terça-feira, 29 de agosto de 2023

Havia talvez maneiras piores de passar o mês de Agosto

Ao longo do mês, entretive-me a rever levemente Aranda, o meu livrito encalhado. Quando se convida alguém para casa, arejam-se antes os compartimentos e espanam-se os móveis. A casa não ficou pronta para receber a ¡Hola! — odeio a faina do lar e aquele domicílio precário não era limpo há uma década —, mas lá consegui esconder algum do lixo debaixo do tapete. Não foi a experiência traumatizante que temia. Havia talvez maneiras piores de passar o mês de Agosto.

(Os onze capítulos ficam no blogue por algum tempo, não sei quanto. O melhor é precaverem-se e copiarem-nos para os vossos dispositivos, quem sabe.)

domingo, 27 de agosto de 2023

Aranda | Capítulo 11 (último)


11. ELES SAEM DE CENA
  
PEDRO
 
Há um livro de BD que apreciei particularmente quando o li e que ao longo dos anos me vem com frequência à memória. É de um género menor, uma coboiada, mas dentro deste não é dos mais indigentes. Trata-se de um volume de uma série com desenhos apreciáveis (ou assim os lembro) e guiões um pouco acima da banalidade. O exemplar de que falo era, parece-me, o primeiro número de uma história que corria por dois ou três. No final dele, o herói, Bill Wild Jones, é acossado no topo de uma colina por um grupo de índios. Ele está sozinho, se exceptuarmos o cavalo, a Winchester e os Colt 45 de coronha branca (usa dois, tenho quase a certeza). Nas últimas páginas, o assalto dos índios à sua posição começou e Wild Jones parece resistir bem. Mas a desproporção é grande e não sabemos quantas munições ele possui. O volume termina ali, pretendendo deixar os leitores suspensos do desenrolar da história, e, obviamente, ansiosos por adquirir o número seguinte.
Os argumentistas (ou a editora; pode ter sido dela a decisão de quebrar a história naquele ponto) conhecem o baixo nível de exigência dos seus leitores, confiam na colaboração fácil deles, na sua grande disponibilidade para reagirem da forma desejada aos estímulos, para dançarem consoante a música que eles tocam, caso contrário não lhes ocorreria fazer suspense com o destino de uma personagem que dá nome à série, cujo nome aparece no cabeçalho antes e com mais destaque do que os títulos das histórias. A não ser, claro, que pretendessem acabar com o protagonista e, consequentemente, com o produto, fazendo daqueles últimos volumes um épico para recordar e coleccionar ainda com mais apego. Mas os livros de Bill Wild Jones não eram deste tipo, não pertenciam ao universo Marvel, onde o risco e a criatividade tinham acolhimento e carinho e era possível tratar mal ou, mais raro (mas também possível), matar um personagem principal. Bill Wild Jones era entretenimento menos complexo, para gente menos interessada em que lhe estimulassem os neurónios. Talvez fosse até, afinal, um pouco imbecil, embora não tão imbecil como poderia ser e como o eram centenas de outros títulos da minha colecção.
Quando me veio à memória de novo aquele episódio do assalto à colina, fui procurar o livrinho. Queria perceber porque o recordava com tanta frequência, o que havia ali de tão interessante que tivesse ficado retido, embora a um nível subliminar (não tinha consciência da razão), na minha memória. Lembro-me de na altura me identificar com o personagem — ou talvez não com o personagem e as suas idiossincrasias, mas com aquela experiência específica, aquela emoção de um tipo se saber sozinho contra todos, a raiva, a desolação, a descoberta do abrigo e do conforto que pode proporcionar um conjunto de rochas, a ideia de que o mundo pode acabar ali, que aquela pode ser a última vez que temos uma troca social, mesmo que estejamos a falar de uma troca de tiros. Mas naquela época eu identificava-me com todos os heroísmos, todos os mártires, com todas as personagens que faziam coisas fora da normalidade. Não era isso que distinguia de muitos outros aquele episódio, que, aliás, na sua previsibilidade, não era particularmente relevante neste domínio.
