segunda-feira, 28 de abril de 2014

Metáforas estafadas

Chegam ruidosos, em modo botellón, com bebidas enfiadas em sacos e empurrões amistosos de gorilas na tundra. Argumentam, discordam, objectam, como costumam fazer nas pausas de ulular hinos futebolísticos ou apor letras obscenas a repertório tunante. Mas, surpresa!, a discussão é sobre figuras de estilo. Não sobre figuras estilosas do futebol ou da música. O tom e o vernáculo são os mesmos, mas o assunto é gramática. Defendem, uns, e contestam, outros, a ocorrência do advérbio metaforicamente.
— Metáforas existem, é óbvio, mas metaforicamente não se diz.
— Diz, claro que diz. Então se se diz anaforicamente, que vem de outra figura de estilo, porque não se havia de dizer metaforicamente?
Eu, que sempre demoro uns segundos a distinguir anáforas de ânforas, espanto-me e alimento a esperança de estar perante uma tertúlia literária. (Elas dão-se onde menos se espera, anelo.) Mas depois os tertulianos iniciam uma guerra convencional disparando cubos de gelo em todas as direcções, incluindo na dos carros estacionados, e um proprietário vem prevenir possíveis danos no seu Mitsubishi exibindo um martelo na mão («porque eram muitos», dirá mais tarde) e verifico com fadiga que não foi esta noite que o mundo saiu do seu eixo.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Os heróis e os cabos de João Miguel Tavares

A direita tem com o 25 de Abril uma relação difícil: ou o odeia ou o desvaloriza. Por vezes surge uma inesperada e comovente apropriação, como a do secretário de estado Pedro Lomba. No Público de terça-feira, João Miguel Tavares, outro jovem turco da direita, foi mais fiel à ortodoxia da tribo, mas nem por isso foi menos enternecedor. Munindo-se das ferramentas da condescendência e do lugar-comum, temperadas com uma pitada humorada de literatura, Tavares informou-nos que o 25 de Abril, ao invés de uma Revolução, foi um caso de não-acção típico dos portugueses. Para esta sua tese, elegeu como episódio central e representativo do movimento das forças armadas o do cabo-apontador Alves Costa — que se fechou no tanque para não ser obrigado a disparar, tal como conta o livro Os Rapazes dos Tanques. João Miguel reproduz o episódio, relaciona-o com a idiossincrasia lusa e culmina aquela secção do artigo com um lapidar «E assim se fez Abril».

Percebo que a vivacidade de algumas fotos do 25 de Abril seja perturbadora, e que certas pessoas, arrebatadas pela tensão das imagens, se sintam tentadas a refugiar-se num tanque. Mas isso não deveria servir para ignorar que naquele mesmo dia houve quem se posicionasse em frente ao canhão, de peito aberto. Quem, ao contrário de João Miguel Tavares hoje, não sabia que os tanques não iam disparar.

O cabo-apontador da história que encantou Tavares pode ser representativo de uma certa portugalidade. Portugal inteiro pode hoje ser fielmente representado pela personagem de Herman Melville, aquele Bartleby paradigma da passividade, divertidamente invocado por João Miguel. Não discuto isso. Mas só uma hermenêutica muito irreverente ousaria considerar que «Preferiria não o fazer», o mantra de Bartleby, é o slogan adequado ao 25 de Abril.

Por mais que custe ou não convenha à narrativa actual, a Revolução foi feita pelos tipos que se dispuseram a sair de Santarém e a enfrentar um regime, amolecido, é certo, mas que continuava a prender, a punir e a torturar. Um regime que tinha do seu lado gente que não hesitaria, como não hesitou, em disparar ou mandar disparar.

Enfatizar o papel do cabo-apontador Alves Costa em detrimento do de Salgueiro Maia é escolher a caricatura da pequena história em vez da dignidade do retrato, igualmente disponível.

O cabo-apontador, no artigo de João Miguel Tavares, teve o mérito de impedir «que a revolução se tornasse num banho de sangue», mas a coragem dos capitães que se dispuseram a fornecer sangue para esse «banho» parece ser menos relevante para a narrativa.

«Se há coisa em que os norte-americanos são realmente bons», diz Tavares, «é a criar heróis e memoriais». E conclui: «(…) nós não temos essa cultura em Portugal.» Pois não. E João Miguel empenhou-se em provar que não a temos — preterindo heróis inconvenientes a cabos de anedota.

Concluo com uma interpretação talvez também ousada (preferiria não o fazer, mas detestaria mais passar por bartlebyano): desvalorizar a coragem dos outros à distância de décadas e no conforto de uma boutade de jornal é, parece-me, uma cobardia.

