quarta-feira, 31 de março de 2021

Linda Boström Knausgård

Acabei há duas semanas de ler O Fim (sexto e último volume de A Minha Luta, de Karl Ove Knausgård) e de lá para cá andei mais ou menos obcecado em conseguir comprar alguns livros de Linda Boström Knausgård, a ex-mulher do autor e personagem central na obra (a seguir ao próprio Karl Ove).

Terminada a saga do escritor norueguês, senti uma certa desolação, como quando se acaba a tablete de chocolate. O meu sentimento geral em relação à obra não difere daquele que relatei brevemente em Abril de 2019 (link no rodapé), depois de ter lido o quinto volume, mas a verdade é que o desconforto de voyeur que ali refiro se retrai perante a escrita torrencial, magnética, de Knausgård e, suspeito, a identificação que provoca num leitor da mesma geração do autor, como eu.

Neste sexto volume, a relação de Knausgård com Linda, então ainda sua mulher, é a certa altura dominante e é esse tópico que encerra a obra. Parte do ali descrito foi também abordada em Verão, se não estou em erro, um dos quatro livros que o autor escreveu depois de A Minha Luta (e que estranhamente foram publicados em Portugal antes da tradução do volume 6).

Linda, enquanto personagem e enquanto mulher real, causa fascínio, ainda mais quando nos lembramos (e O Fim também ajuda nisso, diga-se) que ela mesma é escritora de mérito reconhecido. Com esta ideia na mente, fui procurar informação sobre os seus livros e acabei a ler entrevistas. Os dois escritores estão há uns anos divorciados (aconteceu já depois de O Fim) e há uma tentação grande por parte dos jornalistas de confrontar Linda com o que Karl Ove escreveu sobre ela e sobre a relação entre eles. Do mesmo modo, os livros de Linda — declarados como romances de inspiração autobiográfica — são inspeccionados à procura de passagens que desmintam Karl Ove. A autora insiste que os seus livros são romances e que não está interessada em mudar a história escrita pelo ex-marido. De resto, e isto é interessante, afirma que A Minha Luta também é ficção. Sabe, diz ela, que «está cheia de descrições cruéis e desnecessárias de pessoas reais», mas considera que «os livros são bons e influenciaram muita gente».

Perante isto, a minha obsessão por encontrar os livros de Linda Boström Knausgård em línguas para mim legíveis parece ânsia de fã de novelas. Em minha defesa, devo dizer que também eu senti, não que as descrições cruéis feitas por Karl Ove eram desnecessárias, mas que teria preferido que houvesse na forma como os volumes foram publicados uma margem de dúvida razoável quanto ao que é biográfico e ao que é ficção, para dispensar o leitor de se sentir cúmplice ou espectador mórbido de passagens por vezes inevitavelmente desconfortáveis (ainda que não maliciosas) para os retratados.

Contudo, não é este o meu ponto na procura dos livros de Linda. Mesmo que não acreditem (e já tenho idade para me estar nas tintas), o meu interesse em outras perspectivas eventuais sobre o universo Knausgård é literário, não melodramático, muito menos bisbilhoteiro. É como se fosse possível dar sequência a uma narrativa que nos fascinou através de outros autores que escrevem sobre o mesmo tema. E como se, além disso, pudéssemos continuar a acompanhar uma personagem que é ressuscitada noutras obras. Depois, há na biografia de Linda aspectos humanos e sociológicos, que inspiraram de facto os seus romances — não necessariamente (ou sobretudo não apenas) relacionados com a intriga e a tensão que foram desenvolvidos nos livros de Karl Ove —, que são de um eminente interesse literário, por um lado, e, por outro, de interesse psicológico, neurológico, científico e social (Linda sofre de transtorno bipolar, como o pai, e submeteu-se a perturbantes tratamentos por electrochoques).

Associando-se a estes motivos de interesse as boas críticas às obras da autora, talvez se possa perceber que tenha optado por encomendar do Brasil o livro A Pequena Outubrista (October Child, em tradução inglesa a publicar em Junho) e de Espanha o anterior Bienvenidos a América. Ignoro se há planos de alguma editora portuguesa para os publicar (a Relógio d’Água, que edita Karl Ove, diz que não os tem e eu digo que é preciso saber perder oportunidades...), mas agora também já não importa, as encomendas estão feitas. É só aguardar. Com impaciência.