Após aturada busca, localizei-o numa das muitas caixas que guardo no sótão e lembrei-me de imediato que nunca cheguei a adquirir o número seguinte, porque durante o mês que ele demorava a chegar eu tinha crescido o suficiente para me achar interessado noutro género de BD. Acabei por esquecer a sequela e, assim, o suspense acompanhou-me a vida toda. (Agora que o penso, tanto quanto sei Wild Jones pode mesmo ter morrido ali e a série ter acabado, eventualmente retomada depois por imperativos comerciais, com episódios anteriores ou a decorrerem numa realidade alternativa — nada me garante que a editora não tenha mudado de paradigma.)
Pus-me a pensar se era esta a razão por que o episódio me vinha a memória com regularidade: o facto de não ter chegado a comprovar como seria o resto da história, de me ter ficado uma dúvida residual quanto à previsibilidade da série, da personagem, do género. E depois concluí que não ia querer confirmar as minhas suspeitas, que a probabilidade ínfima de os argumentistas terem mudado os pressupostos me era cara; concluí que preferia a esperança remota num rumo diferente. Uma atitude aliás adequada a um amante de banda desenhada — este gosto por mundos ou realidades diferentes, alternativas, onde as coisas não decorrem como se supõe que devam, onde a imprevisibilidade do universo pode ser-nos agradável, favorável à nossa sensibilidade.
Por isso não fui ter com Rita, como tínhamos combinado quando percebi que a cronologia a ilibava no caso de Cláudia. O meu episódio com a ruiva enfermava do mesmo tipo de banalidade das histórias de Bill Wild Jones, eram argumentistas com igual falta de ambição que o escreviam. Se nos encontrássemos, tomaríamos o previsível café (adiado vinte anos), falaríamos algum tempo da trovoada que se abatera sobre Aranda na noite anterior e das suas consequências, se algumas; ela far-me-ia ver como não tinha havido nada de intencional em ter partido sem se despedir quando éramos jovens (fazendo crescer em mim ilusões) e, como seria de esperar, partiria de novo, inevitavelmente, talvez com a vaga promessa de voltar mais vezes ou com a cordial insistência para que eu a visitasse lá onde ela morava. Não fui ter com Rita porque me reservei o direito de que as coisas acontecessem de forma diferente. Eu era Bill Wild Jones e ninguém haveria de decidir por mim o número de índios que mataria (até porque a razão, sabia-o agora, estava do lado dos nativos americanos). Reservei-me o direito de passar o resto da vida a imaginar sequelas diferentes para o meu episódio com Rita, desenlaces com outros rumos, que me permitiam vê-la com regularidade e com regularidade maravilhar-me com a cor dos seus cabelos.
A cor não era despicienda. Mesmo que, na mais remota das hipóteses, a vida estivesse disposta a colaborar, o mundo deixasse por instantes de ser tão previsível e me concedesse a ventura de ficar com Rita, eu não poderia de novo maravilhar-me com o vermelho dos cabelos dela, assim como me era negada a possibilidade de ter uma experiência completa, perfeita, com alguma da melhor banda desenhada. Deixei de ler e comprar BD colorida para afastar a frustração superveniente da minha insuficiência visual, que os médicos, agentes da previsibilidade, classificaram taxativamente de irreversível. Na vida estavam-me reservadas experiências imperfeitas e previsíveis — mas eu podia evitá-las se não comprasse os volumes seguintes das histórias e deixasse sempre em aberto na minha cabeça a sua continuação.
 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Aranda | Capítulo 10

 


