Mas também é claro que a China toma por entretenimento de mau gosto
programas que classifica de «golpes estratégicos para ocidentalizar e dividir o
nosso país». E impõe em sua substituição outros que «promovam as virtudes
tradicionais e os valores fundamentais socialistas». Se se tivesse ficado pelo
banimento dos reality shows, sem
considerandos de ordem geopolítica nem sucedâneos proselitistas, os leitores do
Canhões corriam o risco de lerem aqui amanhã um hino ao Império do Meio — e
debandariam de vez, considerando irreversível a demência do artilheiro.
Qualquer intervenção do Estado nas televisões, nos jornais, nas
editoras, nos teatros ou nos cinemas está sempre a um passo curto de ser um
erro. A linha que separa o intervencionismo do paternalismo, do proselitismo ou
da pura manipulação é fina, muito fina. A informação, a cultura, as ideias, a
arte devem ser deixadas em paz, se o objectivo é ter uma sociedade democrática,
livre, emancipada, plural, intelectualmente desenvolvida. No entanto, a
realidade faz-nos suspeitar que deixar as instituições trabalhar livremente não
garante todas as boas conquistas do mundo ocidental, não garante a sua
perduração. Suponho que não precisamos de ser todos pessimistas para concluirmos
que há um afunilamento do espaço público, uma tendência para a uniformização,
uma simplificação que amputa, reduz a diversidade, elimina a exigência e o
escrúpulo. Se tomarmos o exemplo das televisões, somos forçados a concluir que a
liberdade de acção não assegura a qualidade do serviço, mesmo que falemos
apenas de entretenimento. Teríamos de aplicar critérios muito estreitos e pouco
exigentes, deixando de fora imensas manifestações da inteligência e do espírito
humanos e da sua variedade se quiséssemos considerar que sim, que as grelhas
actuais reflectem uma sociedade interessante. E é preciso ter em conta que, apesar
da Internet e do cabo, o espaço público continua a ser em grande parte formatado
pelos canais de televisão em sinal aberto, com todas as consequências que isso
tem no próprio desempenho social e económico do país.
Terá, então, o Estado de intervir, a exemplo da China, erradicando programas
de mau gosto e decretando grelhas correctas,
seja qual for o critério? Não creio. A linha é fina, mas não deve ser cruzada. Diria
que ao Estado compete talvez assegurar que a complexidade do jogo social não se
reduz, que não se eliminam variáveis nem jogadores, que o espaço público é mesmo
público e diverso, ou seja, passível de ser frequentado e influenciado por todos. Ao Estado compete assegurar que não
se constroem guetos à margem da manada hegemónica. Que não se cria um canal 2
para alívio de consciências e álibi do fartar vilanagem nos restantes três
canais, que há no gueto critérios de elevação do intelecto e dignidade do
espírito que não se aplicam ao resto. Como se faz isto? Não perguntem a Hu Jintao.
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