sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Da madrassa para o tribunal

Um homem agrediu a mulher com uma cadeira. Segundo o Tribunal da Relação de Évora, esta agressão não foi «suficientemente intensa» para ser qualificada como violência doméstica. Há um limite mínimo para aquilo que um homem deve fazer a uma mulher. Os islamitas sabem disso.

A notícia (que pode ser lida aqui) é rica em detalhes e citações acerca da perversidade ou da vilania da Relação de Évora. Claro que pode haver alguma descontextualização, a redução da pena pode ter sido deduzida por falta de provas, o jornalista (da Lusa, creio) pode ter “construído” um pouco a notícia, mas o que sobra é ainda assim assustador. Repare-se que um dos defeitos de que é acusada a sentença do tribunal de primeira instância (que deu como provado que as agressões vinham desde 2004) era não esclarecer «o número de ocasiões em que as agressões ocorreram, a quantidade de murros e pontapés em causa» ou não adicionar «qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidos, ao local do corpo da ofendida atingido e suas consequências, em termos de lesões corporais». A recorrente preocupação com a intensidade das agressões é cativante. Não estamos perante um juiz da Relação, mas perante um voyeur sádico com critérios rigorosos.

Podia continuar a noite toda a expressar indignação, mas os leitores do Público já o fizeram na caixa de comentários da notícia, com louvável unanimidade, sem distinção de géneros. As caixas de comentários na maioria das vezes são repositórios de aleivosias e imbecilidades, mas neste caso aduziram interessantes reflexões sobre a sentença. Apreciei particularmente a sugestão de ser usada uma cadeira no juiz com crescente intensidade até ser feita jurisprudência sobre o grau em que a agressão passa a crime de violência doméstica.

C’os diabos, onde é que vão recrutar juízes destes? À tasca da esquina? Ao Iémen? A justiça lusa não precisa de simples reformas — precisa de uma primavera árabe.

Arranja-se sempre espaço para mais uma teoria

Num artigo do TheTelegraph revela-se que já nem a Al Qaeda tem paciência para as afirmações de Ahmadinejad sobre o 11 de Setembro. Há quem veja nisto um argumento para calar de vez os partidários da teoria (da conspiração) que diz estar o governo americano por trás dos ataques de há dez anos. Mas quem assim pense está a subestimar a imaginação humana. As convenientes declarações da organização terrorista são é a prova de que, na verdade, os americanos estão por trás da Al Qaeda. E também há-de haver uma maneira de provar que os americanos estão por trás — de Ahmadinejad. A quem mais interessa aquela retórica de pé de guerra?

Chang Zheng 2F

Na notícia do Público sobre o lançamento do laboratório espacial chinês, o foguetão de transporte é designado por «Long March 2F». No entanto, a mesma notícia é capaz de nos dar a palavra chinesa para astronautas (yuhangyuans) e de traduzir para português o nome do laboratório (Tiangong, Palácio Celeste). Talvez a diferença de critérios não seja despicienda, talvez se esteja a insinuar que o foguetão tem tecnologia americana, o mesmo não se passando com a estação orbital e os astronautas, ambos de fabrico cem por cento chinês.

2014: Pesadelo em Elm Street 2

A Longa Marcha foi um preâmbulo à China comunista. Decorreu entre 1934 e 1935. Quinze anos depois Mão Zedong estava no poder. Os foguetões Longa Marcha 2 começaram a ser lançados pela China em 1999.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Lapsus linguae

O Público perguntou a alguns analistas de diferentes quadrantes se «há uma ideologia no Governo para além da troika». Orlando Samões, investigador de Ciência Política na Universidade Católica, que a jornalista apresenta como «alguém mais à direita», considera que o Governo «não é suficientemente liberal». Pelo contrário: «o PSD é mesmo social-democrata, porque continua a ter uma preocupação social».
Afirmações como esta última, de crítica intrínseca, esperam naturalmente a colaboração do leitor para serem entendidas pelo que querem dizer e não pelo que dizem. Mas por uma vez tomemo-la à letra. Imaginemos — e até podemos nem estar errados — que o analista foi involuntariamente franco, que a sua frasezinha traidora nos disse indirecta mas exactamente que um governo liberal não se caracteriza por ter uma preocupação social.

Um lapsus linguae verifica-se quando deixamos escapar involuntariamente para o discurso qualquer coisa que estava no nosso pensamento. Acontece com frequência, por infortúnio, quando se supunha que não mencionássemos o que estava no nosso pensamento. Neste caso, é geralmente seguido de um comprometido ups!

A época sadomasoquista

Começaram as praxes académicas. A época sadomasoquista. O tirocínio dos pequenos fascistas que traz de bónus o sequestro da sociedade civil. Masoch é figura tutelar da sociedade, mais do que dos caloiros. Estes apenas têm de esperar um ano para ocuparem posições nas fileiras opressoras — a comunidade nunca troca de papel, tem a função passiva ano após ano, está sempre de quatro.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Crescei e multiplicai-vos?