10. AFTER-PARTY

  
CLÁUDIA
 
A boneca de porcelana foi a primeira a reagir à chuva, com o seu olharzito de pássaro assustado sob as pingas grossas. Que tencionas fazer?, achou Cláudia que ela disse, revelando também alguma indignação com a inércia da pessoa que a segurava entre os dedos, dona do seu destino. Cláudia estava a ver a trovoada aproximar-se. Primeiro eram apenas uns clarões no horizonte a sul dali, flashes que acendiam a noite como cliques de fotógrafos de mundanidades. A boneca tinha gostado dessa parte, fazendo-se ainda mais coquete, sonhando com festas glamorosas, mas depois começou a ouvir-se o trovão, ainda atrasado em relação aos relâmpagos, e Cláudia sentiu-a estremecer a cada impacto. As primeiras gotas foram como as da manhã, efémeras, sem peso, volatilizadas precocemente pelo calor que se desprendia da terra sobreaquecida. Por instantes pareceu que ainda não era desta feita que a tempestade se abatia, se é que alguma vez ela teria lugar. Mas, com o correr dos minutos, o hiato que separava o som da luz diminuiu, as nuvens deslocaram-se para norte, para Aranda, e o espectáculo instalou-se. Cláudia pôde ver as faíscas a cruzar a noite em avanços sucessivos, como lançamentos experimentais de uma artilharia que alguém estivesse a guiar à distância, um observador avançado que ia pedindo mais alcance, mais ousadia. Cláudia estava sintonizada com esse observador invisível. Via a cada explosão, como ele, os montes serem varridos por uma frente diáfana, uma cortina de chuva que se deslocava logo atrás dos raios e que tornava indistintos o céu e a terra.
Tinha chegado lá acima, ao Pavilhão dos Amores, com facilidade, ajudada pelo luar que reinara quase toda a noite, mas eles teriam de progredir pela encosta já quase sem luz: o céu encobria-se. Seriam eles tementes da trovoada ou excitar-se-iam com ela? A ameaça agora a concretizar-se da chuva seria dissuasora ou estimulante? Cláudia achava que o espírito do grupo estava demasiado elevado para que desistissem. Vira-os dançar e eles pareciam sentir-se de novo poderosos. Subir lá cima depois de uma festa era um desafio à medida das pessoas que eles tinham sido, e agora estariam suficientemente inebriados para acharem o apelo irresistível.
A boneca sentiu os cabelos colarem-se ao crânio de porcelana e o vestido ao corpo. Aquilo — deixar-se encharcar pela chuva — era sexy, mas não havia ninguém para apreciar, o que talvez fizesse do exercício uma futilidade adolescente. Mais a mais, aqueles relâmpagos estavam a ficar demasiado próximos para que elas pudessem continuar a ignorá-los. Tentou debater-se, mas os dedos de Cláudia seguravam-na firmemente e ela não dava sinais de estar disposta a recolher-se, não por enquanto.
Cláudia reflectia sobre as propriedades purificadoras da água. Era uma vulgaridade evocá-las naquelas circunstâncias, numa altura em que esperava reparação; contudo, era também adequado que os céus se abrissem precisamente agora. A chuva não fazia parte de um plano superior, certamente que não, mas não seria mais oportuna se o fizesse. Havia uma parte da sua alma que começava a sentir-se limpa, apaziguada. Ou talvez a sua alma estivesse apenas a ser arrebatada pela magnitude dos elementos. Talvez não houvesse conexões entre os fenómenos climatéricos e a redenção do opróbrio, e o que ela sentia era o bálsamo da experiência exacerbada dos sentidos, não o alívio da remissão. Só na Bíblia uma bátega extrema era uma purga e só naquelas páginas era admissível imaginar a chuva a poupar os que tinham alcançado o cume e as torrentes a levarem pela encosta abaixo os que a tentavam subir. A boneca, entre os sustos provocados pelos coriscos, riu-se da alusão e de se imaginar na Arca com Cláudia.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Aranda | Capítulo 9 (segunda parte)


9. À NOITE, NA DISCOTECA
(segunda parte)


