«O casal chegou trazendo um filho
pequeno pela mão. A mulher era naturalmente bonita mas a amargura ou o tédio,
ou talvez o ódio, pesavam-lhe no rosto, puxando os cantos da boca para baixo e
com eles as pálpebras, um pouco vermelhas, de um vermelho escuro, a caminhar
para o roxo. Não parecia ter estado a chorar, não era isso, embora também não
estivesse contente. Não eram, de qualquer modo, olhos violentados, ninguém
tinha desferido neles golpes físicos — mas havia ali sofrimento.
O homem, provavelmente da mesma
idade dela, no início dos trinta, tinha bom aspecto, mas um bom aspecto suspeito.
A barba, ainda que catalogável, inserida num protótipo comum a uma boa parte dos
homens ocidentais daquela geração, estava demasiado crescida naquele rosto, era
máscula em excesso. Depois havia a tentativa dele de parecer responsável com a
criança (acorria sempre mais tarde do que a mãe) e de liderar a visita à
esplanada, antecipando o pedido da companheira, que ela de imediato corrigiu
por não corresponder de todo ao seu apetite.
Na mesa ao lado havia um advogado
e o seu cliente. Ele tinha uma risca perfeita no cabelo, à direita, e o cliente
desgrenhava-se, passando mãos sapudas e transpiradas pela cabeça encaracolada.
O advogado era um Cyrano, ditando frases que o cliente repetia ao telemóvel.
Não era um caso de divórcio doloroso, ou a tentativa de o evitar: aquele
advogado era demasiado hesitante para enfrentar a ira de uma mulher e ao
cliente de mãos gordas não tinha sido dada a possibilidade de amar, pelo menos
de o fazer de uma forma romântica, mesmo que com poemas e serenatas sugeridos.
Eram certamente dívidas, acordos
mal consumados, contratos por cumprir. O advogado mostrava-se indignado com a
argumentação contrária que vinha pelo telemóvel do seu constituinte e tentava
ser mais implacável nas instruções que lhe transmitia. Em momento nenhum pegou
ele próprio no aparelho, pelo que teve tempo de reparar no desamparo da mulher
que acabara de se sentar na mesa ao lado, esquecendo por minutos (ou sempre) o
desamparo que oprimia o seu próprio cliente.
Uma segunda mulher subiu à cena,
vinda da parte inferior do jardim. O chão da esplanada estava pavimentado em pequenos
cubos de granito, mal aparelhados, e ela vinha com as cautelas que têm todas as
mulheres que usam saltos altos e não querem vê-los entalados nas juntas
traiçoeiras da calçada. Caminhava de pernas flectidas, ombros levantados,
tentando usar ainda menos os calcanhares, como em tempos antigos faziam alguns
dos que ousavam atravessar descalços as fogueiras de São João. Sentou-se do
outro lado do advogado, contribuindo para a desorientação dele, já dividido
entre o cliente à sua frente e a mãe amarga à esquerda.
Esta nova mulher (com tatuagens à
vista e uma respeitável massa corporal que a faziam parecer um nórdico
apreciador de cerveja) tinha o que se diria um toque oriental, com o cabelo
muito escuro penteado para trás e preso na nuca. Mas depois de melhor
observação, o que se via era alguém que desejava a toda a força e com um método
artesanal disfarçar a decadência do rosto. Talvez ela não acreditasse nos
cremes ou não tivesse dinheiro para plásticas. Ou talvez aquele expediente se
destinasse apenas a evitar ingenuamente que o duplo queixo ficasse ainda mais
saliente. Fosse como fosse, o seu rosto, as peles e as rugas, tudo estava
repuxado pelo cabelo, bem preso atrás, dando aos olhos uma obliquidade asiática,
de lutador de sumo, e às maçãs do rosto e ao maxilar superior um ar de roedor.
No entanto, o artifício não vencia a gravidade que lhe reclamava a ignóbil
prega debaixo do queixo.
A terceira mulher a chegar não
tinha nenhum destes problemas, embora nos seus dezoito anos se achasse certamente
repositório de muitos outros e mais graves. Tinha uma ponta de acne e os dois
rapazes que a acompanhavam não faziam jus à sua beleza entediada (mais do que
dramática ou trágica) como costuma ser a de muitas mulheres jovens. Levantou-se
logo depois de se ter sentado e reconhecido alguém numa mesa mais longínqua. Avançou
para ali com passo destemido, mas calculista. Havia três outros rapazes naquela
mesa do canto e só um era seu conhecido. Os olhos varriam a mesa, tanto para se
certificar de que não conhecia de facto nenhum dos outros dois como para os
avaliar, avaliar o seu potencial reprodutor, ainda que a reprodução, o fim
último, não fosse exactamente o que desejava.