Alguns comentadores alertam a espaços para o problema da fraca taxa de natalidade na Europa e na América. A manterem-se os valores de agora, o ocidental será uma criatura extinta daqui a um século, mais coisa menos coisa. Para estes comentadores, o problema não é de ordem, digamos, ambiental, não se trata de lamentar a extinção de espécies, a diminuição da biodiversidade. Também não é exactamente um problema antropológico tradicional, um requiem nostálgico pelo fim de uma das culturas que enriquecem o mosaico da humanidade. É, de qualquer maneira, um alerta para um problema cultural, ou, mais propriamente, civilizacional. O que está em causa resume-se na seguinte tese: as conquistas que o Ocidente obteve para a humanidade morrerão com o último dos ocidentais.
Uma tal proposição parece pedir que a olhemos como uma manifestação racista, uma defesa da superioridade dos brancos. Sem o Ocidente, os outros povos deixarão cair a democracia, os direitos humanos, a humanidade regredirá, perder-se-ão as luzes, a secularidade dos Estados, a liberdade dos cidadãos.
Martin Amis aborda o assunto em “O Segundo Avião”, numa recensão a “America Alone: The End of the World as We Know It”, de Mark Steyn. No seu livro, Steyn foca-se na fertilidade do Islão, incluindo dentro de paredes ocidentais. O problema seria então este: se na Europa e na América os casais não desatarem a fazer filhos, o Islão conquistar-nos-á pelos números (como aliás preconizam alguns dos seus dirigentes).
Não creio que seja preciso ser-se racista para pelo menos aceitar discutir o assunto. Os sucessos da multiculturalidade não parecem particularmente obstinados em negar de forma taxativa aquele ponto de vista. Aceitemos por momentos que o risco existe. Será então altura de repensar a «agenda progressista», «a cultura dos direitos e das concessões», como parece propor o senhor Steyn? Precisarão as sociedades, como infere Amis das palavras de Steyn, de ser agora «mais reaccionárias: patriarcais, eclesiásticas, maioritárias e filoprogenitivas»? Precisaremos, resumo eu, de contrariar na cama e com legislação pró-vida o movimento conquistador do Islão?
A nossa originalidade enquanto ocidentais é que, por tradição filosófica e política, por definição cultural, sabemos que um problema nunca vem só. Se de algum modo nos sentíssemos tentados a concordar com esta visão das coisas, logo se nos punha outra questão: e o que fazer quanto ao excesso populacional? A racionalidade impele-nos a considerar a existência de facto de uma crise demográfica mundial — e o refinamento dos escrúpulos diz-nos que não queremos contribuir para o problema.
Ficamos portanto perante um conflito: proteger a nossa cultura (e por arrasto o mundo) fazendo filhos é, simultaneamente, contribuir para fazer rebentar o mesmo mundo pelas costuras. Qual das tragédias acontece primeiro é talvez uma questão matemática.
Provavelmente, a própria matemática nos indicará que não será de qualquer modo fácil vencermos o campeonato da proliferação — os adversários, que partem à frente, não deixarão de exercer o dever conjugal. Isto significa que em vez de desatarmos a fabricar abundantes ocidentaizinhos à nossa imagem e semelhança talvez seja mais razoável procurar converter em ocidentais todos os que aqui habitam. De resto, aliviaria a nossa consciência não xenófoba depositar na capacidade dos outros e nos méritos das ideias emancipatórias per se a defesa da civilização. No final do dia talvez tivéssemos uma Europa menos branca, mais colorida, mas isso não nos incomodaria, não era? Afinal, o que nos importa são as ideias e não o aspecto de quem as põe em prática.
Mas concedamos que, para início de sensatez ou por princípio de precaução, talvez seja de assegurar que quem vive na urbe é educado nas regras da urbe e a elas obedece… 

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A inescapável influência dos signos

Para disfarçar, dizia não acreditar nas previsões do horóscopo que vinham nas revistas, não era «assim tão estúpida». Mas via-se forçada a admitir que havia «sem dúvida muito de acertado» no carácter que o zodíaco atribuía aos nativos de cada signo. Era impossível não identificar a persistência nos Touro, a instabilidade nos Gémeos, o equilíbrio nos Balança, a preguiça nos Caranguejo. E, de qualquer modo, «mal não fazia», ler o horóscopo semanalmente, o que na verdade a ocupava desde muito nova.
Quando a mãe já velhinha teve coragem para lhe revelar que a registaram meses depois do nascimento (25 de Agosto em vez de 20 de Novembro), começou por ficar um pouco desnorteada, abalada nas suas certezas. Sentiu-se envelhecer em segundos os nove meses que tinha a mais. Depois foi tomada por um ressentimento feroz contra a mãe. Não exactamente pela ocultação da verdadeira data de aniversário, mas porque percebia agora que não precisava de ter acatado tão servilmente as suas absurdas exigências de arrumação. Não era afinal uma Virgem, não precisava de ter sido tão colaborante e sofrido uma adolescência orientada para a perfeição. Olhou o rosto da mãe e, para vencer, o rancor, entreteve-se a fazer contas, repassando mentalmente o calendário. Quando chegou a Novembro, censurou-se por, Escorpião que de facto era, nunca ter desconfiado de nada.

sábado, 24 de setembro de 2011

A decadência do Ocidente I

Artigos como “A Decadência do Ocidente”, de Vasco Pulido Valente (Público de ontem) aliviam felizmente a desproporcionada autoflagelação patriótica e recentram (bem) o debate, já não na Europa, mas no Ocidente. Decerto que nada impedia Portugal de ter sido menos “ocidental” no seu endividamento, de ter tido um desempenho económico mais sensato, mas isso seria pretender que Portugal tivesse agido fora do “lugar-comum” europeu (e ocidental), tivesse tido a argúcia precoce de conceber a ruptura ou a falência do sistema. Teria sido admirável (e eventualmente salvífico), mas pouco provável, pouco de acordo com o nosso perfil de "aluno esforçado" — e, provavelmente, teria merecido a censura dos nossos parceiros.
Muitos dos que agora vêem com nitidez a decadência do ocidente estavam antes razoavelmente pacificados com o modelo económico em vigor, quando não eram eles próprios exímios gastadores nas suas áreas. Não eram talvez os casos de VPV nem de Medina Carreira, mas mesmo estes não se teriam atrevido (e creio que ainda não se atreveram) a dar o salto necessário no raciocínio: a decadência do Ocidente é talvez sinónimo de uma falha básica do capitalismo: o crescimento infinito é uma quimera. Perigosa.
Importaria sobretudo perceber se o endividamento que nos condena a todos, e nos deixa nas mãos dos especuladores e da China, teria sido evitado se o modelo capitalista tivesse sido empregue com mais, digamos, moderação. Ou seja, se se tivesse evitado esbanjar dinheiro em obras faraónicas e não raro inúteis, se não se tivesse feito das derrapagens absurdas nos orçamentos de obras públicas (invariavelmente com proveito de privados) a norma, se se tivesse legislado e posto em prática um modelo judicial capaz de diminuir drasticamente a corrupção, se a democracia tivesse sabido ser inclusiva e (portanto) promotora da produtividade dos cidadãos, se se tivessem condicionado ou evitado as regalias das classes dirigentes (carros, motoristas, cartões de crédito, vencimentos exorbitantes, pensões precoces e ricas), se se tivesse definido um espectro bem menos generoso para variações salariais (a quantidade de pessoas que em Portugal ganham mais de 3.000 euros é simplesmente suicida). Em suma, importa perceber se a causa do declínio do Ocidente é a desvirtuação do sistema ou se, como alguns pretendem, é a própria definição de Ocidente (segurança social, conforto, bem-estar, direitos humanos) que inclui a cláusula de implosão.
Talvez seja prematuro declarar a insolvência do capitalismo, mas é sem dúvida triste que antes disso se declare a falência da civilização.