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O que escrevi em 2019 sobre A Minha Luta: https://canhoes.blogspot.com/2019/04/eppur-si-muove-alguns-polipticos.html

domingo, 28 de março de 2021

Fade news

Antes das fake news propaladas em massa por grupos ideológicos idiotas ou mal-intencionados, havia já a figura do «assessor de comunicação», geralmente um jornalista no desemprego ou com outras ambições que aceitava um salário para, intrometendo-se na área do publicitário mas sem a mesma franqueza etimológica deste, vender um produto: uma ideia, um projecto, uma instituição, uma personalidade, um político, um sabonete.

Em algum momento — antes até da época em que os jornalistas passaram a ser substituídos por estagiários mal pagos e mal formados —, a carreira de assessor de comunicação deixou de ter a realidade em grande conta e a energia antes gasta a dar clareza e eficácia às mensagens passou a ser empregue em golpes criativos. O saber foi substituído pela invenção e o substantivo pelo adjectivo, o eufemismo ou a hipérbole. Uma nota de imprensa sobre a actividade necessária mas banal de uma empresa ou repartição passou a ser emitida com liberdade literária ou empolgamento de prosa poética, por vezes descolando tanto da realidade que em catálogos mais escrupulosos leva, compreensivelmente, a etiqueta de ficção especulativa ou científica.

O mais eficaz dos assessores de comunicação é hoje aquele que tem os contactos certos na imprensa. Mas a consciência, improvável, de que a sua força vem das relações sociais e não da sua eloquência ou do seu estilo é insuficiente para que o assessor desista da aspiração antiga de ser um domador de linguagem. Não se resignando a entregar a mensagem e receber o respectivo e honesto salário de mensageiro, o assessor obriga-se, em horas esforçadas, queimando desnecessariamente as pestanas, sutor ultra crepidam, a «tratar» a informação, não raro distorcendo a mensagem. E ao ver mais tarde o sucesso que deve à sua agenda de contactos confunde-o de novo com o sucesso do seu artesanato, confunde o acesso aos meios com o domínio dos modos, e persiste. Por isso, informação que podia só ser amplamente difundida é não raro também amplamente deformada.

A corrente filosófica e o movimento intelectual que fundiram o assessor com o publicitário e a comunicação com a propaganda medraram também nas redacções dos media. Não apenas pela antiga, tradicional promiscuidade entre as duas profissões, mas porque passou a haver também universidades e a sua necessidade vital de expelir bacharéis da comunicação como quem expele caroços de cerejas.

Colocado num órgão de imprensa ou num gabinete de comunicação, o recém-formado vem cheio de vontade e cheio de hipérboles. A sua energia excessiva de caloiro (e as redacções tendem a encher-se deles, porque o jornalista tarimbado custa dinheiro) não concebe notícias ou comunicados sóbrios e factuais, meramente informativos. Há que dar a interpretação do mensageiro e há que introduzir emoção onde ela não existe ou é dispensável. Um lead deixa assim de ser um resumo eloquente dos elementos principais da informação para ser um slogan que vive por si próprio, com frequência perdendo a sua relação hierárquica ou semântica com a informação original. E a um título não lhe basta ser o «elemento de identificação que indica e chama a atenção para a matéria de que trata o texto»: tem de ser um apelo ou uma acusação, o cabeçalho de um manifesto ou de um libelo.

É útil aqui lembrar que o soundbite não foi inventado por políticos, mas por profissionais da comunicação.

E os profissionais da comunicação adaptam-se bem, como baratas no pós-apocalipse, a todos os ambientes, da redacção clássica à moderna sala de spin doctors, e são hoje por isso intermutáveis. Quando instalados num gabinete de comunicação, gostam de escrever como jornalistas, forjando a mensagem como uma notícia. Quando deixados à solta numa redacção, aceitam sem embaraços, antes com o alívio, a notícia que lhes chega pré-escrita pelos seus irmãos siameses, apondo-lhe simplesmente, com despudor ou apenas tédio de amanuense, a sua assinatura de jornalistas ou o carimbo do órgão que os emprega — certos, com razão, de que a sociedade já nem diferencia um comunicado ou uma opinião de uma notícia.

