sexta-feira, 6 de março de 2015

Lugares de ficção


«Diz para si própria que é impossível, e no entanto o odor entra-lhe pelas narinas como se os cavalos ainda ali estivessem. Um cheiro a fezes que não enoja, porque emanado de seres belos, esbeltos, nobres. Merda dos deuses — não das suas montadas. Na altura não pensou estas coisas (o que pensaria então?), é agora que esta parte do passado lhe parece poética.
A vegetação cresceu, mas a sebe que delimitava o campo de saltos ainda sobressai, com alguns troços secos e a parte viva muito irregular, informe, a clamar pelas tesouras do mestre jardineiro. É como se a pátina de Roma tivesse caído também sobre aquele local, dando-lhe ares de império derrotado. As velhas boxes, com as suas portinholas onde assomavam os pescoços equinos, dificilmente se vêem por detrás de uma barreira de árvores novas e antigas e de ervas que dão pela cintura. A tribuna do júri, virada a poente, mostra-se como o casebre que talvez sempre tenha sido, flanqueada por três vacilantes mastros de bandeira. Do outro lado, as bancadas de cimento conservam as telhas da cobertura e as asnas de madeira (assentes em pilarzinhos de ferro forjado ao estilo Arte Nova), mas perderam as divisórias de pinho que, na fila da frente, compartimentavam e exibiam a aristocracia em lotes de quatro cadeiras e uma mesinha, sob guarda-sóis às riscas coloridas.
A barragem (seria este o nome? talvez poço) ainda existe, no meio da erva: uma concavidade larga de cimento, rasa — menos do que meia cana; com um raio bastante maior do que o de uma roda de carroça ou charrette —, que antigamente se enchia de água e assustava os cavalos mais do que os outros obstáculos, entretanto desaparecidos. Também existe a ruína da Casa de Chá.
Ao longe ouve-se o trovão. Podia ser um bombardeamento, o inimigo às portas, artilharia motorizada aproximando-se ameaçadoramente do império em declínio. Mas é apenas uma trovoada de Verão. As primeiras gotas de chuva volatizam-se no momento em que são percebidas na pele. O céu não parece ter nuvens capazes de fazer chover.
Esquecida a um canto das bancadas, uma boneca de porcelana rosada. Com o seu vestidinho azul debruado a rendas brancas e um chapéu de amplas abas, é um vestígio surpreendente, improvável e desmembrado. O braço esquerdo está caído ao lado do corpo, que por sua vez está rachado, revelando um interior oco. A boneca encosta-se a um dos postes de ferro que sustentam o telhado e observa melancolicamente alguma das provas inesquecíveis ou imagináveis do velho concurso hípico.
Ela segura a boneca pela cintura e o cheiro a excrementos regressa. Não o tropel dos cascos, o rumor da multidão (e a sineta, a voz de megafone do júri, os gritos de incitamento dos cavaleiros, o estalar do pingalim, o resfolegar dos animais). Não. Apenas o odor, como se nele se concentrassem todas as experiências dos sentidos e residisse nele toda a memória possível.
Ah, inebriar-se daquilo!
Levanta o nariz ao vento como um predador e toma o caminho das cavalariças sob a bancada. As portas de madeira com frinchas entre as tábuas filtram os raios de sol, que desenham uma grelha no chão de terra batida. Rangem quando ela as abre e tenta adaptar os olhos à penumbra. Um corredor atravessa todo o edifício e dos dois lados dele sucedem-se as baias.
— Pensei que não viesses — diz uma voz ao fundo.
— E por que não haveria de vir? — retorque ela.
— Não sei, poderia faltar-te a coragem. — A voz faz uma pausa. — Estás bonita, gosto desse vestido.
— Galanteios. Mal me arranjei.
— É cedo? Talvez pudéssemos ter marcado para mais tarde.
— Não, não. Quanto antes melhor.
— Então, diz-me: como fazemos?
— Não pensei nisso — diz ela, um pouco desconcertada. — Achei que irias tratar dos pormenores.
— E tratei, descansa. Só quis deixar-te tomar a iniciativa, sou um cavalheiro.
— Sim, o melhor deles. Tanto se me dá.
A boneca de porcelana dirige-lhe um olhar inquiridor e ela encolhe os ombros.
— Não vieste por acaso a cavalo? — pergunta ela.
— A cavalo? — ri-se a voz. — Que ideia mais estranha. Gostarias que o tivesse feito?
— Não, não é isso, apenas me pareceu que cheirava a cavalo, só isso.
— Agora ofendeste-me: eu lavo-me — protesta a voz com falsa indignação.
A boneca de porcelana parece ter um risinho de cortesã.
— Oh, esquece. Podemos visitar a Casa de Chá antes?
— Claro, as decisões são tuas.»

Cláudia in Aranda

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