sábado, 28 de setembro de 2013

O civismo e a caça ao Raposo

«O civismo não nasce no coração dos homens e não está na genética de um povo. O civismo nasce na espada que protege a lei.» (Henrique Raposo, in "Uma cidade sem cães, s.f.f.", Expresso)

Por acaso, até concordo em boa parte com esta frase de Henrique Raposo. Não concordaria que fosse ele a decidir o que é “civismo” — o homúnculo é demasiado reaccionário (não misturar com conservador) e confunde demasiado os seus interesses e os do country club a que aspira ser membro com o interesse geral para que o deixemos ditar unilateralmente leis para a urbe. Como ele desejaria.
Raposo utilizou a frase num artigo onde revelou a sua utopia («pessoal, intransmissível e impraticável», concedamos-lhe) de cidades sem cães.  Eu, por exemplo, também tenho utopias semelhantes, entre as quais as de cidades sem crianças. Parafraseando Henry Fox (ele há-de gostar da versão british do nome, não?, no seu fato de riscado e tudo), cidades onde um sujeito pode estar no parque sem ser interrompido por um puto a rosnar, cidades onde um sujeito não tem de aturar a petulância dos pais, ai, esteja descansado que ele (o puto) não morde, nem lhe berra aos ouvidos, nem desperta em si o instinto assassino da espécie.
Outra das utopias que tenho é a de cidades onde os fumadores não são excepções e são decapitados de cada vez que deitam com o maior desplante a beata ao chão, a enterram na areia da praia ou despejam os cinzeiros dos carros nas bermas das estradas. Mas a maior e mais utópica utopia que tenho é a de cidades sem teenagers e universitários aos berros símios pelas ruas, a partirem garrafas e copos como quem deita a beata por cima do ombro, com a mesma naturalidade dos gestos comuns e aceites pela civitas, a mijarem pela cidade inteira como se a humanidade de que com generosidade nossa ainda os deixamos fazer parte não tivesse inventado a retrete e o recato da retrete, a mijarem-me a porta do prédio com o mesmo à-vontade e conversas imbecis e desprezo que têm nos balneários da escola pública que tanto custou a instituir e que eles não merecem nem em bebés.
Os cães de Raposo são um problema na cidade, evidentemente. Há falta de civismo por parte da uma grande parte dos donos de bichos (que, menos mal, já não põem as suas crianças a cagar no espaço público, embora ainda as ponham a mijar ali com irritante frequência). Há um desprezo egoísta desses mesmos donos pelas pessoas que não simpatizam ou mesmo têm pavor dos bichos que para mim até são geralmente amorosos. A trela ou o açaimo não são imposições da Inquisição, são formas sensatas de procurar o equilíbrio entre quem quer passear os seus bichos e quem a eles tem aversão ou medo. (Ainda que, se pegássemos nas ideias neoliberais para a humanidade e as aplicássemos aos canídeos, devêssemos na verdade soltar todos os animais da terra e deixá-los, como os rafeiros do Lemon Brothers, competir livre e selvaticamente pelo território, pelo mercado, pelas canelas do Raposo.)

Voltando à frase de abertura (até porque tenho de ir trabalhar, o Expresso não paga os meus devaneios), o civismo não nasce, de facto, «no coração dos homens e não está na genética de um povo». Não de todos os homens, não por certo de todo o povo. O próprio Estado de Direito é uma aberração histórica que apenas foi possível implantar porque houve um tempo em que homens bons, cultos, inteligentes, intelectuais e, por um acaso na história da humanidade, sensíveis e solidários, houve um tempo, dizia, em que este género de homens tinha acesso ao poder. Hoje, os partidos e os imbecis que lhes permitem a existência, os mesmos imbecis que amanhã, 29 de Setembro, vão eleger dinossauros, seus delfins ou siameses, não estão para aturar homens destes.