A decadência do Ocidente II

Na luta pela hegemonia (ou sobrevivência?) económica, o Ocidente tem certamente que moderar os seus luxos, mas não é talvez demasiado irrazoável imaginar que, resolvendo os problemas que desvirtuam o modelo (mesmo que isso no limite implique uma mudança de algumas premissas básicas), a “barbárie” possa ser mantida à porta. Porque o problema interno das potências emergentes é potencialmente mais grave e explosivo: Índia, Brasil e sobretudo a China vão ter de lidar com enormes classes baixas e médias a reivindicar crescentemente mais bem-estar, mais conforto, mais segurança social, mais ocidente.
A decadência do modelo Ocidental, não havendo mudança de paradigma económico, é mais provavelmente a decadência do mundo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Alberto João, esse velho comunista

Madeira, o 195.º estado

Se as eleições forem vencidas por Alberto João, nas circunstâncias actuais e com discursos como este, não resta outra coisa a fazer se não conceder à Madeira a sua desejada e merecida independência. Não seria uma secessão dramática. Na ilha e no continente, as pessoas limitar-se-iam a alinhar-se nas respectivas costas e a acenar os lenços sem grande emoção, como quando parte num navio um familiar distante.
O voto dos madeirenses não poderá deixar de ser entendido como uma adesão clara do povo ao pensamento do soberano e, por coerência, à ideia independentista, mesmo que a velha raposa fanfarrona não use o termo “independência” (todos sabemos porquê). Os restantes portugueses bocejarão ou mudarão de canal quando um dia a RTP transmitir a transferência de poder. Nem o Conselho de Segurança da ONU se oporá.

Amostragem

Nas circunstâncias actuais, vai ser interessante perceber como vão votar os madeirenses nas próximas eleições. Serão capazes de não votar em Jardim? Abandonarão finalmente o seu papel de súbditos ou de clientela?
Não estamos a observar um povo estrangeiro ou exótico. Os madeirenses, também para o que aqui interessa, são portugueses, partilham o mesmo genoma, a mesma idiossincrasia, e descobrir como reagirão ao cúmulo da desvergonha ajudar-nos-á a conhecermo-nos melhor enquanto nação.
Importa averiguar se os portugueses finalmente perceberam como é pernicioso votar acriticamente; se perceberam que o seu comportamento enquanto eleitores influencia de facto o seu futuro enquanto povo; que os erros que estão dispostos a perdoar ou de que são cúmplices se voltam contra eles próprios mais cedo ou mais tarde.
Se isto acontecer, talvez estejamos a dar o primeiro passo para sair da crise (se a crise tiver saída que dependa de nós) e para nos tornarmos um país mais decente e mais focado num bom desempenho económico e social.
Claro que por segurança é melhor apostarmos que nada vai mudar, que o soberano ilhéu continuará a ter as grandes vitórias do costume enquanto for candidato. Porque a exposição da desvergonha por si só não representou propriamente uma novidade. As pessoas sabiam, de algum modo sabiam como eram governadas (na Madeira como em tantas paróquias de norte a sul do continente). O que pode fazer a diferença é desta vez acontecer alguma coisa de facto, haver alguma consequência para Jardim e para a Madeira. E isso está nas mãos dos políticos e das instituições do Estado. Façam o seu papel, mostrem que há consequências e talvez o povo comece a repensar o seu comportamento e a fazer com que a democracia representativa funcione, deixe de ser a farsa com que nos iludimos.
De Cavaco Silva já ninguém no seu juízo espera nada de útil ou sequer relevante, mas Passos Coelho tem aqui a oportunidade de mostrar que é mesmo uma pessoa com vontade de fazer as coisas bem, que não foi apenas um tipo que soube aproveitar o momento para agarrar o lugar ambicionado e alguém obcecado em aplicar um certo programa ideológico, seu ou daqueles a quem dá ouvidos.

Público-alvar

Nos “extras” de um DVD, os actores e o realizador falam da sua ambição para o filme. Todos esperam que seja um «bom entretenimento», que os espectadores desfrutem da acção, dos efeitos especiais. Conseguido isso, seria maravilhoso se o público gostasse da história, por exemplo, se se emocionasse com as personagens, apreciasse a evolução da narrativa, a sua estrutura, e, oh felicidade, se sentisse estimulado com o suspense e o «paradoxo» do final. O realizador espera que as pessoas pelo menos não se aborreçam se não perceberem tudo. Tem confiança que não, porque a acção e os efeitos especiais, talvez a história de amor, hão-de ser suficientes para a maior parte das pessoas apreciar o trabalho.
O filme chama-se “Código Base” e é bonzito — apesar da audiência imbecil para quem, a julgar pelos testemunhos dos protagonistas, parece ter sido feito.

P.S. Não sei se isto é exactamente uma qualidade do filme, mas podem todos ficar descansados: o público-alvo consegue decerto percebê-lo e desfrutar — embora, claro, talvez se sinta defraudado no que toca a acção e a piadas de taberna. Por mais que tivesse, nunca seriam demais, dirá.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Estamos condenados a perscrutar os céus

Nuns dias aguardamos o milagre, o deus ex machina que há-de solucionar o drama que vivemos. Noutros, procuramos não ser atingidos por uma das 26 peças do satélite UARS que vão sobreviver à sua queda descontrolada. Com isto, tiram-nos o último direito — o de, humilhados e envergonhados, podermos atravessar a rua de cabeça baixa.

Tudo sob controlo

A NASA tinha duas possibilidades: planear a queda do seu satélite em lugar inóspito ou monitorizar diariamente os céus (com a mão em pala sobre os olhos) e gritar em tempo útil «cuidado com a cabeça». De um lado estava a fria tecnologia de ponta e o insosso rigor matemático; do outro, a adrenalina.
— Quando vai cair?
— Sexta-feira, mais dia, menos dia.
— Onde?
— Abaixo da Dinamarca e acima da Antárctida.*
Ou a NASA tem andado a contratar nos excedentes da função pública portuguesa ou o império americano está mesmo no fim dos seus dias. Deixar cair satélites à toa não era uma prerrogativa russa? Houston, we really have a problem.

