terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

S.T.T.L.

Os anais da família registam que o tio, bebedor regular e fumador inveterado, cortou de um dia para o outro com esses vícios e deixou de jogar às cartas. Não voltou à taberna, meras três ou quatro portas abaixo da sua barbearia (que ficava no rés-do-chão da nossa casa comum). Abdicou de quase todos os contactos sociais fora da família. Saía de casa apenas para exercer a sua profissão (para o que lhe bastava descer as escadas) ou passear no parque termal ali ao lado ou no monte por trás do bairro, tutelando os sobrinhos na descoberta da Natureza. Adoecia se, por qualquer razão que não conseguia evitar, tinha de acompanhar a família para um almoço fora ou uma cerimónia qualquer das que naqueles tempos se cumpriam. Nunca casou, embora se lhe conhecessem histórias de antigas namoradas.
O tio partiu há uns dias, ele que parecia estar há quatro décadas a preparar a partida. Nos primeiros tempos da sua vida abstémia e sem tabaco, pelos quarenta, ainda se juntava de quando em quando a alguns conterrâneos para umas partidas de malhas ou para o jogo do bicho — que na nossa rua se jogava em frente à taberna, na faixa de terra entre o passeio e a estrada, atirando moedas como miniaturas de malhas para acertar numa rolha a fazer de pino, sobre a qual os jogadores tinham colocado outras moedas, que geralmente perdiam para o tio, ou assim o recordamos todos. Há uma certa unanimidade, não só na família, quando se trata de recordar a veia talentosa do tio no que tocava a jogos populares e de cartas. Também se recordam episódios de força, como quando segurou um boi pelos cornos para proteger alguém da investida e ali ficou longamente a aguentar firme o bicho até vir o dono ou chegarem cordas ou qualquer outra forma de alívio.
Na barbearia tinha a sua freguesia assídua (não só do bairro), que não raro fazia esperar ou obrigava a voltar mais tarde, porque havia em certas épocas prioridades na sua vida, como ir aos frades e aos tortulhos no Outono, aos ninhos na Primavera e aos bosques sem grandes justificações no Verão. (No Inverno preferia quase sempre ficar em casa, porque um problema de varizes o impedia de calçar botas ou sapatos capazes de enfrentar a chuva e a lama.) Na maior parte das vezes levava para estas excursões algum ou vários dos seus seis sobrinhos. Julgo que nos levou a todos em diferentes fases, de acordo com a cronologia do crescimento. Não era exactamente um Thoreau, embora se encaminhasse a passos largos para um ermitério interior e tivesse pela Natureza uma paixão que hoje se diria de ecologista. Aos ninhos dava-lhe prazer assinalá-los e mostrar-no-los sem contudo perturbar os seus habitantes. Não apreciava as práticas ainda vigentes de atirar pedras com fisgas a pássaros ou subir às árvores para roubar ou destruir os ovos. Como um batedor navajo ou um David Attenborough sem caqui, punha o dedo sobre os lábios a pedir silêncio ou interrompia a marcha pousando-nos a mão comprida sobre o ombro e apontava o ninho ou a ave que gostaria que víssemos. Na direcção que os seus olhos ou o seu dedo indicavam estavam também frequentemente arbustos e árvores, cujos nomes nos ensinava, no meu caso com fraco proveito, não porque não estivesse a fruir as suas lições (estava, avidamente).
A sua visão de lince e experiente era lendária, tanto para descobrir os ninhos mais intrincados quanto para lobrigar as rocas mais camufladas no húmus. Apanhava os cogumelos enfiando um dedo na terra para os tirar pela raiz e não gostava que se remexesse demasiado o solo, tanto por preocupação com o ecossistema como porque não queria que outros descobrissem onde tinha ele apanhados os seus troféus micológicos. 
De resto, o seu crescente desejo era passar pelos dias sem que os outros o descobrissem. Misantropia, sem dúvida, um obstinado desinteresse pela vida mundana, exceptuando o gosto por acompanhar, quase só à distância, por interpostas ondas hertzianas, os resultados desportivos. Se alguém o queria apanhar numa interacção social, teria de ser através do futebol (ou do hóquei e do ciclismo, quando o país era mais diverso). Para uma dessas conversas ainda era capaz de parar na rua ao cruzar-se com alguém, ou de receber na barbearia quem, não vindo para se aparar, viesse pelo menos para comentar os resultados do Sporting.
Nos anos oitenta, talvez a década final do funcionamento pleno da barbearia, os seus clientes mais assíduos eram desafortunadamente os sobrinhos mais novos, que ali iam e voltavam precisamente porque eram os anos oitenta e havia cortes de cabelo a experimentar, penteados a retocar (além de barbas a despontar), tudo de forma gratuita, na dupla acepção do termo. Nem sequer se podia dizer que os sobrinhos pagavam com os recados que lhe faziam (sobretudo à farmácia, para lhe tratar a hipocondria), já que os recados não implicavam devolver o troco.
A paciência que o tio tinha com os sobrinhos naquela época contrastava com a ira que irrompia do seu corpo alto, vergado e lastimoso sempre que um conhecido ou um vizinho cruzava a entrada da nossa casa. Quando alguém batia à porta, ele retirava-se para a zona íntima, fechando sucessivas portas atrás de si com violência ou passeando pelos corredores a vociferar, consciente de que as suas imprecações eram ouvidas pelos visitantes. Se as visitas se repetiam por muitos dias, o tio adoecia e durante uma semana encostava-se pelos cantos, carente da atenção que havia sido repartida pelos visitantes, lamentando-se no seu quarto com queixumes miudinhos, ais suspirados. Na nossa crueldade de crianças, fingíamos então afastarmo-nos para logo notarmos que, sem audiência, ele cessava de carpir — e lá entrávamos pelo quarto dentro com a glória vã ou desnecessária e talvez egoísta de lhe termos descoberto o fingimento.
Com o decorrer das décadas, misantropia e hipocondria agravaram-se, e em determinadas circunstâncias isso exacerbou o mau-feitio, fez dele por vezes uma pessoa difícil.
Mas os anais da família também registam que eu, em criança, padecendo talvez de sonambulismo, ia por vezes deitar-me na cama do tio a meio da noite. Encontrava ali, estou certo, um porto acolhedor onde me abrigar dos pesadelos ou procurava o regresso ao promissor mundo de aventuras que as suas histórias de nanar tinham entreaberto antes nessa noite. Na altura era demasiado novo para escolher as palavras e formar as ideias, caso contrário teria percebido que o tio era então o meu segundo pai.
   Sit tibi terra levis.