Não digo que o civismo «nasce na espada que protege a lei», mas em certas alturas não passa sem ela, ou — vá lá, não sejamos tão raposisticamente medievais na escolha das metáforas — não passa sem a multa ou o tribunal, versões extremas, mas por vezes necessárias e ainda civilizadas, da hoje inexistente censura social a comportamentos egoístas, cretinos e lesivos da liberdade alheia. O Estado de Direito e os seus tribunais são, aliás, o único obstáculo entre mim e o meu desejo selvático de anunciar ao Bloco ou ao MRPP que a caça ao Raposo é legal durante todo o ano.

Dia de reflexão

1. Muitos acham ridícula a lei que impõe um dia de reflexão antes das eleições. Eu acho ridículo que a lei não imponha 15 dias de reflexão antes das eleições — incluindo o mesmo silêncio e pacatez dos sábados de véspera de urnas.

2. Não me parece provado que se forme melhor consciência política na histeria do circo do que no silêncio dos cemitérios.

3. Todos os dias deviam ser sábado de reflexão ou, em alternativa, inscrevia-se na Constituição o dever de os partidos com mais orçamento guardarem 1440 minutos diários de silêncio em memória da honra que lhes faleceu.

4. Preventivamente, o dia depois das eleições devia ser também sábado de reflexão. E os 1459 restantes (1824, no caso das presidenciais).

5. Na verdade, o sábado de reflexão devia começar às 00h00 de um belo e chuvoso dia de Outono (como o de hoje, por exemplo) e continuar em vigor enquanto a Terra tiver voltas para dar ao Sol.

6. É certo que neste regime algumas pessoas ficariam de certo modo dispensadas de existir, mas, como eles (não) dizem, alguém tem de se sacrificar, não é?

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Never mind the gap

Na altura, entre a província e a capital havia um gap um pouco maior do que aquele para que avisa intemporalmente a voz do Metro de Londres. A admiração que a província tinha pela coreógrafa Olga Roriz, por exemplo, era reflexa. Obediente aos media — no tempo em que os media gastavam tempo com artistas como a Olga Roriz —, a província remetera-a para a galeria dos notáveis da nação e tinha-lhe a vaga estima que se dedicava a influentes estadistas estrangeiros, vivos e mortos, ou mesmo a um ou outro mais distante político da pátria.
Um dia a coreógrafa trouxe a companhia à província e a província acorreu engalanada ao recinto. Era a Olga Roriz! Ali chegada, a província não conseguiu mais do que deixar cair desajeitadamente os queixos. Foi como se alguém revelasse que afinal a Torre de Belém não era maior do que uma torre de xadrez. Ou antes, como se fosse anunciado que o Tejo não era um rio, mas um laguito de águas paradas e rasas. A província embasbacou. O que era aquilo? Que farsa era aquela? Quem tinha mentido à província?
O problema era que a companhia de dança de Olga Roriz não dançava, não nos termos em que a província se tinha habituado a imaginar a dança. Pensava-se no folclore, no ballet ou no Fame e nada daquilo encaixava, não sem grandes esforços da imaginação.
(O mito Pina Bausch durou porque a alemã teve o bom senso de não sair de Lisboa sempre que veio a Portugal. E de morrer entretanto.)

Mas felizmente o desacerto entre a província e a capital foi já bastante ultrapassado. Tirando uma ou outra distracção do jornal de Belmiro, os media passaram basicamente a ignorar tanto Roriz como Bausch e, muito adequadamente, inauguraram-se feiras e piqueniques na Praça do Comércio. Suponho que a província esteja assaz satisfeita com a aproximação que a capital lhe fez. Mas o melhor é que hoje já ninguém é enganado, já não se fazem notáveis que não sejam transparentes à mais desarmada vista e apresentáveis em qualquer romaria, de Unhais da Serra à TVI.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Time Out


Crítica de Sara Figueiredo Costa ao meu romance "Os Idiotas" na Time Out Lisboa desta semana. Pronto, já podem ir comprar.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Deus não é um ET, bolas