A comunicação que passa pelas mãos de assessores e jornalistas vocacionados para o impacto pode falhar tudo — nomes, factos, argumentos, ideias, raciocínios — desde que cumpra uma ou mais destas funções: agitar, perturbar, deslumbrar, indignar, seduzir, incomodar, emocionar. Peças deste tipo de comunicação, «caracterizadas pela predominância de situações violentas e sentimentos exagerados», antigamente subiam aos palcos e levavam o nome honesto de «melodrama». Donde não é errado concluir que estes assessores ou jornalistas seriam mais rigorosamente tributados pelas Finanças como dramaturgos.

Deve preocupar-se quem procura difundir uma mensagem através de profissionais da comunicação, porque arrisca-se a um dilema ontológico ou jurídico. O sujeito da notícia, nas mãos deles, é personagem de ficção, com discurso, pensamento e por vezes biografia inventados. Com uma frequência perturbadora, o sujeito depois de noticiado já não é um cidadão real — é um fantasma ou um apátrida. Depois de descobrir aquilo em que a sua mensagem e ele próprio se transformaram, o sujeito olha-se shakespeareanamente ao espelho duvidando de que exista — e é detido pelo SEF por não conseguir provar a sua cidadania.

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* Banda sonora: https://youtu.be/p-QqRewb7V8

sábado, 20 de março de 2021

«O politicamente incorrecto tornou-se a suprema manifestação do politicamente correcto.»

Independentemente do que concluamos sobre a polémica que envolveu a tradução para holandês da obra da poetisa Amanda Gorman, mas vendo a forma como uma vasta brigada muito segura de si aproveita para dar automaticamente sentenças definitivas a propósito de tudo e de nada, há pertinência em ler o pequeno texto de António Guerreiro que transcrevo abaixo. Além da frase que retirei para título (que constata aquilo que é já evidente para muitos de nós), destaco uma outra passagem que me parece caracterizar muito bem a forma como agem os que laboriosa e pateticamente se dedicam a fazer do politicamente incorrecto o novo politicamente correcto: «reacção das pessoas presumidamente inteligentes às atitudes das pessoas obviamente estúpidas».

«Contra a onda de indignações e exclamações que se ergueram publicamente por causa do episódio da tradução, em neerlandês, do poema de Amanda Gorman, lido pela autora na cerimónia da tomada posse de Joe Biden, como presidente dos Estados Unidos, Daniel Blaufuks aplica-se a ver a questão de outro modo que tem os seus riscos, mas tem a grande vantagem e inteligência de colocar as questões noutro patamar que não é o da reacção das pessoas presumidamente inteligentes às atitudes das pessoas obviamente estúpidas. A partir desta dicotomia, não há discussão, não há razão crítica, há apenas interjeições públicas transformadas em discurso. Ora, as coisas são muito mais complicadas. É o que mostra Daniel Blaufuks neste artigo que, para além disso, tem o efeito de tornar visível uma reversibilidade: o politicamente incorrecto tornou-se a suprema manifestação do politicamente correcto. E vice-versa.»

O texto de Guerreiro, que pode ser encontrado aqui: https://www.publico.pt/2021/03/19/culturaipsilon/cronica/bemvindos-poetas-1954756

e é sobre este texto de Daniel Blaufuks: https://www.publico.pt/2021/03/16/culturaipsilon/noticia/tentativa-va-equilibrar-desequilibrio-1954503

O texto original da polémica encontra-se aqui: https://www.volkskrant.nl/columns-opinie/opinie-een-witte-vertaler-voor-poezie-van-amanda-gorman-onbegrijpelijk~bf128ae4/?referrer=https%3A%2F%2Fwww.publico.pt%2F

quarta-feira, 17 de março de 2021

Rapaziada do nosso tempo

Uma destas noites perdi-me a ver, com certa comoção, um documentário sobre a gravação da música e lançamento do disco ‘Do They Know It's Christmas?’ (de que aliás já tinha visto parte há alguns anos). A comoção não me vinha da qualidade da música ou da campanha humanitária que ela servia, mas de estar a ver aquilo (também com embaraço, como quando vemos fotografias do nosso cabelo antigo) como se assistisse à projecção numa parede caiada de um episódio de família ou entre amigos filmado em Super 8.
 
A música e os artistas dos anos 80 não são uma página (boa ou má) na história da arte mundial: são uma memória pessoal (e intransmissível, temo bem) de quem era adolescente naquela década. Não há ali vedetas, mas rapaziada do nosso tempo, com quem partilhámos umas aventuras. Só o dinheiro que eles ganharam não é também nosso. Incompreensivelmente.