* Este diálogo não é ficção, vem nos jornais.

Negócio de ocasião

A probabilidade de ganhar o euromilhões é de 1 em 116.531.800; a de alguém ser atingido por um pedaço de satélite é de 1 em 3.200 — e você acha o capacete caro?

Pergunta o disléxico

O satélite que vai cair é filho da Ursa Menor ou da Maior?

Esconjuro comunista

Se para acabar com o comunismo foi preciso uma perestroika, para a democracia capitalista uma troika há-de bastar.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

É um pássaro? Um avião? Não, é o Superpateta

A notícia é sobre um concurso que visou escolher «o homem mais forte de Portugal» e o destaque diz: «Se houvesse dez milhões de portugueses assim, a troika não estava cá.» Num primeiro momento fica-se com a ideia de que a frase é mais uma bravata, que os nossos problemas se resolviam com força bruta, escorraçando o FMI e talvez os credores. Mas o texto esclarece. Os portugueses a que a pessoa citada se refere são gente que trabalha de dia e «treina à noite», «alguns há mais de vinte anos». «É muito sangue e suor.»
Percebe-se então que aquilo está em causa é uma defesa do trabalho, da dedicação, da perseverança. Com uma população assim, insinua-se, a economia portuguesa não teria descido até onde desceu. Não há como não simpatizar com a ideia.
A ironia é que o que a troika e Passos Coelho pretendem para o país é exactamente muito sangue e suor (eles acrescentam lágrimas). Ainda vamos descobrir, portanto, que na pátria não se estão a implementar medidas económicas, mas um programa de body building. Passos Coelho não é um primeiro-ministro, mas o personal trainer de dez milhões de cidadãos. O que se visa não é diminuir o défice e o endividamento, aumentar a produtividade — é que cada português seja capaz de levantar um pneu de 350 quilos ou arrastar um camião TIR.
Mas conhecerá Passos a receita dos strongmen? Trabalhar, treinar e comer, «não há outra hipótese». «Muitas proteínas, arroz, batata e feijão». Ora, tudo indica que esta parte da receita vai ser negada aos portugueses, pelo que, mais do que strongmen, o que se nos pede é que sejamos um tipo original de supermen: anoréxicos, mas pujantes. Escanzelados, mas fortes como touros. Uma espécie de Superpatetas, talvez. Alimentados a amendoins.

Força bruta

O concurso referido acima foi vencido por um tal Adérito Santos (35 anos, 139 quilos). Mas isso só aconteceu porque Alberto João Jardim não participou. O madeirense (68 anos e umas boas arrobas) é na verdade o homem mais forte de Portugal. Não vira pneus nem arrasta camiões, mas até à data vergou 18 (a caminhar para 19) governos da República e parece que se prepara para arrastar 92 mil quilómetros quadrados de território para um buraco ainda mais fundo. Sem um arranhão e mantendo um belo sorriso nas ventas.

A besta sou eu?

Há quem defenda que o segredo da força de Alberto João está na sua condição de ilhéu: a insularidade tonifica os músculos e fortalece o carácter. Por outro lado, um estudo mais apurado do carácter em questão poderia indicar que a sua singularidade se deve a outra palavra com o mesmo radical: insolação. No entanto, os resultados da contenda relatados no post anterior deixam sérias dúvidas sobre quem na nação tem apanhado sol a mais.

Bairrismo

Já agora, uma curiosidade: a notícia (de página inteira) que serviu de base a estas patetices é, aparentemente, sobre o concurso que o Porto acolheu, mas na verdade é apenas uma demonstração de bairrismo bacoco da secção Local (Norte) do Público. A foto e o texto não destacam o vencedor, mas um dilecto e vencido filho da terra das francesinhas.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Passadeiras

Atravessar uma passadeira não é só o modo correcto e (eventualmente) mais seguro de cruzar uma rua. É também uma forma de exposição, uma submissão aos olhares críticos dos automobilistas, ao seu escrutínio indiscreto.

Em certa óptica, uma passadeira é uma passerelle, com a diferença de que nesta só desfila quem o deseja, muitas vezes concretizando um sonho de vida. Na passadeira, o que os tímidos ambicionam é ser invisíveis, porque receiam os longos segundos em que o olhar dos condutores pousa sobre eles, avaliando, procurando os defeitos, as excentricidades, tudo aquilo que lhes permita (aos automobilistas) desdenhar para si mesmos do peão que os fez usar os travões.

Enquanto os inseguros sempre que podem escolhem uma pausa no fluxo de veículos — não raro aguardando a uma distância que não traia a intenção de atravessar, ou, se descobertos, concedendo prioridade aos carros com um gesto de falsa indulgência com a pressa alheia —, outro género de pessoas aprecia a sensação de fazer parar o trânsito. Os seguros de si revelam-se até ousados, por vezes temerários. Põem o pé na estrada num confronto claro, num desafio aos condutores — ou às leis da inércia e do atrito, em certas alturas. A devassa dos olhares alheios não os incomoda, sentem-na como uma carícia, gostam de ser apreciados.

Uma estatística que incluísse elementos psicológicos das vítimas diria que os tímidos são mais propensos a atropelamentos na passadeira: não têm uma aura que desperte os olhares, que convide os automobilistas a pararem para observar. São, ironicamente (quando não fatalmente), mais invisíveis do que julgam ser.

Por outro lado, os extravagantes, ou sobretudo as mulheres vistosas, num mundo que tudo escrutinasse e anotasse figurariam nos relatórios das companhias de seguros como “causa” vulgar de batidas pela retaguarda. Alguns automobilistas, na sua exposição à seguradora, diriam, sem mentir totalmente, que foram forçados a parar. Mas seria fraco álibi: o perito sagaz que quisesse poupar despesas à sua empresa escreveria um parecer de moralidade irrefutável: «O segurado deve assumir a culpa no sinistro, já que a sua paragem na passadeira não se deveu ao respeito pelas regras (e pelo peão) mas a um impulso de macho voyeurista que não soube reprimir como lhe competia.»