Num questionário qualquer (sim, esse que no final faz de todos nós nórdicos) fui confrontado com a questão de acreditar ou não em Deus. A pergunta, com certa crueldade, não permitia nuances ou agnosticismos, não deixava espaço para o conforto da neutralidade ou do adiamento. A reposta tinha de ser «sim» ou «não». Acreditas ou não acreditas, perguntei a mim mesmo, sentindo-me encurralado, confrontado, obrigado a decidir-me. Disse que não, porque tudo à minha volta e dentro do meu cérebro grita «não». Mas a dúvida permaneceu. Talvez por medo, medo católico de que os meus modestos pecados mereçam ainda assim as chamas do Inferno. Talvez por uma cautela de inspiração pascaliana. Certamente pela vergonha instintiva de me mostrar crente num mundo pragmático. Respondi negativamente lamentando que não houvesse a opção «não sabe/não responde» disponível em inquéritos mais sensatos.

Entretanto vi um post a informar que «Luzes no céu voltaram a ser observadas de Norte a Sul de Portugal» e o meu coração acelerou, a minha alma excitou-se. Não como acontece aos peregrinos que, a caminho de Fátima, desatam a cantar «a 13 de Maio…» sempre que à noite os sobrevoam as luzes do helicóptero do INEM transportando mais uma vítima da sua própria promessa. O post era do site UFO Portugal e parece que as luzes não eram balões de LEDs.

Suponho que um bispo da IURD me perguntaria o que há de errado em mim, um tipo devidamente crismado que rejubila mais com notícias de nerds do que com as boas novas do Velho Testamento. E alguma coisa deve haver, claro. A possibilidade de testemunhar um milagre religioso deixa-me indiferente ou atento aos sinais de fraude, disponível para rir e derramar paternalismo. A hipótese de um avistamento extraterrestre, pelo contrário, põe-me a olhar discretamente os céus, a sonhar com encontros imediatos, a correr para o clube de vídeo para alugar de novo Contacto. Embora não desaproveite a oportunidade para rir e derramar paternalismo (nunca se deve perder uma).

Encontrar Deus é o susto de me ver desmascarado na minha hipocrisia, no meu cinismo, na minha pusilanimidade, nos meus vícios. Encontrar um ET é tocar o verdadeiro Mistério. Jamais senti uma epifania ou qualquer tipo de excitação da alma ou do intelecto nos meus contactos com a Bíblia; mas senti-me inquietante e maravilhosamente próximo do Inefável quando li Encontro com Rama, de Arthur C. Clarke.

Suponho que isto diga também qualquer coisa sobre as tão propaladas virtudes literárias da Bíblia, faça dos evangelistas autores menores, se comparados com Isaac Azimov ou Philip K. Dick. Imagino que as coisas poderiam ser diferentes se Marcos, Mateus, Lucas e João tivessem sabido deixar o rosto do Senhor desconhecido, em vez de fazerem do simples acto de nos vermos ao espelho um spoiler. Se tivessem inventado um 13.º apóstolo tão fugaz e perturbante quanto o 8.º passageiro. Se, eles e os seus continuadores, tivessem conseguido fazer uma narrativa menos autobiográfica, recalcada e catártica (logo, amadora). E, claro, se não tivessem assinado os seus livros com nomes de cantores pimba brasileiros.

Deus está no meio de nós e esse é o problema. Ele devia ser apenas uma probabilidade ínfima e ignota na zona habitável da estrela Gliese 667C ou de outra mais distante.

sábado, 21 de setembro de 2013

Talvez divirta


Quem estiver interessado em acompanhar a saga do meu romancezinho pode fazer amizade no Facebook com o protagonista Lúcio (www.facebook.com/luciopeixao) ou clicar "Gosto" na página www.facebook.com/osidiotaslivro. Não custa nada, é útil e talvez divirta. Veja-se, por exemplo, a carta que Lúcio escreveu aos jornalistas: 


