Há a questão dos ídolos. K. não pode dizer que tivesse conhecido pessoalmente
algum nos anos 80. Dos anos 80.
Contudo, na sua adolescência ainda contactou com dois ou três dos que tinham alcançado
grandeza na década anterior.
Objectivamente, não é bem assim. Os seus ídolos de vizinhança apenas tinham
tocado a grandeza ao interpretarem, à
guitarra e em cima de palcos apertados e pouco seguros, a musicografia de sessenta
e setenta. No entanto, K. não sentiu neles a fraude que se sente quando se
compra fancaria. Eles eram genuínos, the
real thing. Podiam limitar-se a fazer covers
dos êxitos da sua época, mas soavam como os originais, vestiam e não cortavam o cabelo como os originais,
transpiravam como os originais, drogavam-se como os originais. Não se distinguiam
dos originais excepto por estarem vivos ou fisicamente presentes.
Um tipo da geração de K. não procurava aprender com alguém musicalmente
activo em 80 — competia com essas
pessoas. A quem K. pedia conselhos e aulas de guitarra era aos ídolos de setenta.
Aprender as canções que eles tratavam por tu, como filhos legítimos, era ser-se
iniciado na linguagem dos deuses, de que todas as canções de 80, mesmo as que
K. pudesse escrever, emanavam, eram sucedâneos. K. imagina-se a sentir vaga
camaradagem por algum condiscípulo da sua geração, mas o respeito, a admiração,
o afecto reserva-o todo para aqueles
que usavam calças à boca-de-sino antes de elas serem retro fashion.
K. acredita, em suma, que há na música, ainda que revolucionária e
libertária, uma hierarquia (ou uma cronologia) a respeitar, um código de honra e
de valores onde os mais velhos ocupam
lugares determinantes, como em certas tribos.
Sentando no túnel do metro para mais um dia de trabalho, com um orgulho
melancólico nas suas calças de ganga genuinamente
gastas e rotas, K. reflecte sobre tudo isto na hora de escolher o repertório.
Experimentou alguns temas seus contemporâneos, mas nenhum lhe soa bem à viola
acústica. K. não dispõe de suporte electrónico mas não julga ser esse o
principal óbice à verosimilhança, embora lhe pareça haver um problema de
credibilidade quando se está de chapéu estendido a evocar um imaginário tão
eminentemente burguês e entediado como o de oitenta.
A vida de K. (7)
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