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O gosto do proletariado

Como a televisão, embora em menor medida (dada a profusão de estações), também as rádios são veículos de previsibilidade. Os “sucessos” que emitem são-no não porque a audiência tenha elevado certas músicas a essa condição, mas porque as estações apostam nalguns temas (e podemos não estar só a falar de música) para esse estatuto, passando-os até à exaustão, conseguindo que sejam de facto os mais ouvidos. Não por mérito, mas por preencherem todo o espectro sonoro disponível.

E, porque também as rádios têm pânico de emitirem para o vácuo, as suas apostas são seguras, não é ainda aqui que há riscos, novidades, surpresas. Como a televisão, as rádios são uma peça na engrenagem do ciclo vicioso.

O que espanta é que, apesar de todo o esforço e manipulação dos agentes da previsibilidade (podemos incluir aqui os jornais, os media em geral, em larga medida a própria Internet), o que espanta é que subsistam focos de originalidade criativa no mundo e espíritos curiosos que navegam nos interstícios do sistema dispostos a serem surpreendidos, enriquecidos com o diverso e o novo. O que espanta é que, apesar do empenho concertado de governos e media, não tenha ainda crescido lã nas costas de todos os cidadãos e cascos nos seus pés.

É um espanto optimista, este, um maravilhamento com a natureza humana que talvez se alimente do dia luminoso e quente que esteve hoje. Estendamo-lo, resistamos ao Outono que se aproxima, permitamo-nos por momentos aliviar o cepticismo, o pessimismo ontológico; perguntemo-nos como seria o mundo se não tivesse sido inventada esta contradição nos termos: uma ditadura do (gosto do) proletariado dirigida superiormente.

Beleza enfadada

O ar de enfado ou de permanente irritação que ostentam muitas daquelas mulheres e raparigas que visivelmente se afanam a aprimorar ou a manter a beleza é pura eloquência. De quê? De uma superioridade que se impacienta com a banalidade do universo? De uma perfeição que não suporta a feiura e a vil natureza do resto da humanidade? É expressão indissimulável de deuses caídos e obrigados a habitar o repugnante mundo terrestre?

Talvez aquela eloquência apenas traia o esforço e o desapontamento dos seres em questão. O esforço sobre-humano a que obriga aquele tipo de beleza (disciplina, vigilância, concentração, exercício, dieta, investimento) e o desapontamento que vem de, depois de tudo, a pessoa continuar humana entre humanos, triste, vulgar, quotidiana e agastadamente humana.

Ou talvez aquela seja a expressão adequada e recomenda por especialistas em beleza para manter a frescura da pele e a tonicidade dos músculos faciais. Para manter um estado, uma condição, um nível de aperfeiçoamento que um sorriso, uma manifestação de agrado, de espanto, ou outra qualquer reacção emotiva, claro, faria desabar irremediavelmente.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Se a questão é alijar carga

Numa altura em que o Governo trata de vender ao desbarato património e recursos nacionais, talvez a privatização da Madeira há pouco proposta no café fosse uma alternativa a ter em conta. Para além de eventualmente trazer alguma folga orçamental ao País, resolvia o problema da sempre adiada secessão da ilha — poupando ainda no referendo. (Tal como para as demais privatizações, o Governo nem precisava de perguntar nada aos portugueses.)

P.S. Alberto João manda dizer que privada já a ilha é, seus cubanos invejosos.

A profundidade das prateleiras

O zapping radiofónico apanha na Antena 3 o que parece uma conversa sobre livros. Falso alarme: apenas um fait divers a meio de mais um programa banal. O assunto é, naturalmente, cómico: um artigo da Economist revela que a Ikea tenciona remodelar as suas prateleiras de livros (modelo Billy), tornando-as mais fundas para que possam albergar bugigangas e brique-a-braque — aquilo que as pessoas de facto lá põem. Ainda mais agora que os e-books se popularizam.

A classe média pode enfim respirar. Está, de hoje em diante, dispensada de comprar enciclopédias e calhamaços para mostrar sofisticação intelectual. O que se lhe pede é que encha a sala de tralha. Ainda mais.

O fim do livro impresso parece ser a alegria de muita gente (não só da classe média). Mas eu se fosse aos fãs do livro electrónico não me dava precipitados ares de superioridade: não tarda os fabricantes do Kindle e afins estão também a conceder mais desta “profundidade” às prateleiras dos seus aparelhitos: o povo vai com toda a certeza querer lá meter muita bijutaria no lugar de livros.

A ilusão do ecrã (ou o elogio do livro impresso)

Por outro lado, ainda há quem reconheça utilidade ao velho livro. Ou descubra o quanto um ecrã pode ludibriar:


(O elogio do livro neste caso não coincidiu com uma boa crítica à obra: quatro pontos e meio em dez. Confira.)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Façanheiros…

Uma das coisas que a crise financeira iniciada em 2008 necessariamente faz (ou devia fazer) é interrogar como é que o sensato pessimismo antropológico da direita  se coaduna com a crença fervorosa num mercado desregulado. Para além da natural dificuldade de resistirem aos muitos crimes possíveis num mercado assim, ficou evidente que não só os agentes económicos são também capazes de agir irracionalmente, e portanto contra os interesses do sistema, como são capazes de arriscar “irracionalmente”, porque sabem que no fim estará sempre o Estado para cobrir as falhas.
Esta é a chave. Num mercado verdadeiramente livre, o Estado não poria a mão por baixo de especuladores ou instituições que arriscaram de mais. Só que aparentemente não o pode fazer, porque as consequências do risco estúpido afectam o resto do mercado e, no final, a sociedade. Os especuladores sabem-no ― por isso, como personagens façanheiras, riem do “risco”.

…e façanhudos

É claro que os mais radicais defensores do mercado livre, que acreditam nos «efeitos benéficos da cobiça», defendem, para serem coerentes, a queda dos fracos e dos que falham, defendem que o Estado os deixe cair.
Não podemos deixar de ver nesta proposta a defesa de um darwinismo social. Um apelo ao velho farwest. De onde, de resto, vêm muitos destes arautos. Não é portanto uma proposta civilizacional (a civilização é solidária, regrada e policiada) ― mas uma tara. Não é um sistema filosófico ou político ― mas um remake cinematográfico. Não tem um pensador a inspirar o movimento ― tem o John Wayne. O que explica tudo. As suas ideias não assentam em reflexões, experiências, conhecimento, estudo ― assentam na sela de um cavalo.