«NOTÍCIA DE UM SEQUESTRO
O meu nome é Lúcio Peixe e fui sequestrado. Há uns meses enviei, sob pseudónimo, um manuscrito autobiográfico para a editora O Lado Esquerdo. Disseram-me que tinham gostado muito da obra, sobretudo pela sua tocante sinceridade, e gostariam de a publicar. Convocaram-me para um encontro onde acordaríamos os detalhes da edição. Na verdade, mal entrei nas instalações da editora, um dos raros edifícios no Alentejo com cave, bateram-me com um cão de louça na nuca e puseram-me a dormir por 48 horas. Quando acordei, estava amarrado a uma cadeira de vime, parece que produto do artesanato local, e com o verbo impedido por duas voltas de fita-adesiva castanha, da que se usa para embrulhos.
De lá para cá, conseguiram subtrair-me a password de acesso ao meu perfil do Facebook e têm-se feito passar por mim. O que pretendem exactamente não sei. Mas avançaram para a edição do livro com bizarras alterações factuais. Do autor, eu mesmo, fizeram apenas personagem da obra. O meu pseudónimo, “Rui Ângelo Araújo”, esse vitupério que em má hora resolvi inventar, surge agora como pessoa real, com um sorriso imbecil na badana que pede mesmo que o encham de alcatrão e penas, à boa maneira do farwest.
Achariam a história demasiado inverosímil para a apresentar como autobiografia? Podiam tê-lo dito, que eu tentaria adaptá-la ainda mais à realidade.
Tenho sido alimentado, felizmente, mas confesso que já estou farto de açorda e sopa de tomate. Em relação aos coentros, então, sinto uma fúria verdadeiramente pesticida.
Preciso de ajuda. Nas minhas idas à casa de banho tenho conseguido passar umas mensagens, mas os idiotas que a elas têm acesso não fazem mais do que publicá-las no Facebook, como se isso resolvesse algum problema na vida real. Na minha vida real.
Escrevo-vos porque, no debate que opõe o jornalismo clássico às novas tecnologias da comunicação, estou do vosso lado, do lado dos bons e velhos jornalistas um pouco obesos e alcoólicos. Se há uma esperança de a verdade vir ao de cima (e ser amplamente difundida) nesta crise despoletada pela edição do famigerado “romance” Os Idiotas, ela passa pelas redacções. Por favor desmascarem a cabala em que me envolveram. Ajam antes que Os Idiotas seja um bestseller pelas razões erradas: aquilo é um drama biográfico, não uma comédia ficcionada! (E muito menos uma pílula da felicidade, como já ouvi que iam anunciar. Ou um manual autárquico.)
Façam qualquer coisa em favor do livro e, já agora, chamem a merda da polícia, que já tenho as costas marcadas com um padrão de artesanato mediterrânico que não combina nada bem com a minha índole. Socorro, portanto.

Sinceramente vosso,
Lúcio Peixe

Informações úteis para a Judiciária:
www.osidiotas.pt
www.facebook.com/osidiotaslivro
http://www.revistadevinhos.pt/»

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

3* - O fim do romance

No que se refere ao romance em geral, há ainda quem vá mais longe e vaticine a sua morte. Para já, que eu saiba, apenas um ou outro escritor geronte (Roth), um ou outro guru das novas tendências ou tecnologias. No primeiro caso é talvez uma questão de ego ou de mágoa: comigo morre o mundo ou o mundo que me sobrevive nada terá que valha. No segundo caso é só uma questão de patetice, infelizmente com o flanco coberto pelos media mais populares. Mas, de novo, há que ter em conta a indústria e a televisão. O fim do romance pode tornar-se uma militância, rapidamente apoiada pela matilha popular. Do mesmo modo que o fim da poesia foi há poucos anos decretado por alguém com meios para o ajudar a tornar-se realidade (um responsável da Porto Editora), a literatura que não inclua vampiros, bruxos ou látex pode ver-se reduzida a samizdat de 300 exemplares enquanto o Diabo (de Rodrigues dos Santos) esfrega um olho.
No mundo literário, importa não ignorar as diferenças — mas talvez convenha relativizá-las.

* Considerando que os posts anteriores foram os números 1 e 2 da série.