Não praticantes

«O conservadorismo, segundo João Pereira Coutinho, busca evitar os males do radicalismo revolucionário ou do revanchismo reaccionário.»
Nos dias de hoje em Portugal, e no que toca à segunda parte da doutrina, os conservadores são como a maioria dos católicos: não praticantes.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

O meu prédio é uma metáfora nacional

O meu prédio é uma metáfora nacional. Durante anos apenas nos mijavam diária e copiosamente a entrada principal. Os excessos da boémia académica são o tributo que a terra aceita pagar pelos benefícios de ser uma cidade universitária. Pode dizer-se que Vila Real contribuiu activamente para hoje termos a geração mais indiscutivelmente bem formada da história lusa.
Como o progresso é imparável, no último ano temos também diariamente mijada a porta das traseiras. Já não pelos frequentadores das tascas do bairro, mas por adolescentes do prédio que se acoitam à noite, com as suas playstations, primeiros cigarros e cervejas clandestinos, numa das garagens familiares convertida em sala de jogos.
Lamentavelmente, dentre as benfeitorias levadas a cabo na garagem não parece constar nenhum WC, penico ou algália. Os papás proprietários da garagem não devem ter sentido necessidade disso porque confiam demasiado na elasticidade das bexigas juvenis, ou, mais certamente, porque não utilizam a nossa porta das traseiras, a mais discreta da fachada.
Em consequência da boçalidade adulta e da imbecilidade infanto-juvenil, do desleixo duns e da má-educação doutros, no meu prédio entra-se hoje sempre de mão no nariz e a descolar os sapatos depois de cada passo dado. O exercício é particularmente divertido e peganhento nos dias em que, como agora, há pó verde de pinheiros também nas entradas dos edifícios.

To send you my love

No Verão passado frequentei com certa assiduidade, para livros e vinho, a esplanada ocidental da Club House de Vidago. Tanto porque sou patologicamente avesso à humanidade (embora às vezes disfarce) e o sítio é pouco concorrido, como porque tenho romântica nostalgia de um passado aristocrata que não posso reivindicar e por tantas razões abomino.
Para lá das minhas bizarrias (e das minhas frases barrocas), locais como o Parque de Vidago agradam-me também porque providenciam um contacto delicado com a Natureza.
Por todas estas razões, aceito partilhar com poucas pessoas os momentos que ali passo, e a memória de cada tarde é preciosa.

Se hoje evoco este cenário é porque, por razões particulares, recordei uma tarde em que ali passeei com a mais nova das minhas irmãs. Não era a primeira vez que íamos juntos esquecer o mundo e a vida, mas naquela tarde de 2013 deambulámos descalços pelo relvado suave e levemente húmido dos buracos 17 ou 18. Talvez o momento panteísta apenas tenha sido intenso para mim, mas eu gostaria que aqueles minutos de felicidade tivessem tomado também o espírito da minha irmã deixando marcas duradouras. Que o meu amor e o meu orgulho nela, já que não saem por palavras, tivessem descido aos meus pés e ao solo como a corrente eléctrica das trovoadas e subido depois pelos dela ao seu coração. Se isso não aconteceu então, que esses sentimentos façam agora o caminho dos meus dedos para a ligação ADSL, do meu ecrã para o dela. Que de mim se aproveite alguma energia para fortalecer (ainda mais) a dela. A tua, irmã.

Pequenos retratos infames (3): Henrique ‘Santa Comba’ Raposo

É ilegítimo e vil usar aspectos físicos das pessoas para atacar as suas ideias ou posições políticas. Ou para as defender. Na minha pós-adolescência ocorreu acusarem-me de Júlio Isidro e simultaneamente piropearem-me de James Dean. (Hoje fariam pior.) Mas isso aconteceu, tanto para o mal como para o bem, porque na verdade ninguém, eu incluído, sabia ou se interessava pelo que eu pensava. Apenas estava toda a gente, de novo eu incluído, fascinada (como no circo) pelos diferentes ângulos da minha fotogenia: de frente para o James; de lado para o Júlio (nunca subestimem o poder afrodisíaco de um nariz).