Ideólogos versus idealistas

A maneira como certos ideólogos do mercado livre acreditaram no comportamento racional e responsável dos agentes económicos (esqueçamos por um momento que a irresponsabilidade é gratuita nos mercados, como dito aqui) aproxima-os dos mais cândidos idealistas de esquerda. Estes dois grupos, aliás, começam a partilhar outra característica: a descrença no homem. Os primeiros, desde sempre, por herança de pensamento; os segundos, recentemente, vencidos pelo cansaço e pelas evidências, a ver no panteísmo uma compensação emocional. A diferença é que os idealistas tendem a mobilizar-se pelo ambiente e os ideólogos tendem a destruí-lo.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Agentes da previsibilidade

Televisões
Quando as televisões generalistas fazem referência em horário nobre à estreia de um espectáculo de teatro, esse espectáculo é uma comédia ou tem actores que a própria televisão mediatizou noutras actividades. Na maior parte das vezes verificam-se as duas situações: é uma comédia com actores mediáticos.
De resto, não é por atribuírem importâncias às artes do palco que as televisões referem os espectáculos. Fazem-no para apanhar boleia do impacto que sabem que aquelas peças (jornalísticas) vão ter. É a mediatização a alimentar-se de si mesma. É notícia aquilo que a figura pública faz quando é feito por ela, não por alguém desconhecido. O mesmo espectáculo protagonizado por actores desconhecidos (ainda que excelentes) jamais terá honras de fecho de telejornal.

A televisão teme não ser vista. Vive nesse pânico. Torna-se histérica. Patológica. Deixa de ser um veículo de imagens, janela do mundo, para se tornar espelho de si própria. Aquilo que uma vez funcionou, foi visto pelos espectadores, é tudo o que a televisão arrisca mostrar. Apressa-se a deitar fora o que quer que tenha ficado um grau abaixo das melhores expectativas. Reduz o foco da sua atenção até, no futuro, não restar mais do que um pixel no centro do ecrã. O mais mediático pixel da história da humanidade. Devemos ansiar por esse dia.

Mecenato
Algo parecido acontece com o “mecenato” em Portugal. Com a fraca excepção dos equipamentos nacionais (em Lisboa e Porto), nenhuma empresa ou instituição patrocina a sério as artes neste país. Os patrocínios vão todos para artistas ou eventos mediáticos (por definição capazes de sobreviver sem apoios). Isto porque as empresas e as instituições (mesmo que em parte do Estado) não tencionam prestar nenhum serviço público. Como as TVs, querem apenas apanhar boleia do que é mediático, promoverem-se a si mesmas. Na verdade, o que fazem é comprar espaço de publicidade nos cartazes ou nos palcos das actividades que dizem apoiar. E que, perversamente, promiscuamente, acabam por apoiar de facto, promovendo ainda mais o que já é sobejamente conhecido e não raro medíocre.

Decisores
Isto não acontece porque o panorama artístico nacional, aquele que resiste apesar de tudo, seja miserável. Não é. Acontece porque a sofisticação cultural da maioria dos empresários e responsáveis deste país é nula*. Televisões, instituições e empresas estão-se nas tintas para a arte. São apenas agentes da previsibilidade, elemento e alimento do ciclo vicioso.

Público
O grande público é apanhado nas voltas deste ciclo vicioso, verdadeiro rolo compressor de mentalidades. Tudo o que lhe é dado a ver, tudo o que levam até ele, é aquilo que ele conhece. Não o questionam, não lhe pedem a opinião. Não o tratam democraticamente, apresentando-lhe em pé de igualdade um leque de alternativas para que ele possa escolher, em liberdade. Não o respeitam, portanto. Não o deixam ser livre. Não arriscam.

* Um estudo interessante e esclarecedor seria aquele que divulgasse a quantidade de vezes que, nos últimos anos, entraram num teatro, e para ver que espectáculos, os responsáveis por empresas e instituições e opinion makers nacionais. E, já agora, também o quadro de pessoal da Secretaria de Estado da Cultura. 

Agentes da previsibilidade II

Não raro, em defesa da feira de vaidades instituída, é dito que a mediatização de intérpretes concedida pelas televisões é benéfica para o teatro. Que de alguma forma essa mediatização foi responsável por devolver público ao teatro. Mas a questão é esta: de que teatro falam? Salvo honrosas excepções, as vedetas de televisão sobem aos palcos para compor o orçamento (ou o ego) com umas comediazinhas ligeiras, muito vezes verdadeiramente execráveis. Que de quando em quando são apresentadas como exemplos de produção verdadeiramente “independente”. E rentável, claro: apostam sempre no número (de circo) vencedor.
A não ser se pretenda que teatro passe a ser sinónimo de comédia, que se pretenda reduzir, digamos, dramaticamente a amplitude da disciplina, amputá-la dos seus múltiplos ramos, purgá-la de géneros, correntes, autores, a não ser que o objectivo seja esta simplificação extrema (ideia que certamente excita muitas cabecinhas), a mediatização não tem servido de muito ao teatro. Quantos dos “famosos” aproveitam a sua fama para dar visibilidade a alguma forma de teatro que não seja a esperada pela TV? O métier português não é como o londrino, pois não.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Um par de cabeças garrafas vazias

Na esplanada, como se a avisar que o bom tempo não é para levar demasiado a sério, sopra uma súbita rajada de vento. Da mesa de duas mulheres caem duas garrafas de plástico. Elas ficam a vê-las rebolar. Não têm um gesto instintivo para deter a queda, não se levantam depois. Viram sem sobressalto as cabeças e ficam, estáticas, a observar o percurso imprevisível das garrafas até o atrito vencer a inércia. Não mexem ou pestanejam. Dir-se-ia que calculam, ou aguardam para ver, o sítio exacto onde se hão-de dirigir para as apanhar. As garrafas detêm-se. As duas mulheres voltam-se uma para a outra e recomeçam a conversa onde a tinham interrompido. Aquele hiato não serviu afinal para traçarem a rota mais directa para as garrafas, a forma mais cómoda e discreta de as apanharem.