2* - Inimigos da literatura

Não é incomum as pessoas medirem o mundo pela sua própria bitola, também se se trata do mundo o literário. Quando os escritores se arregimentam numa escola, fazem-no quase sempre como se houvesse uma guerra e eles estivessem numa trincheira. Fora do buraco que cavaram para si próprios, tudo deve ser aniquilado, nada merece existência. Na versão benévola, tudo fora da trincheira é medíocre ou inútil.
É bom que a espaços haja destes belicismos. Do confronto é que surgem as coisas boas e novas. Almada estava provavelmente a exagerar no Manifesto Anti-Dantas, mas foi bom que o escrevesse.
Mas passados os ardores da juventude e vencido o complexo de Édipo, é um pouco estúpido permanecer entrincheirado.  A diversidade não deveria ser um termo restrito à ecologia.

Para além disso, os tempos não estão para guerras do alecrim e da manjerona. Se no início do século XX toda a batalha se travava entre artistas e escritores de diferentes facções ou gerações era porque eles tinham basicamente o monopólio das artes; no início deste século há que considerar as massas, a indústria e as TVs. Se se distraem muito, não tarda as lutas fratricidas serão travadas na clandestinidade ou num reduzido, irrelevante, inútil anonimato. Talvez o inimigo da literatura não seja o tipo que gosta de coisas diferentes de nós. Esse ao menos ainda gosta de literatura.


* Considerando que o post anterior foi o número da série.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O romance convencional (Liberdade x A Piada Infinita)

Pessoa amiga conta-me que lhe ofereceram recentemente os romances Liberdade (de Jonathan Franzen) e A Piada Infinita (de David Foster Wallace). Percebe-se a escolha: de forma mais ou menos assumida ou por interpostos críticos, ambos os autores (e ambos os livros) foram candidatos à categoria recorrente de o (novo) grande romance americano. Quando a feliz aniversariante mostrou os presentes a um outro amigo, ele teve uma compreensível reacção idiossincrática: «Lê muito a Piada; queimamos já aqui o Liberdade
É certo que Franzen competiria melhor com Wallace se o livro escolhido fosse Correcções. Ou antes: competiria um pouco mais no mesmo terreno de Wallace se o livro considerado fosse este último. Contudo, Liberdade continua a ser um grande livro, ainda que mais convencional.

Há várias razões para não se gostar de Franzen, e ser “mais convencional” parece ser uma delas.
Um post de Nuno Costa Santos, por exemplo, defende que «o romance convencional já não chega lá». E já não chega lá porquê? Porque «não basta a historinhazinha, a trama branda, as personagens bem desenhadas mas sem fogo». Porque «a realidade, contraditória e conflituosa, está a reivindicar atenção». Porque «é necessário assumir o quase sempre evitado "eu" — um "eu" que não é o ego tout court, é um jogo literário arriscado entre a vida e a ficção».
Pelo meu lado, julgo excessivo presumir-se que o romance convencional se define daquela maneira. Talvez aquilo defina um romance fraco, mas não exactamente um romance convencional. O romance convencional terá uma história, uma trama, personagens bem desenhadas — os diminutivos paternalistas e os qualificativos pejorativos excedem a definição. Por outro lado, não seria descabida generosidade considerar que o romance convencional tem tido os seus momentos de aggiornamento, de sábia atenção à «realidade, contraditória e conflituosa», e de assumpção do «eu».
Creio que Costa Santos, como se depreende do resto do seu texto, queria na verdade dizer que, em sua opinião, o romance convencional não tem sabido chegar lá. Ou mesmo que o romance convencional já não tem forma de chegar lá.
E aqui talvez entremos no domínio do estilo e das preferências.
Por ter crescido num tempo e num canto de Trás-os-Montes onde não havia tutores nem escolas literárias ou figuras de referência, tornei-me, julgo que felizmente sem traumas, num tipo ecléctico no que se refere a géneros e estilos. Ou talvez apenas descomplexadamente generoso no que toca a leituras. A verdade é que se rejeito por vezes certos livros não é porque os ache necessariamente maus. É apenas porque estão desacertados comigo (ou, geralmente, eu com eles).