Mas deixemos Narciso no seu lago. Se tivermos nobreza de princípios e intenções, será deveras impróprio e torpe lembrar o quanto Henrique Raposo, naquela sua foto de míope, se parece com um oficial das SS ou com um agente da Gestapo. O exercício é contudo legítimo se reconhecermos ao alvo dos nossos insultos uma inteligência capaz. Precisamente porque sabemos que Raposo não ignora as circunstâncias, as conotações e a vanidade de muitos dos seus artigozinhos irreverentes e caprichosos do Expresso, podemos, se formos igualmente mesquinhos, responder-lhe com um «Heil Hitler para ti também». Ou, pronto, não exageremos, o caso não é assim tão teutónico. Raposo talvez apenas se pareça com um mangas-de-alpaca doutrinário, uma espécie de primito lisboeta e envernizado do homem de Santa Comba, para quem basta um simples e nacional manguito das caldas. E se o caso for menos grave ainda — Raposo enquanto mero delfim de César das Neves, invejoso do sucesso daquele no anedotário luso (que não da avença, imagino que o Expresso pague mais) , até podemos achar o Henrique boa companhia para um copo. Quem não gosta de partilhar a mesa com um tipo mesmo de direita? Eu gosto, e o único amigo que tinha capaz de achar que a culpa da crise era dos gajos do rendimento mínimo vacilou nas convicções quando o Governo lhe foi ao bolso e o deixou mal equilibrado às portas do desemprego. Sinto por isso falta de alguém a quem possa pagar com gosto umas rodadas enquanto digo: o que bebes, nazi do caralho?

terça-feira, 15 de abril de 2014

GPS

Os movimentos parecem indicar tratar-se de mais um yogi, dos que por vezes aparecem no parque, mas a orientação precisa e constante, aquela maneira de encarar um ponto (para mim) indefinido a sudeste, revela outra intenção, outra atitude. Num primeiro impulso, com certa presunção de geógrafo ou de nativo íntimo do curso do Sol em Trás-os-Montes, estou tentando a corrigir-lhe a direcção do olhar, o azimute para onde aponta o rosto. Mas depois reconheço que preciso de consultar outra vez o mapa para localizar Meca, que, na verdade, eu próprio nos últimos tempos ignoro o norte.
Enquanto me debato com a magna questão dos pontos cardeais, dois élderes passam absortos no seu próprio ritual itinerante, ziguezagueante, mostrando como é ubíqua a existência de Deus ou como são múltiplas as maneiras de o Homem se desorientar.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Revista de imprensa e blogosfera

Os conservadores, como aquelas pessoas que encaixam a realidade nas previsões do Zodíaco, discutem entre si de que forma a sua bibliografia muito culta e cool explica a actualidade. Para fingirem solidariedade social, concedem que se dê uma atençãozita ao trabalho de Thomas Piketty sobre a desigualdade económica. Vasco Pulido Valente, pelo seu lado, foi ler mais um livro de história da I Guerra Mundial que explica, claro, como o Estado Social e qualquer forma de socialismo são insustentáveis. Os comunistas à antiga andam excitados com as conquistas da Rússia e repetem para si mesmos que são direitos e benfeitorias. Putin, vê-se pelas fotos do fim-de-semana, anda literalmente inchado de orgulho com o sucesso das suas campanhas (há quem diga que é botox, mas são calúnias, macho russo não estica o rosto, é ilegal). Na Coreia do Norte, diz-nos um jornalista da Lusa, afinal não se deitam os tios aos cães e há liberdade de penteado (que é, como se sabe, um requisito mínimo para a liberdade de pensamento, que sob o couro cabeludo se abriga). Já só faltam 76 dias mas a Europa parece mais bem preparada para o centenário de Sarajevo do que o Brasil para o Mundial de Futebol.

sábado, 12 de abril de 2014

De olho no céu

Na página Humans of New York leio que, de acordo com um mito nativo americano, cães com olhos de cores diferentes podem ver simultaneamente a terra e o céu (no sentido mítico, ou religioso). E isto para mim explica o génio de David Bowie.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Gel, mães e filhos (2)

