«Diz para si própria que é
impossível, e no entanto o odor entra-lhe pelas narinas como se os cavalos
ainda ali estivessem. Um cheiro a fezes que não enoja, porque emanado de seres
belos, esbeltos, nobres. Merda dos deuses — não das suas montadas. Na altura não
pensou estas coisas (o que pensaria então?), é agora que esta parte do passado
lhe parece poética.
A vegetação cresceu, mas a sebe
que delimitava o campo de saltos ainda sobressai, com alguns troços secos e a parte
viva muito irregular, informe, a clamar pelas tesouras do mestre jardineiro. É
como se a pátina de Roma tivesse caído também sobre aquele local, dando-lhe
ares de império derrotado. As velhas boxes,
com as suas portinholas onde assomavam os pescoços equinos, dificilmente se
vêem por detrás de uma barreira de árvores novas e antigas e de ervas que dão
pela cintura. A tribuna do júri, virada a poente, mostra-se como o casebre que
talvez sempre tenha sido, flanqueada por três vacilantes mastros de bandeira.
Do outro lado, as bancadas de cimento conservam as telhas da cobertura e as
asnas de madeira (assentes em pilarzinhos de ferro forjado ao estilo Arte Nova),
mas perderam as divisórias de pinho que, na fila da frente, compartimentavam e
exibiam a aristocracia em lotes de quatro cadeiras e uma mesinha, sob
guarda-sóis às riscas coloridas.
A barragem (seria este o nome?
talvez poço) ainda existe, no meio da erva: uma concavidade larga de cimento, rasa
— menos do que meia cana; com um raio bastante maior do que o de uma roda de
carroça ou charrette —, que
antigamente se enchia de água e assustava os cavalos mais do que os outros
obstáculos, entretanto desaparecidos. Também existe a ruína da Casa de Chá.
Ao longe ouve-se o trovão. Podia
ser um bombardeamento, o inimigo às portas, artilharia motorizada
aproximando-se ameaçadoramente do império em declínio. Mas é apenas uma
trovoada de Verão. As primeiras gotas de chuva volatizam-se no momento em que
são percebidas na pele. O céu não parece ter nuvens capazes de fazer chover.
Esquecida a um canto das
bancadas, uma boneca de porcelana rosada. Com o seu vestidinho azul debruado a
rendas brancas e um chapéu de amplas abas, é um vestígio surpreendente,
improvável e desmembrado. O braço esquerdo está caído ao lado do corpo, que por
sua vez está rachado, revelando um interior oco. A boneca encosta-se a um dos
postes de ferro que sustentam o telhado e observa melancolicamente alguma das provas
inesquecíveis ou imagináveis do velho concurso hípico.
Ela segura a boneca pela cintura
e o cheiro a excrementos regressa. Não o tropel dos cascos, o rumor da multidão
(e a sineta, a voz de megafone do júri, os gritos de incitamento dos
cavaleiros, o estalar do pingalim, o resfolegar dos animais). Não. Apenas o
odor, como se nele se concentrassem todas as experiências dos sentidos e
residisse nele toda a memória possível.
Ah, inebriar-se daquilo!
Levanta o nariz ao vento como um
predador e toma o caminho das cavalariças sob a bancada. As portas de madeira
com frinchas entre as tábuas filtram os raios de sol, que desenham uma grelha
no chão de terra batida. Rangem quando ela as abre e tenta adaptar os olhos à
penumbra. Um corredor atravessa todo o edifício e dos dois lados dele
sucedem-se as baias.
— Pensei que não viesses — diz
uma voz ao fundo.
— E por que não haveria de vir? —
retorque ela.
— Não sei, poderia faltar-te a
coragem. — A voz faz uma pausa. — Estás bonita, gosto desse vestido.
— Galanteios. Mal me arranjei.
— É cedo? Talvez pudéssemos ter
marcado para mais tarde.
— Não, não. Quanto antes melhor.
— Então, diz-me: como fazemos?
— Não pensei nisso — diz ela, um
pouco desconcertada. — Achei que irias tratar dos pormenores.
— E tratei, descansa. Só quis
deixar-te tomar a iniciativa, sou um cavalheiro.
— Sim, o melhor deles. Tanto se
me dá.
A boneca de porcelana dirige-lhe
um olhar inquiridor e ela encolhe os ombros.
— Não vieste por acaso a cavalo?
— pergunta ela.
— A cavalo? — ri-se a voz. — Que
ideia mais estranha. Gostarias que o tivesse feito?
— Não, não é isso, apenas me
pareceu que cheirava a cavalo, só isso.
— Agora ofendeste-me: eu lavo-me — protesta a voz com falsa
indignação.
A boneca de porcelana parece ter
um risinho de cortesã.
— Oh, esquece. Podemos visitar a
Casa de Chá antes?
— Claro, as decisões são tuas.»
Cláudia in Aranda
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