Atravessar uma passadeira não é só o modo correcto e (eventualmente) mais seguro de cruzar uma rua. É também uma forma de exposição, uma submissão aos olhares críticos dos automobilistas, ao seu escrutínio indiscreto.
Em certa óptica, uma passadeira é uma passerelle, com a diferença de que nesta só desfila quem o deseja, muitas vezes concretizando um sonho de vida. Na passadeira, o que os tímidos ambicionam é ser invisíveis, porque receiam os longos segundos em que o olhar dos condutores pousa sobre eles, avaliando, procurando os defeitos, as excentricidades, tudo aquilo que lhes permita (aos automobilistas) desdenhar para si mesmos do peão que os fez usar os travões.
Enquanto os inseguros sempre que podem escolhem uma pausa no fluxo de veículos — não raro aguardando a uma distância que não traia a intenção de atravessar, ou, se descobertos, concedendo prioridade aos carros com um gesto de falsa indulgência com a pressa alheia —, outro género de pessoas aprecia a sensação de fazer parar o trânsito. Os seguros de si revelam-se até ousados, por vezes temerários. Põem o pé na estrada num confronto claro, num desafio aos condutores — ou às leis da inércia e do atrito, em certas alturas. A devassa dos olhares alheios não os incomoda, sentem-na como uma carícia, gostam de ser apreciados.
Uma estatística que incluísse elementos psicológicos das vítimas diria que os tímidos são mais propensos a atropelamentos na passadeira: não têm uma aura que desperte os olhares, que convide os automobilistas a pararem para observar. São, ironicamente (quando não fatalmente), mais invisíveis do que julgam ser.
Por outro lado, os extravagantes, ou sobretudo as mulheres vistosas, num mundo que tudo escrutinasse e anotasse figurariam nos relatórios das companhias de seguros como “causa” vulgar de batidas pela retaguarda. Alguns automobilistas, na sua exposição à seguradora, diriam, sem mentir totalmente, que foram forçados a parar. Mas seria fraco álibi: o perito sagaz que quisesse poupar despesas à sua empresa escreveria um parecer de moralidade irrefutável: «O segurado deve assumir a culpa no sinistro, já que a sua paragem na passadeira não se deveu ao respeito pelas regras (e pelo peão) mas a um impulso de macho voyeurista que não soube reprimir como lhe competia.»