O tempo suspendeu-se ali na esplanada. Tudo esteve de alguma forma pendente da trajectória seguida pelas garrafas de água. Não saberemos que pensamentos as mulheres tiveram. Talvez tenham avaliado a sua amizade ou tomado decisões sobre certos aspectos das suas vidas. Não é crível que, como o tempo, se tenha também suspendido o fluxo de consciência delas e a única coisa a acontecer no mundo, registada pelos olhos mas não pelo cérebro, tenha sido um par de garrafas a rolarem vazias e sem objectivo pelo passeio de cimento.

O vento incidiu de determinada forma e com energia potencialmente mensurável. Podemos considerar que houve uma relação directa entre o trajecto e o tempo que as garrafas demoraram a deter-se e aos pensamentos que tiveram lugar? Se houve conclusões, poderão elas ter sido influenciadas por aquela rajada de vento? Seriam outras se as garrafas tivessem descrito outro percurso, rolado mais ou menos algumas vezes?

Quase certo é que o inverso não se verificou. O olhar das mulheres não influenciou o movimento das garrafas, a não ser que queiramos dar crédito à telecinética. Caso o tivesse feito, caso elas tivessem decidido onde e quando paravam as garrafas, tinha sido uma intervenção inconsequente: não aconteceu nada depois disso.

Na verdade, nem tudo foi mistério ali na esplanada. Sabemos que a pausa das mulheres não representou uma tentativa frustrada de vencer a preguiça ou a indiferença. Sabemos também que elas não gastaram aqueles segundos com a metafísica do civismo, a ponderar quanta solidariedade lhes merecia o empregado de mesa. Ou então foi exactamente isso que fizeram — e concluíram que o pobre não lhes merecia nenhuma solidariedade. Tinha mais era de apanhar o lixo delas, ora essa.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Who you gonna call? Ghostbusters?

Não, o problema português não foi apenas elevar a despesa e o consumo a níveis sem correspondência com a produtividade. Não foi só o esbanjamento. O endividamento. Se fosse apenas isto, porque estariam a explodir de raiva os funcionários da denúncia? Porque espumariam? Porque se pareceriam tanto com o professor despótico que assombrava The Wall, olhos a saltar das órbitas?
O que leva aquelas almas da indignação à apoplexia é que, em simultâneo com o regabofe, perpassou pelo país, aqui e ali, uma brisa de civilização. Algumas pessoas permitiram-se sonhar com um Estado ao serviço do cidadão, cultura descentralizada, assistência na doença, serviços abrangentes e próximos, disseminados.
Onde já se viu? Quem se julgou esta gentinha?
O professor nazi que agora nos fustiga não nos censura tanto o desacerto das medidas tomadas, a insensatez das políticas seguidas. O que o deixa fora de si é a própria ousadia, a veleidade em si mesma. A impertinência que os vermes tiveram de pretenderem mais do que a sua condição.
Agora não nos basta arrepiar caminho, pagar as contas. Depois de nos saltarem à estrada de dedo em riste, os inquisidores vão querer ir mais além, habitar-nos os sonhos, assombrar-nos as noites de descanso. Que de resto não merecemos. 

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O último estrato

Não raro, do alto de quatro décadas de carreira, escritores consagrados declaram com tédio o fim próximo da literatura. Sentados nos seus trinta volumes publicados, não os incómoda que a literatura acabe. Já estão servidos. É, aliás, melhor que acabe. O ideal é ser-se o último estrato geológico, pensam sem o dizer.

Vasco Pulido Valente e o equívoco*

«Durante trinta anos, Portugal gastou bastante mais do que ganhou» e agora tem de pagar os desvarios. Num ano ou dois.
Aquele é o diagnóstico (de resto acertado), e esta é a sentença, pronunciada com um sadismo de velho mestre-escola.
Percebo o furor. A um queirosiano não são permitidas meiguices. Depois de Uma Campanha Alegre, malho que hesite não conta. No entanto, a venerável retórica de Vasco Pulido Valente, se serve para nos divertir, não serve a verdade.
O endividamento de Estado não foi uma originalidade nacional, mesmo tendo em conta os níveis absurdos que atingiu com Sócrates. Durante as últimas décadas, esta foi uma praxis ocidental, aliás incentivada pelo sistema económico internacional vigente, com manifesto regozijo dos mercados. Um estado que resolvesse seguir um caminho diferente ou era nórdico ou era estúpido. Ora, não consta que haja fiordes em Portugal e desde 1986 que a Europa não nos deixa ser (demasiado) estúpidos. Pelo contrário: de alguma forma, a Europa indicou-nos este caminho, ao “sugerir-nos” que não havia necessidade de produzirmos tanto em áreas como a agricultura e as pescas, por exemplo.
O descalabro poderia ser evitado? Claro. Aqui como na Espanha ou em Itália. Ou nos Estados Unidos. Mas, de certeza que cinco anos atrás havia assim tanta gente favorável a uma mudança de paradigma económico (que é aquilo que está em cima da mesa)?
Um destes dias, a Europa e os EUA vão descobrir que não se resolve em 24 meses um erro colectivo velho de trinta anos. Isto muito antes de descobrirem que a premissa de crescimento permanente em que assenta o capitalismo também terá de ser revista.

*Público de hoje.

Qual o rating da naftalina?

«A secretaria de Estado [da Cultura] tem um papel na discussão do que deve ser o repertório de um teatro nacional.»

domingo, 4 de setembro de 2011

Música para as trincheiras

Peter Gabriel é alguém que respeito na música. Quando levanta a voz, petrifica. De vez em quando, fá-lo, com aquela sua voz que continua rouca mesmo se projectada umas oitavas acima do que seria de esperar em alguém com tão respeitável careca.
No álbum “Scratch My Back”, de 2010, tem algumas versões admiráveis de temas de outros músicos. “Heroes” (David Bowie), “Listening Wind” (Talking Heads) e “My Body is a Cage” (Arcade Fire) são as minhas preferidas (não só porque já gostava dos originais), junto com “Street Spirit” (Radiohead). Nesta última, se por um lado deixa que a idade ou a emoção lhe cortem a voz em certos falsetes, Gabriel lembra noutros momentos mais graves o nosso Vítor Espadinha. Mas isto deixou de ser vexatório desde que o mais romântico dos portugueses participou numa das grandes canções da música lusa. Conferir aqui.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

No videoclube I

Com frequência talvez patológica, mas também com um certo desespero probabilístico, o artilheiro arrisca escolher filmes de aspecto e sinopse mais do que duvidosos. Em certos dias maus apetece um pouco de aventura, um thriller, suspense, ficção científica. E os períodos de crise económica têm muito dias maus. O organismo reage à depressão convocando o adolescente que ficou cá dentro, como um alter-ego, como o super-ego que combate o mal.