RITA
 
Rita jamais teria imaginado que aquele seria o aspecto actual de Elvis. Antes de sair do quarto, ela própria se tinha olhado ao espelho e procurado ali a Rita de havia duas décadas. Decidira vestir-se da forma mais juvenil que as roupas trazidas para Aranda lhe permitiam e tentou pentear o cabelo como costumava fazer, dar-lhe a mesma aparência que tinha nos seus vinte anos. Era ruiva e isso não mudara, pelo menos por aí haveria pontes para chegar até ela.
A sua frustração aumentava à medida que visitavam lugares e o tempo avançava sem vestígios de Elvis. Estava a ser uma noite divertida, não poderia dizer o contrário, mas ela queria que fosse uma noite de revelações, de sonho, mesmo que posteriormente tudo aquilo, a ilusão que resolvera alimentar, indicasse uma fragilidade no seu equilíbrio emocional, lhe dissesse que estar sozinha a afectava mais do que ela se permitia crer.
Depois de, a seguir ao jantar, terem espreitado os cafés e bares da vila, novos e velhos, sem chegarem a entrar na maioria deles, resolveram regressar ao Luxor. Já não era a pedra angular da noite de Aranda, mas ainda tinha alguma clientela e era o sítio onde eles se sentiam bem. A decoração, demasiado exótica e pesada para ser simplesmente mudada, quase não sofrera alterações. Quaisquer reformas ali implicariam a demolição integral do interior e talvez os proprietários não tivessem dinheiro ou interesse nisso. De resto, Rita e os amigos agradeceram que fosse assim; por eles, Aranda inteira ter-se-ia mantido igual, uma vila preservada como um museu durante duas décadas só para esta visita.
Rita poderia ter visto Elvis no Luxor uns quinze minutos antes, quando alguém se dirigiu à jukebox (ainda existia e funcionava) e meteu uma moeda para escolher “True”, dos Spandau Ballet. Era uma música de que ela gostara, com o seu romantismo elegante (e petulante). Aos primeiros acordes teve um estremecimento, mas a silhueta que entreviu de costas a afastar-se deixou-a indiferente, não lhe ocorreu que não fosse uma coincidência alguém ter escolhido aquela música. O seu olhar sonhador deteve-se no aparelho em vez da pessoa. De seguida, ela e os amigos tomaram de assalto a máquina e experimentaram introduzir ali sucessivas moedas, antes de descobrirem que tinham de trocar o seu dinheiro por moedas antigas que eram guardadas como fichas de jogo no balcão. Quando o fizeram, quando puderam accionar a máquina a seu bel-prazer, riram — com bonomia, por vezes, e até às lágrimas, noutros casos — das velhas músicas que escolhiam.
O encontro deu-se por fim quando Rita regressava à sala do café depois de ter ido à casa de banho. Desequilibrou-se no degrau que existia à saída dos lavabos e deixou cair a bolsa. Um homem, sentado a uma das mesas que ficavam perto da porta, apanhou-a e estendeu-lha.
— Obrigada — disse ela, sem o olhar de frente.
— Não tem de quê — foi a resposta.
Rita continuou o seu caminho para junto dos amigos, concentrada em endireitar-se ao andar. A embriaguez moderada da tarde, depois da pausa no hotel e de ela se ter contido ao jantar, estava agora a insinuar-se de novo. Tinha de ir com calma, pensou, se queria que a noite durasse. Pôs-se a ver Mário seleccionar “Rattlesnakes”, dos Lloyd Cole and The Commotions, quando as palavras ouvidas um minuto antes lhe ecoaram na cabeça. Não exactamente as palavras, o som delas. A voz. Ela tinha-se esquecido de ponderar a possibilidade de a voz estar associada à identidade de uma pessoa, como o olhar. Seria possível? Teria ela reconhecido a voz de Elvis naquelas quatro breves palavras, agora mais grave e rouca? Hesitou antes de olhar, com receio de estar confundida. Mas não tardou a fazê-lo, era absurdo não o fazer, ninguém a poderia censurar por isso e era necessário, não era?
O homem sentado ao fundo da sala com uma cerveja à frente não se parecia com o Elvis que ela imaginara, diferia dos vários retratos-robot que Rita se entretivera a esboçar na sua cabeça, mas era ele. «Meu Deus», pensou, feliz e divertida, «parece o Conde de Montecristo.» O que lhe ocorreu de imediato foi que nunca beijara um homem com barba.

domingo, 20 de agosto de 2023

Aranda | Capítulo 9 (primeira parte)


9. À NOITE, NA DISCOTECA
(primeira parte)


BETO
 
Quem é que tinha falado em olho por olho, dente por dente? Mário? Sim, tinha sido o doutoreco. Ele estava certo, claro, os putos não se iam ficar. Ninguém se ia ficar, era assim a guerra. Os armistícios não passavam uma ilusão temporária, só havia paz quando um dos lados vencia o outro, e Beto ia ser o lado vencedor, apesar de as circunstâncias de momento se mostrarem desfavoráveis.