Tendo-me divertido mais com A Piada Infinita e tendo sido mais estimulado por Wallace, não vejo contudo razões para desconsiderar Liberdade ou temer que o “romance convencional” já não sirva. 

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Praxe

Comentário de um paisano sobre a praxe ali perto: «Ainda nem os deixaram ir ver a universidade e já os estão a foder.»

Ou de como a sageza popular é suficiente para deitar por terra qualquer treta hipócrita sobre a praxe enquanto forma de introduzir os novos alunos na vida universitária, de os guiar pelo campus, de os integrar na comunidade académica.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Os Idiotas


O livro mais tonto e sagaz do ano (é assim paradoxal e humilde) lança-se hoje oficialmente na Sociedade Recreativa e Filarmónica 1.º de Janeiro, em Castro Verde. É um pulinho e há jantar.



quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Esperança

Leio que a «mensagem» de Índice Médio da Felicidade «é de esperança, associada ao amor aos outros e à solidariedade» e concluo que foi má ideia ter faltado às aulas de escrita criativa.

domingo, 8 de setembro de 2013

A literatura ou a vida

Há muitos anos, no secundário, acordei de um sono profundo a meio de uma aula quando me encontrei com a Ode Triunfal. Tinha passado de batucar indolentemente com os dedos na mesa a folhear com eles o livro do colega de carteira, como se passando as páginas conseguisse fazer passar os minutos, os longos minutos que demorava a passar a aula de Português.
Depois do longínquo ronronar das coisas abstractas, cuja anatomia indistinta era dissecada na mesa de um jargão técnico estéril e cuja relação com a vida neste planeta eu não lobrigava, o livro estava a oferecer-me um texto que ligava as palavras a sensações, que descrevia com assinalável verosimilhança o mundo e o relacionava com emoções que eu era capaz de identificar.
Havia uma discrepância entre o que eu estava a ler e o que tinham sido as aulas de Português até àquele momento, fastidiosos lapsos de tempo onde, sem que eu tivesse como o perceber (e de qualquer modo os professores, eles mesmos, não o percebiam), o ensino da literatura se fazia distinto, quase antagónico, da literatura. Imaginei que aquela ode de Álvaro de Campos seria um dos textos que não iríamos abordar na aula, porque tudo o que abordávamos na aula era chato e colossalmente destituído de humanidade. Senti-me transgressor. A insuflar a alma de uma coisa que não era grosseira, amarelada e, para mal das alergias, carregada de pó como velhos in-fólios. (Anos mais tarde concluiria com naturalidade que o que me condenava ao sono ou ao tédio não eram os textos, mas quem os ensinava e a forma como eles eram ensinados.)
Creio que vem desse momento epifânico a minha aversão a romances que tenham como protagonistas escritores em pleno exercício do ofício, que sejam estudos psicológicos, existencialistas ou pós-modernos de escritores ou de leitores, bibliotecários, editores, a minha aversão a romances que sequer ambientem vagamente os enredos no métier literário, que procurem piscar o olho ao leitor geek, profissional, ou que pura e simplesmente desconheçam a vida para lá da literatura. Há bastantes destes livros, os escritores tendem a ser umbiguistas e a literatura de alguns deles, com a conivência ou o deslumbramento de editores igualmente autocentrados, francamente tautológica.
Receio sempre que os autores de obras assim sejam como os meus professores do secundário, gente que tuteia a literatura mas a esvazia de vida. Salvo excepções, quando quero ler sobre vidas de escritores ou sobre o escritor no seu labirinto, procuro biografias, entrevistas, ensaios próprios ou de terceiros. Dos romances, da literatura, espero que tratem da vida, até mesmo da vidinha. Do roncar das máquinas aos «escrocs exageradamente bem vestidos».



