terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Um jogo fleumático

No tempo que levamos de pandemia, também dediquei algumas madrugadas a ver snooker, mas por alguma razão ainda não me tinha ocorrido escrever nada sobre o assunto. Talvez porque não encontrei um Wawrinka que me pudesse servir de herói trágico (ver post anterior).

As emoções num frame de snooker têm de ser procuradas, não nos gestos ou nas expressões dos jogadores — contidos os primeiros e limitadas a um franzir de nariz as segundas —, mas no próprio jogo, na geometria das jogadas e na subtil eloquência das tacadas.

Os profissionais da modalidade, com a excepção ocasional do impulsivo Ronnie O’Sullivan, encarnam o espírito fleumático dos oficiais britânicos que primeiro a jogaram, no século XIX, pelo que por vezes só nas tabelas de resultados encontramos a grandiloquência das grandes vitórias e derrotas.

Um dos campeões actuais chama-se Trump e a sua expressividade está nos antípodas do histrionismo do homónimo ex-presidente americano: a sua celebração de uma vitória é tão enfática quanto o agradecimento cortês que alguém mostra ao garçon que lhe serve o habitual café pós-prandial.

Uma final de snooker não convida à mesma euforia de outros desportos. Após o último frame, seguimos o exemplo dos próprios jogadores e despedimo-nos da televisão cavalheirescamente, com um breve aceno de cabeça, sem que chegue a materializar-se o ímpeto de escrever sobre o jogo. Guardamos o guarda-chuva e o chapéu no bengaleiro da entrada e recolhemo-nos ordeiramente ao bedroom.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Venda de livros

A decisão de autorizar a venda de livros é elementar. A decisão de as livrarias continuarem fechadas é… característica. Em Portugal os governos não pensam ser necessário ter uma política de cultura e do livro e por isso têm por ministério da área uma repartição que se ocupa do despacho e é vagamente instruída para deitar como puder, preferencialmente sem despesa, água na fervura do sector. O ministério da educação, por sua vez, especializa-se em assobiar para o lado, não vá alguém querer implicá-lo nisto dos livros.

A nação, que há muitos anos não tem um governo capaz de perder um minuto do seu precioso tempo a olhar para a arbitrariedade instalada com o acordo ortográfico, não era agora que ia ter um disposto ao exercício de imaginar a venda de livros em tempos de cólera.

De resto, a dica do presidente sobre este assunto deve ter caído no conselho de ministros como mosca na sopa, uma contrariedade, a excentricidade de um ex-vendedor de enciclopédias a que havia contudo que dar alguma atenção não fosse o homem indispor-se quando se tratasse de temas sérios.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Wawrinka, o herói trágico

O ténis teve os seus Fab Four, a que chamaram na verdade Big Four, com Federer, Nadal, Djokovic e Murray. As lesões e a baixa de forma de Andy Murray abriram duas narrativas míticas sucedentes: a redução da elite a um Big Three ou a mais controversa inclusão de Stan Wawrinka num novo Big Four. O próprio Wawrinka afirmou, e não com falsa modéstia, que não tinha a mesma consistência dos restantes.

Uma destas noites estive a ver um jogo com Wawrinka no open da Austrália e confirmei: Wawrinka é o meu tenista preferido. O tenista suíço perdeu os primeiros dois sets, recuperou como faz tantas vezes ganhando os dois seguintes, levou o quinto set ao tiebreak, que esteve a vencer por 6 a 1, e perdeu por 9 a 11.

Wawrinka é um campeão talhado para sofrer, serenamente, e muitas vezes perder. É o herói trágico por quem torço, porque só ele traz a emoção da luta, do sofrimento. Nadal ou Federer, mais campeões do que Wawrinka, são emocionalmente monótonos, porque o mais provável é que ganhem, perder seria a surpresa, é sempre a surpresa, até com o quase quarentão Federer. Se vejo um jogo de Nadal é com esperança que perca, ou seja, que haja algo emocionante num jogo seu. Torço sempre pelo adversário.

Nadal pode fascinar pela energia obsessiva e vencedora, Federer pela técnica e a graciosidade, igualmente vencedoras, mas só Wawrinka me põe incondicionalmente do seu lado, a partilhar com ele os perigos, as muitas frustrações — e a verdadeira alegria da vitória, porque rara. Ou mais rara. Assistir a um jogo dos primeiros pode ser uma experiência estética ou dar-nos o conforto de estar do lado dos grandes, dos fortes — mas Wawrinka permite-nos isso e a incógnita do resultado final, a adrenalina extra que essa expectativa segrega. Se o desporto é catarse para o público, Wawrinka oficia-a melhor do que ninguém. Wawrinka interessaria mais a Aristóteles e a Shakespeare. 

Wawrinka não é um herói de Hollywood, antecipadamente vencedor. É um herói trágico. Um herói trágico que se perde não pelo seu orgulho, como em muitos dramas gregos, mas pela sua humanidade. Não é um deus, mas um homem como nós. Um pouco melhor que nós. Um grande tenista.

Silogismo imperfeito (ou tremido)

Segundo Eumélo de Corinto, poeta grego, Bronte, uma das éguas de fogo da quadriga de Hélio, é o trovão, ou a trovoada. Não admira que Emyle Brontë tenha escrito O Monte dos Vendavais. Não se foge ao destino.