Tinha sido um acaso gratificante encontrar de novo um dos cabrõezinhos no regresso ao hotel depois da visita ao Palácio. A tarde fora bem passada, entre memórias e risadas. Uma felicidade, aquilo de o Diogo ter descido à terra por um par de horas. Nem precisariam do álcool para estarem bem-dispostos, mas a verdade é que não tinham parado de beber. A partir de certa altura, fizeram-no, apesar de tudo — num acordo tácito —, com lentidão, mantendo-se num nível de embriaguez permanente mas moderado, sustentável, evitando assim que a desmesura acabasse com o dia. De qualquer maneira, estavam muito bem-dispostos, e talvez por isso a mais ninguém apetecesse a chatice de lidar de novo com os pequenos vândalos. Mas a Beto apetecia, era aliás um prazer fazê-lo. Ainda por cima o sacana trazia a cabeça enfiada num capuz e ele estava a ficar possesso com aquilo de lhe estarem sempre a aparecer capuzes à frente, até nos sonhos. Ter-lhe-ia apetecido dar uns cascudos no rapaz só por isso, por aquela mania estúpida e anti-social de envergarem capuzes.
Reconheceu-o por sorte, o puto vinha absorto nos seus pensamentos, numa trajectória que intersectava obliquamente a deles e com o campo de visão reduzido como se usasse palas (eram largueirões, aqueles capuzes). O rapaz não os viu senão quando estavam demasiado próximos e nessa altura já Beto o estava a reconhecer. Os outros perceberam de imediato a intenção de Beto.
— Que maçada — suspirou Rita quando ele agarrou o miúdo. — Nunca desistes?
— Eles não desistiram, pois não? — respondeu ele.
— Deixa lá essa merda — pediu-lhe Mário.
— Sim, Beto, não vale a pena estragarmos o dia — concordou Inês.
— Não lhe vais bater, espero — temeu Rita.
Beto ia bater-lhe, era essa a sua intenção. Ia bater-lhe até que o rapaz se borrasse todo e confessasse o que tinham feito com as roupas e com os pneus. Depois, levá-lo-ia à presença dos outros e continuaria a bater neles todos até que se arrependessem e se mostrassem dispostos a ressarci-los. Nessa altura, Beto pararia e pensaria no que fazer a seguir; no momento não tinha ideia nenhuma. Mas foi sensível aos pedidos de clemência dos amigos — ele era civilizado.
— Não, não lhe vou bater — disse, disfarçando a frustração. Depois virou-se para o rapaz, que tinha bem seguro por um braço: — Ouve lá, meu monte de merda, não te vou bater porque os meus amigos não querem, e eu próprio talvez me viesse a arrepender de sujar as mãos num dia tão agradável. Vou antes propor-te um negócio. — Nessa altura agarrou-lhe o capuz, que estava caído para as costas, e com uns puxões violentos arrancou-o pelas costuras à sweatshirt de que fazia parte. — Ora bem: digamos que vou confiscar-te esta parte ridícula da tua indumentária até que tu e os teus amigos nos digam o que fizeram com as nossas roupas e se disponham a pedir dinheirinho aos papás para comprar uns pneus novos aqui à malta.
Era inútil, aquilo, mas o prazer de o ter feito, de ter incomodado o puto, já ninguém lho tirava.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Aranda | Capítulo 8

 