Como a mãe do post anterior, talvez a minha não se tivesse importado de me comprar gel recebendo instruções por telemóvel, se houvesse telemóveis quando eu era adolescente e se a mercearia do bairro onde, família grande, nos abastecíamos a crédito para o mês, num vaivém de sacos que parecia diligência de Noé em véspera de dilúvio —, se a mercearia do bairro, dizia, tivesse a variedade actual de produtos e nós dinheiro para eles.
Sou dos que depois usaram gel e o largaram tarde, quando já corria o risco de ser tomado por deputado de um partido do arco da governação. Não fui deputado e a minha mãe decerto teve disso orgulho: não gostava que andássemos em más companhias.
A verdade é que, tirando o gel, nada mais me qualificava para deputado. Desde novo fui educado para ser humilde e sem ambições materiais. De cada vez que mostrava alguma ambição (uma bola, uma miniatura de tractor, algodão doce num arraial, um Fruto Real ou uma Schweppes, Sugus) recebia a resposta que hoje nos dá o Governo: não há dinheiro. Mas ao contrário do Governo, a minha mãe não o dizia com maldade de velha megera. Doce como era, dizia-o à superfície por vezes com rispidez pré-25 de Abril, mas com um coração de generoso revolucionário partido no peito. Ela que enfrentava a dureza da época como um Salgueiro Maia quotidiano (um que por vezes derramasse umas lágrimas).
Não lhe deve ter sido fácil negar-nos permanentemente os desejos. E tinha de o fazer em várias frentes (éramos seis, com interesses que variavam entre os dos que usavam chupeta e os dos que começavam a fumar). Mas depois ficou certamente contente por ver que os seus meninos lá medraram como Deus deixou — mantendo-se fiéis à linhagem: empenhados e humildes.
Por (triste) sorte, já não se dará conta de que neste país a humildade e o empenho se continuam a pagar mal e a castigar forte. Mesmo que em algum momento se tenha usado gel. Ou por causa disso.

Gel, mães e filhos (1)

Uma jovem mãe percorre as prateleiras do supermercado com o telemóvel na orelha. Procura um gel para o cabelo e percebe-se que, com branda resistência, está a ser dirigida remotamente pelo filho adolescente. Efeito molhado, fixação normal, forte ou extraforte, marcas, preços... As variáveis são muitas e é difícil encontrar um equilíbrio entre a exigência do rapaz e a carteira da mãe.
Não parece aborrecida com os caprichos do filho, talvez porque já teve ou testemunhou experiências piores. Protagonizadas por teenagers maldispostos, rudes, rufiões, que acompanham as mães às lojas como quem sequestra um desconhecido e o leva sob coacção ao multibanco mais próximo. Filhos que mandam calar as progenitoras e cospem em público ninguém te perguntou a opinião como bandidos sem paciência para as objecções patéticas e impertinentes das suas vítimas. E que, depois de escolherem algo da última moda para gangues (que um diligente criativo desenhou a pensar na globalização do Bronx), arrastam com maus modos a mãe para a caixa, deixando já adivinhar que à saída da loja atirarão com ela e a sua carteira vazia para uma valeta.

A mãe no supermercado fica por momentos esquecida a olhar carinhosamente a filha, talvez para afastar maus pensamentos. A rapariga, criança, entretém-se na secção de produtos para o rosto — não ainda a projectar-se na adolescência que tarda, mas porque as cores e as formas lhe parecem divertidas.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Imprudência

Com os cada vez mais evidentes sinais de regresso dos fascismos à Europa (e ao poder; a originalidade da Hungria não durará), com um clima político a leste cada vez mais prussiano, a direita continua, com moral de inquisidor, obcecada em punir os países e as pessoas que, na opinião dela, viveram acima das suas posses. A direita é muito estúpida, conivente ou imprudente. E receio ter escrito imprudente apenas por cortesia ou fair play.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Confidencial

Porque as coisas são o que são e porque esta noite me visitou o espírito carrancudo mas empreendedor do Torga, comunico aos que se interessam que editarei por mim mesmo, num qualquer dia solarengo, o Hotel do Norte e o Aranda. Não prometo é que esse dia esteja perto (e com isto não estou a ser um céptico do aquecimento global). 

O papel do jornalista tem dias

Nos posts anteriores defendi o papel do jornalista no caso Rodrigues dos Santos versus Sócrates. Muita gente o tem feito, alguns com particular ferocidade, incluindo o próprio José Rodrigues dos Santos. Contudo, não vi muita gente defender o papel do jornalista também nos casos das partenaires inânimes de Marcelo Rebelo de Sousa e Marques Mendes. Que de resto são comentadores há mais tempo.
É isto que me irrita ou entedia (depende das horas) na vida política portuguesa, este clubismo sem coluna e hipócrita, incapaz de esconder o longo rabo que deixa de fora. Onde têm estado os defensores do papel activo do jornalista nos longos anos que Marcelo leva de missa dominical? Onde estão quando é Marques Mendes a perorar sem particular contraditório?
Uma intervenção útil em defesa do jornalismo era terem aproveitado este episódio para reivindicar verdadeiros jornalistas também nos programas de Marcelo & Mendes — em vez de uma defesa de JRS que não consegue disfarçar um imbecil ódio a Sócrates e é na verdade uma defesa acéfala do Governo.