Um filme é uma porta aberta para um outro mundo. Ou deveria ser. Na esmagadora maioria dos casos, um filme é uma porta aberta para um território que já visitámos, para um lugar-comum, é um déjà vu, um plágio, em suma.

Está errada a ideia de que um argumentista é um criador. Não é. Ocupa na actualidade o lugar que os monges copistas ocupavam na Idade Média. Ei-los ali, pachorrentos, alinhados num claustro, a copiarem pacientemente o modelo que lhes foi facultado, com melhor ou pior letra, consoante a habilidade de cada um (quase sempre escassa — são pouco mais do que ignorantes, iluminados apenas por uma vela, ou uma tocha).

Talvez os argumentistas, inspirados um dia pela obra, seja ela qual for, tenham achado que era sua função propagá-la, como os seus ancestrais faziam com a Bíblia. Não se trata, afinal, de conceber produtos originais, de trazer novidade ao mundo, estimular a imaginação dos clientes dos clubes de vídeo, ou dos assinantes da TV Cabo, do Meo. Trata-se de proselitismo. A obra revelou-se aos argumentistas e eles querem que nos convertamos a ela. À força.

Ou talvez não seja nada disto. Talvez as companhias cinematográficas tenham feito estudos de mercado. Avaliado as capacidades mentais do espectador médio, do cidadão médio, bitola por que o mundo se rege — e se dana. Como pode comprovar qualquer pessoa que já tenha ido a um cinema popular, o espectador médio perante um filme novo, com argumento original, perde-se, não consegue seguir a história, aborrece-se, fica como um boi a olhar para um palácio. O boi quer erva igual e abundante, um pasto a perder de vista com milhões de pezinhos de erva replicando-se exactamente uns aos outros. Porque haveria o espectador médio de ser diferente? Porque haveria de desejar mais do que a enésima repetição do mesmo argumento?

Daí que as novas gerações de argumentistas já não frequentem cursos de escrita criativa. Vestem hábitos de serapilheira e passam temporadas em mosteiros a aprimorar as iluminuras.

A talhe de foice

Um dos filmes mais bem sucedidos dos últimos tempos, com seis sequelas, chama-se “Saw”. Saw, estão a ver a desarmante franqueza? Saw: viu um, viu todos. Um sucesso que se repete.

No videoclube II

Casal, por volta dos trinta. Ambos arejados, bem-dispostos. Entram com à-vontade na secção porno. Talvez em busca de um estímulo extra para o serão. Devem diverti-los as possibilidades de escolha porque cá fora ouvem-se com frequência gargalhadas. Também se ouve quando ela diz: «Esse não, um que tenha alguma história.»

São, afinal, como os casais que vasculham secções, digamos, mais ordinárias (banais, pronto). Acção, policial, terror, suspense, drama, ficção histórica, ficção científica, comédia, pornografia, you name it: eles apenas e sempre interessados na acção — elas a reclamar um pouco de narrativa.

(O mesmo perante os cartazes do cinema. O mesmo perante a vida. O cromossoma y não determina apenas o sexo: determina igualmente o lugar na escala evolutiva.)

Fast forward

No tempo da minha adolescência, eram os rapazes que associavam narrativa a pornografia. Não todos. Aqueles educados no pudor ou na vergonha das coisas do sexo. No pânico dos adultos. Se tínhamos de falar da nossa “vida sexual”, corávamos e dizíamos: sim, gostamos de pornografia, mas com história. Como se, para o caso de aquilo chegar aos ouvidos dos adultos, deixássemos implícita a indignação: somos por acaso alguns animais, coelhos? Éramos, claro. Ou desejávamos ser. Urgentemente.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Os homens da limpeza

O Ministério da Cultura não deveria ter terminado para dar lugar a uma secretaria de estado da cultura. A questão, sabe-se agora, não era um emagrecimento estrutural — era uma mudança de ramo. Do mesmo modo, a Direcção-Geral das Artes deveria ter mudado de nome — por que também mudou de ramo.
As notícias que vêm a público sobre estes organismos não são sobre cultura, são sobre outra coisa qualquer. Por exemplo, a DGArtes «passou a disponibilizar [online] todos os apoios concedidos às entidades financiadas pela Secretaria de Estado da Cultura»*. O objectivo é «implementar uma política de transparência entendível a todos os cidadãos». Além disso, a DGArtes «anunciou ainda que pretende iniciar um processo de monitorização e avaliação do trabalho efectuado pelas entidades beneficiárias, cujo resultado final esteja acessível de forma “clara e transparente a todos os cidadãos, sem filtros nem obstáculos”».

Não são estas notícias que estão mal, ou as iniciativas de que elas falam. Isso está muito bem, aplaude-se, é o que se espera de todos os organismos públicos. O problema é a total ausência de notícias sobre o que pretendem fazer as duas instituições em relação ao seu principal mister, a (com licença da palavra) cultura. Se vieram só para desratizar, deveriam ter tido a franqueza de se apresentar com as credenciais certas: Secretaria de Estado da Higienização. Direcção-Geral da Desparasitagem. (Talvez também Ministério do Fomento dos Tribunais Populares.)  

Caso alguém, por distracção, lhes venha a perguntar se consideram importante para um país ter teatro, dança, artes, os homens da limpeza, naturalmente dirão: Isso não é da nossa alçada. E com razão.

A dúvida agora é saber se o Executivo tem em mente, para o futuro, a criação de estruturas na área da cultura ou se apenas reformulará o organigrama governamental, como é forçoso, transferindo as duas instituições acima referidas para o ministério que tutela o Ambiente.

* Não é medida nova, mas parece que os almeidas não conseguiam ler o PDF que anteriormente se publicava.