O rapaz conhecido estava de
costas, o que facilitou a actuação. Pôde afagar-lhe o cabelo na nuca — manipuladoramente,
como ela sabia que os rapazes gostavam, gatinhos imbecis, sentindo-se por
segundos ingénuos os únicos destinatários do afecto de uma rapariga por quem
vertiam saliva várias vezes ao dia —, pôde afagar-lhe o cabelo na nuca e ao
mesmo tempo observar tacticamente o resto da mesa. Pediu um cigarro, fora essa
a desculpa para deixar o seu próprio grupo. O rapaz conhecido apressou-se a
oferecer um Marlboro, mas ela soube distrair-se o suficiente para em vez disso aceitar
um dos cigarros que os outros dois estendiam.
Havia ainda mais uma mesa, onde
dois homens avantajados e gabarolas falavam de sexo e violência, de ciúmes e vinganças,
de conquistas e sucessos em rixas, mas nessa mesa Inês preferiu não se deter. (Ainda
que talvez aquela fosse a mesa que mais fielmente resumia tudo.) Ajudou-a o
facto de a encenação estar a atingir o momento alto: a dada altura, a esposa
amarga (ou a mãe amarga, talvez o das barbas não fosse seu marido nem pai da
criança, não havia nele determinação ou acomodamento suficiente no que concernia
às duas relações) resolveu desistir. O filho que esbracejasse e derrubasse as
cadeiras e a louça; o das barbas que continuasse inútil e ele próprio aborrecido
com a relação; o advogado que a espreitasse de todos os ângulos que pudesse; e
os outros, os adolescentes e a mulher zangada com a idade e as pregas da carne
e os tipos gabarolas, que viessem no fim acusá-la de estupidez por se ter
deixado parir aquele filho. Encostou-se na cadeira e deslizou por ali abaixo, a
saia subindo pelas coxas, ela imergindo num mundo outro.
Talvez por obediência a um código
tribal, a mulher amarga e o acompanhante vestiam de escuro, exibiam uma espécie
de viuvez mútua, que a saia curta dela não resgatava. Por isso, aquele
triângulo claro, quando surgiu entre as pernas abertas, desleixadas,
desistentes, era eloquência pura: umas cuecas festivas, alegres, com um padrão de
formas zombeteiras, vermelhas e amarelas, sobre um fundo branco, imaculado.
Inês não pôde deixar de
considerar aquilo um novo grito do Ipiranga — ou um pedido de resgate. Aquelas
cuecas naquele casal. Desde o início desconfiara que, primeiro, o das barbas
não era pai da criança, segundo, chegara com pouca convicção à relação (e
ansioso por ir andando) e, terceiro, a mãe amarga tinha ainda menos convicção
naquela relação e não estava segura de que havia alguma espécie de realização
pessoal na magna questão da maternidade. E, quarto (afinal havia uma quarta
dedução), a menos que o das barbas baixasse naquele momento as calças para
mostrar idêntica escolha no que se referia à roupa interior, ela apostaria que
entre aqueles dois não tinha havido sexo (ou intimidade) nos últimos tempos.
Umas cuecas coloridas eram, naquele agregado sombrio, mais do que segredo ou dissidência
camuflada — eram traição. Ou talvez só desprezo.
Ela estava agora a ver como se
arranjaria o advogado para espreitar as coxas da mulher amarga. Do seu lugar, o
penteadinho não conseguiria desfrutar o panorama, mas tinha as antenas
suficientemente alerta para se dar conta que havia um panorama para desfrutar.
Talvez se levantasse para ir ao balcão pagar os cafés — esse tipo de
investimento num cliente ele achava que podia fazer —, abrindo bem os olhos no
regresso. E a mulher das tatuagens e do cabelo preso? E a adolescente? E ela
própria? O que deveriam pensar as mulheres ali presentes daquela exibição de
intimidade? O que deveria ela, Inês, pensar?
Bem, não haveria escândalo, isso era certo. A não ser que fizesse o que lhe
apetecia, que era afastar o incompetente das barbas, segurar na criança (era
verdade? o instinto maternal era um facto científico?) e afagar o cabelo negro
da mãe amarga.
Não fez nada disso. Bebeu o resto
do café e chamou o empregado. Ao longe ouviram-se os primeiros trovões desde
que chegara a Aranda.»
Inês, in Aranda