Como a mãe do post anterior,
talvez a minha não se tivesse importado de me comprar gel recebendo instruções por
telemóvel, se houvesse telemóveis quando eu era adolescente e se a mercearia do
bairro —
onde, família grande, nos abastecíamos a crédito para o mês, num vaivém de
sacos que parecia diligência de Noé em véspera de dilúvio —, se a mercearia do
bairro, dizia, tivesse a variedade actual de produtos e nós dinheiro para eles.
Sou dos que depois usaram gel e o largaram tarde, quando já corria o
risco de ser tomado por deputado de um partido do arco da governação. Não fui
deputado e a minha mãe decerto teve disso orgulho: não gostava que andássemos
em más companhias.
A verdade é que, tirando o gel, nada mais me qualificava para deputado.
Desde novo fui educado para ser humilde e sem ambições materiais. De cada vez
que mostrava alguma ambição (uma bola, uma miniatura de tractor, algodão doce
num arraial, um Fruto Real ou uma Schweppes, Sugus) recebia a resposta que hoje
nos dá o Governo: não há dinheiro. Mas ao contrário do Governo, a minha mãe não
o dizia com maldade de velha megera. Doce como era, dizia-o à superfície por
vezes com rispidez pré-25 de Abril, mas com um coração de generoso
revolucionário partido no peito. Ela que enfrentava a dureza da época como um
Salgueiro Maia quotidiano (um que por vezes derramasse umas lágrimas).
Não lhe deve ter sido fácil negar-nos permanentemente os desejos. E tinha
de o fazer em várias frentes (éramos seis, com interesses que variavam entre os
dos que usavam chupeta e os dos que começavam a fumar). Mas depois ficou
certamente contente por ver que os seus meninos lá medraram como Deus deixou —
mantendo-se fiéis à linhagem: empenhados e humildes.
Por (triste) sorte, já não se dará conta de que neste país a humildade e o
empenho se continuam a pagar mal e a castigar forte. Mesmo que em algum momento
se tenha usado gel. Ou por causa disso.
Gostei deste texto tal como venho gostando cada vez mais da forma como escreve ou dos assuntos que escolhe. Verifiquei como catalogou o texto e achei graça. Tem razão: encaixa bem em todas.
ResponderEliminarObrigado.
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