*Este post cita de cor e dando-se muita liberdade um texto que escrevi há talvez década e meia e foi espoletado, o post, pela admirável versão da Ode Triunfal que a Maria Filomena publicou no seu Ferramentas e Espelhos

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Quem são os idiotas (ou a pequena comédia humana)

Na senda da campanha alegre que O Lado Esquerdo Editora tem vindo a fazer, perguntam-me por vezes quem são os idiotas do meu livro, não diria que à espera de uma resposta que lhes poupe 12 euros. Julgo que procuram antecipar o gostinho de ver confirmada uma certa imagem do sistema político português, aliás não desmentida pela campanha (a da editora e a outra). O que me parece uma expectativa natural, e por si mesma uma evidência do crédito que o sistema merece. Ou do gosto das pessoas pelo vilipêndio.

O livro não desapontará quem o aborde por este ângulo bicudo e seja paciente. Mas trairia os meus idiotas se não viesse em sua defesa. O autor sente afecto por eles e isto não é síndroma de Estocolmo, mesmo que seja verdade que as personagens de um livro nosso possam sequestrar-nos a alma por tempo indeterminado. Alguns daqueles que venham a ler o romance fá-lo-ão com menor ou (decerto) maior ânimo de encontrar os seus idiotas, figuras grotescas e mal-intencionadas. E encontrá-las-ão. Mas quem sabe não descobrem também os meus idiotas. E, com as subtilezas da semântica, o espelho da rainha da Branca de Neve e a prolixidade que um dicionário de sinónimos pode conter: «O que quer que sejamos, somo-lo por oposição aos cretinos, que são o resto das pessoas.»

Mas depois de passada a campanha (a da editora e a eleitoral), e de vendidos os exemplares suficientes para que O Lado Esquerdo e eu possamos ir de férias deste país, poderemos falar do que mais Os Idiotas tem — ilusões, desapontamentos, frustrações, vícios, precipitações, raivas, equívocos, marginalidade, renúncia e afrontamento, memórias atraiçoadas ou fabricadas — e de como tudo isto, a pequena comédia humana, pode afinal ser divertido e dispor bem.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Carne para canhão

Acusam-no, apesar do barítono, de não ter perfil de estadista — como afinal não tinha de cabeça-de-cartaz laferiano. Mas o nosso PM, para além de estentóreas qualidades tribunícias, tem uma digna postura generalícia, de general bonapartista. Tem o mesmo brilhantismo táctico (embora em segunda mão) e o mesmo sentido estético dos generais que berravam até a voz lhes doer para ninguém abandonar as linhas, para que todos marchassem ordeiramente. No campo de batalha como na parada. É verdade que o pensamento militar, que ainda havia de conceber as trincheiras, acabou por concluir pela estupidez da táctica, que apenas sobreviveu enquanto do outro lado vigorava estupidez semelhante. Mas tudo aquilo, todas aquelas encenadas e hollywoodescas manobras militares, que punham milhares de pessoas a mover-se num descampado como peças de dominó tombando num vasto e colorido jogo de efeitos, toda aquela carnificina apreciada à distância com o mesmo monóculo que se usava na ópera de Paris, todo aquele bailado demente muito apreciado pelos sádicos habitantes do Olimpo, foi necessário para que alguém escrevesse um calhamaço como o Guerra e Paz e, sobretudo, foi necessário para que hoje pudéssemos usar uma expressão tão exacta e esclarecedora como “carne para canhão”.
Se não existisse história militar, e perdoem-me a tautologia, não saberíamos hoje descrever o que pretende Passos Coelho e a aprumada, british style, tropa cerebralmente fandanga que temos como Governo. O que se nos pede, como há exactamente duzentos anos, é que, para que nada mude, para que se possa fingir que nada tem de mudar no sistema económico europeu, no próprio capitalismo, para que os rendimentos superiores possam continuar a ser abismalmente superiores, o que se nos pede e Passos Coelho repete com mais ingenuidade do que cinismo, embora este lhe sobre, é que tem de haver milhões de sacrificados.

Carne para canhão é, continua a ser, a grande táctica dos que, montados na garupa dos seus alazões, se relacionam com a mole humana ao milheiro, têm o milheiro como unidade de cálculo para os trocos como para os homens. Passos Coelho, como outros que o precederam, apenas cumpre ordens.