Depois a
habitação tornou-se um problema. Não a habitação: as rendas, houve uma reforma
legislativa, com a qual nem discordava fundamentalmente. Ainda assim, aquilo
que K. pagava em três meses passou a custar-lhe a casa num, o que alterava
substancialmente as regras do seu
jogo. Habitar o palacete, mesmo que
decadente, sem atractividade para a anterior classe média, era agora um luxo
que não podia pagar.
Antes de se
mudar para a rua, K. pôs um anúncio, e durante algum tempo viveu com companhia.
Mas não se habituava. A decisão de subarrendar partes da casa, para além de o
ter ajudado a suportar a prestação mensal por um curto período, estava de
acordo com o seu pensamento político — união de esforços, partilha de
sacrifícios, coisas assim. Porém, uma coisa é encontrar virtudes teóricas em
certos aspectos do comunismo, outra é viver em comunidade. Por mais que o
satisfizesse acolher pessoas que os bancos tinham posto na rua, K. não se
acostumava a comungar o quotidiano. De repente era como viver num hostel, desconhecidos a partilharem a
louça, a cozinha e a sala de televisão, o autoclismo a soar sem que sejamos nós
a puxá-lo, gente que canta no banho ou fala a dormir, tipos que arrotam ou
cortam as unhas enquanto vêm as notícias de mais austeridade — o teatro
impudico e repugnante da intimidade alheia. Ter reservado para si o direito de
ficar na velha suite, com a sua casa
de banho privativa e a sua antecâmara, não protegia K. de uma excessiva
proximidade às vidas dos outros.
Por isso,
até agora K. animava-se a si próprio dizendo com humor que uma das vantagens de
dormir na rua era não ter de suportar gente a ressonar no quarto ao lado.
Infelizmente,
há males piores, descobriu K. com desalento quando um casal de maltrapilhos
particularmente roncante fez a cama de papelão nas imediações da sua.
«Esperemos que sem-abrigo sejam gente a quem falte o ânimo da cópula», rogou
depois K. a Ninguém, lembrando-se de que na sua curta experiência de vida em
comunidade havia coisas mais intrusivas do que pessoas a ressonar.
A vida de K. (6)
:)
ResponderEliminar... a tentação da escrita é lixada, não é?
Pior! A tentação diabólica da partilha!
Do auditório.
Do olhar do outro.
Lixado, isso...
eu sei.
:)
é muito bom lê-lo.
deixe-se tentar sempre.
;)