como o melhor livro publicado em Espanha durante 2011.»

O Teu Rosto Amanhã (ou deveria dizer Tu Rostro Mañana?), de Javier Marias, continua a ser o melhor livro que li neste século, obra-prima. A Dom Quixote publicou o primeiro volume (de três) e depois descontinuou-o. Desta vez não perdi tempo e fui a Espanha comprar Los Enamoramientos. Menos impostos para o Estado. 

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Foram cinquenta e sete os críticos e colaboradores do Babelia a fazer o balanço de 2011. No suplemento do Expresso foram 8.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O futuro

Quando no fim da adolescência (talvez mais tarde, pronto) comecei finalmente a acreditar que também eu haveria de morrer, chorei por antecipação a mágoa de não estar cá para testemunhar tantos progressos e descobertas científicas que a humanidade haveria de fazer mesmo sem mim. Era uma sacanice haver evolução para admirar e eu ter terra nos olhos. Viagens interestelares, teletransporte, semana laboral de dez horas, coisas destas. Achei fraco prémio de consolação ter-me sido dada a oportunidade de ver passar de moda aqueles visionários telemóveis pequeninos de abrir a meio preconizados pela série O Caminho das Estrelas.
O futuro sempre foi o meu lugar, e não só porque seguia a sábia doutrina do deixa para amanhã o que podes fazer hoje. Quando li os clássicos, fi-lo porque os encarei como novidades, produtos de uma era adventícia — a minha idade mental era a de um homo neanderthalensis, se comparada com a dos defuntos escritores. Mas mal pude convencer-me que essa etapa da minha formação estava cumprida, que tinha bagagem suficiente para não parecer completamente estúpido (o que ocorreu prematuramente, ao contrário do início das leituras), determinei que um livro com mais de três anos era velho. Isso levou-me a percorrer do fim para o início a obra dos autores vivos que achei dignos de serem lidos na íntegra (talvez com consequências na minha percepção cronológica do mundo). Como nesta área fui um patriota entusiasta do esbanjamento, nos anos Sócrates acumulei livros que não tive tempo de ler e, quando mais tarde olhei para as datas de edição, percebi o desperdício de ter investido em obras que já não leria, por terem ultrapassado o meu prazo. Mas, tirando estar a, como se diz, hipotecar o futuro da república, não era grande a chatice. Dava-me bem com a produção mais recente. Não via razões para estar pessimista quando ao talento literário das gerações vivas e rejubilava particularmente, por antecipação, com as pérolas que estavam ainda no prelo ou mesmo no disco rígido dos escribas. Acreditei durante muito tempo que o melhor estava sempre para vir. Até sentia alguma excitação com a ideia de livro digital, nas suas primeiras e futuristas visões.

Depois o livro digital veio mesmo e o mundo editorial transformou-se. (Uma coisa não foi causa exclusiva da outra.) Houve várias mudanças: o apogeu dos franchises, dos autores mediáticos, das vedetas ocas feitas escritor, a retracção da crítica e das páginas literárias na imprensa e na vida social, a mercantilização do livro, a concentração em grupos editoriais grossistas, o domínio do gosto de uma classe média iletrada, uma idade política favorável à dinâmica de mercado. De repente, o futuro não é assim tão promissor. Muitos jornalistas e especialistas de literatura passaram a discutir mais os suportes e a forma em que a escrita pode ser embrulhada do que o que ela tem para dizer. Os gadjets e as operações comerciais das empresas concentraram as atenções. A palavra ainda é livro, mas é um grande chapéu-de-chuva, já não se refere à mesma coisa.

Os escritores continuam a escrever e a internet até facilita a edição. Há um site, por exemplo (referido pelos Booktailores…), que anuncia «dez dicas para autores ou escritores independentes» (desconfio que é sintomática a distinção entre autores e escritores). Mas nas dez dicas apenas uma vez, e só no título, vem mencionado o interesse de se escrever um «bom livro». O resto são sugestões sobre marketing, estudos de mercado, estratégias de venda, questões técnicas, propaganda.

Não perdi o optimismo quanto à qualidade da literatura — perdi-o quanto ao pormenor de a boa literatura ser editada. Face à avassaladora mercantilização da vida social e cultural, à forma como o vazio e o supérfluo substituem o essencial, como as pessoas do meio e os leitores se deixam levar pela onda ou sucumbem a ela, prevejo que a boa literatura editada tem os dias contados ou será marginal, difícil de adquirir, demasiado cara. A boa notícia é que já não devo estar cá para ver.

Já não sou, portanto, um tipo do futuro, embora ainda não seja um indefectível do passado. Deve ser isto o prenúncio da meia-idade.

Adenda

O estudo da Comissão Europeia citado ali em baixo refere-se a medidas tomadas entre 2009 e 2011. Ou seja, consulado do inefável Sócrates. Contudo, os embeiçados pelos lindos olhos de Passos Coelho não devem começar já a esfregar as mãos. Esperem pelo estudo do ano que vem (supondo que se fará um). Ou alguém acha que neste domínio Passos Coelho está a fazer alguma coisa melhor que Sócrates? Que está, sequer, a fazer alguma coisa?
Pensando bem, talvez esteja: a assegurar activa e convictamente que Portugal não desce no ranking dos mais desiguais. 

Questões de moral no admirável mundo novo

1. As empresas públicas devem ser privatizadas — mas não faz mal que sejam adquiridas (a preço de ocasião) por empresas estatais chinesas.

2. A Holanda, movida talvez por um ligeiro impulso chauvinista, quer restringir o cannabis holandês aos holandeses. Não lhe agrada ser um paraíso de embriaguez para estrangeiros — excepto se a embriaguez for a do lucro. Deve ser a isso que chamam moral calvinista.

3. Alexandre Soares dos Santos, de resto, concorda com os juízos morais que se têm feito sobre Portugal e os seus defeitos éticos. Por isso se mudou para a Holanda — prefere que o dinheiro dos seus impostos sirva uma sociedade moralmente superior. Mesmo que de qualquer maneira isso não lhe dê acesso aos coffeeshops dos nativos.

Deve ser isto que Passos Coelho chama de «democratização» da economia

«Entre os seis países da União Europeia mais afectados pela crise, Portugal é o único onde as medidas de austeridade exigiram um esforço financeiro aos pobres superior ao que foi pedido aos ricos, revela um estudo recente publicado pela Comissão Europeia. Na comparação com Grécia, Estónia, Irlanda, Reino Unido e Espanha, Portugal é também o País que regista um dos maiores aumentos de risco de pobreza devido às medidas de consolidação orçamental adoptadas durante a crise, ultrapassando a barreira dos 20% da população em risco.»

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Dogmas

A triste realidade dos números e um número razoável de economistas (como este) desmentem a fórmula, no entanto a malta persiste impante na sua onda thatcheriana, friedmaniesca ou lá o que é. Dogmas são dogmas, não desaparecem só porque se estampam (e estampam o país) contra o pormenor de uma parede.