quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O futuro

Quando no fim da adolescência (talvez mais tarde, pronto) comecei finalmente a acreditar que também eu haveria de morrer, chorei por antecipação a mágoa de não estar cá para testemunhar tantos progressos e descobertas científicas que a humanidade haveria de fazer mesmo sem mim. Era uma sacanice haver evolução para admirar e eu ter terra nos olhos. Viagens interestelares, teletransporte, semana laboral de dez horas, coisas destas. Achei fraco prémio de consolação ter-me sido dada a oportunidade de ver passar de moda aqueles visionários telemóveis pequeninos de abrir a meio preconizados pela série O Caminho das Estrelas.
O futuro sempre foi o meu lugar, e não só porque seguia a sábia doutrina do deixa para amanhã o que podes fazer hoje. Quando li os clássicos, fi-lo porque os encarei como novidades, produtos de uma era adventícia — a minha idade mental era a de um homo neanderthalensis, se comparada com a dos defuntos escritores. Mas mal pude convencer-me que essa etapa da minha formação estava cumprida, que tinha bagagem suficiente para não parecer completamente estúpido (o que ocorreu prematuramente, ao contrário do início das leituras), determinei que um livro com mais de três anos era velho. Isso levou-me a percorrer do fim para o início a obra dos autores vivos que achei dignos de serem lidos na íntegra (talvez com consequências na minha percepção cronológica do mundo). Como nesta área fui um patriota entusiasta do esbanjamento, nos anos Sócrates acumulei livros que não tive tempo de ler e, quando mais tarde olhei para as datas de edição, percebi o desperdício de ter investido em obras que já não leria, por terem ultrapassado o meu prazo. Mas, tirando estar a, como se diz, hipotecar o futuro da república, não era grande a chatice. Dava-me bem com a produção mais recente. Não via razões para estar pessimista quando ao talento literário das gerações vivas e rejubilava particularmente, por antecipação, com as pérolas que estavam ainda no prelo ou mesmo no disco rígido dos escribas. Acreditei durante muito tempo que o melhor estava sempre para vir. Até sentia alguma excitação com a ideia de livro digital, nas suas primeiras e futuristas visões.

Depois o livro digital veio mesmo e o mundo editorial transformou-se. (Uma coisa não foi causa exclusiva da outra.) Houve várias mudanças: o apogeu dos franchises, dos autores mediáticos, das vedetas ocas feitas escritor, a retracção da crítica e das páginas literárias na imprensa e na vida social, a mercantilização do livro, a concentração em grupos editoriais grossistas, o domínio do gosto de uma classe média iletrada, uma idade política favorável à dinâmica de mercado. De repente, o futuro não é assim tão promissor. Muitos jornalistas e especialistas de literatura passaram a discutir mais os suportes e a forma em que a escrita pode ser embrulhada do que o que ela tem para dizer. Os gadjets e as operações comerciais das empresas concentraram as atenções. A palavra ainda é livro, mas é um grande chapéu-de-chuva, já não se refere à mesma coisa.

Os escritores continuam a escrever e a internet até facilita a edição. Há um site, por exemplo (referido pelos Booktailores…), que anuncia «dez dicas para autores ou escritores independentes» (desconfio que é sintomática a distinção entre autores e escritores). Mas nas dez dicas apenas uma vez, e só no título, vem mencionado o interesse de se escrever um «bom livro». O resto são sugestões sobre marketing, estudos de mercado, estratégias de venda, questões técnicas, propaganda.

Não perdi o optimismo quanto à qualidade da literatura — perdi-o quanto ao pormenor de a boa literatura ser editada. Face à avassaladora mercantilização da vida social e cultural, à forma como o vazio e o supérfluo substituem o essencial, como as pessoas do meio e os leitores se deixam levar pela onda ou sucumbem a ela, prevejo que a boa literatura editada tem os dias contados ou será marginal, difícil de adquirir, demasiado cara. A boa notícia é que já não devo estar cá para ver.

Já não sou, portanto, um tipo do futuro, embora ainda não seja um indefectível do passado. Deve ser isto o prenúncio da meia-idade.

1 comentário:

  1. Tudo se publica. Tanto, que não há vez que não me sinta afrontada quando redopio numa livraria.
    Quedo-me numa aflição psicossomática com as medonhas toneladas de capas e folhas de tantos e tantos livros que se agigantam sobre a consciência que deles tenho. Um susto.
    Como compreendo o seu sentir, também antevejo uma solução. Um truque. A boa literatura aliar-se ao mercantilismo dos patos. O escritor levantar a sobrancelha dom quixotesca para a lente que capta o leve sorriso e juntar uns pós de perlim-pim-pim à edição: um leque (visto), um lenço (visto), um bilhete de cinema 3D (se não visto, já banal), uma chave para um qualquer mistério; um jogo, um desafio, um segredo. Nada.
    Editar apenas e só a palavra.
    Coragem. Resiliência. Não vê a história daquele-que-gostaria-fosse-do-meu-sangue?
    Passada a meia idade, sucede a outra. E a seguinte. E depois, quem sabe, o paraíso.
    Um livro pode ser isso.
    Sossegue.
    O que é nosso, está guardado.

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