8. PASSAGEM PELO PALÁCIO, À TARDE

  
MÁRIO E TÉ
 
— A maioria dos homens imagina que um tipo que se divorcia é um tipo feliz — disse Mário —, porque a maioria dos homens pensa, estupidamente, que nunca se devia ter casado. Mas eu não sou, digamos, triplamente feliz por me ter separado três vezes. Não. Sou um tipo feliz quando estou casado. A partir de certa altura tenho consciência dos problemas, pressinto o fim do casamento, se ele se aproxima, sei antecipar uma despedida ou um pedido de divórcio, mas sou feliz até ao instante de tirar a aliança do dedo, até ao último dos papéis da separação assinados. É quando estou de novo solteiro que me vou abaixo. Aí fico deprimido, questiono o absurdo da vida, tenho pensamentos suicidas. Sim, podes acreditar. Se algum dia me vires no beiral de um edifício a medir a distância ao chão, Té, não chames os bombeiros nem nenhum psicólogo (sobretudo estes inúteis, não resolvem nada) — arranja-me depressa uma noiva, essa é a maneira de eu reponderar. Uma esposa é o colchão que me apara as quedas, a tábua de salvação, o meu porto de abrigo. Eu sei que isto parece piegas, um parágrafo do manual dos esponsais que o padre nos obriga a decorar, mas para mim é a verdade. Eu fui feito para estar apaixonado — e casado. Se fosse preciso provar este sentimento, esta minha forma de estar bem com o matrimónio, eu usava todos os dias o smoking, andava sempre vestido de noivo, com camisa branca, laço, asas de grilo, faixa à cinta. Sim, e o meu carro haveria de ter sempre latas amarradas atrás, para me anunciar como as campainhas no trenó anunciam o Pai Natal. E renovaria com frequência os corações grafitados nos vidros do carro com neve fingida ou batom. E todas as manhãs despejaria, com júbilo, uma mão cheia de grãos de arroz no cabelo, depois do duche. E traria sempre uma flor na lapela. Há nas cidades tolinhos deste género, tu sabes, mas eu por vezes duvido se são tolinhos ou apenas gente convicta, pessoas que vivem de acordo com as suas certezas e não as dissimulam.
»Mas ser-se casado várias vezes também é um problema — continuou ele. — Precisamente porque o casamento deveria ser para sempre, eterno, indiviso. Claro que não sou contra o divórcio (isto faria de mim uma contradição ambulante, não era? ah! ah! ah!). Agrada-me que a sociedade tenha sido razoável o suficiente para legislar a possibilidade de as pessoas não ficarem amarradas uma à outra se não for essa a vontade dos dois, ou de um deles. O que quero dizer é que um novo casamento não substitui o anterior, não o apaga. É-se menos feliz no segundo casamento, porque temos a memória da primeira esposa. Não porque gostemos menos da nova, ou não estejamos felizes por formarmos um casal com ela, mas porque nos parece ilegítima a nova felicidade, como se fosse de algum modo construída contra a esposa que deixámos para trás. Tínhamos prometido à primeira mulher partilhar tudo, a tristeza e a alegria, e agora queríamos partilhar com ela esta alegria, a alegria de estarmos de novo noivos ou casados. E, porque não o podemos, isso deixa-nos tristes. Como nos deixa tristes a sensação perturbadora de que ao sermos felizes no segundo casamento estamos a trair a primeira mulher, e no terceiro a segunda, mesmo que já nada nos una legal ou moralmente a elas. (É isto, com os sucessivos casamentos, vamos sendo cada vez menos felizes, mesmo que sejamos por natureza os mais optimistas dos homens.) A vida é absurda também porque a felicidade de uns se ergue muitas vezes contra a felicidade de outros. O que eu queria era que a minha felicidade fosse a delas, das três (ou quatro, há-de haver uma quarta, que raio). Eu não desejei que elas se fossem embora. Fiquei contente quando encontrei outra mulher a quem amar, é certo, mas não tinha sido minha intenção separar-me.
»Repara: isto não é uma defesa da poligamia — asseverou Mário. — Mas, pensando bem, talvez devesse sê-lo, talvez devêssemos deixar cair o verniz desta nossa civilização e tornar-nos apologistas da poligamia. Porque hei-de carregar esta tristeza, este sentimento de culpa doentio de cada vez que sou feliz com uma nova mulher? Porque não hei-de poder fazê-las todas felizes? E elas a mim?

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Aranda | Capítulo 7

 


7. O ENCONTRO DE CLÁUDIA E PEDRO

 
CLÁUDIA
 
Naquela altura Cláudia estava sempre a encontrar objectos e tinha uma grande colecção deles. Não havia uma afinidade óbvia entre as peças da sua colecção, algo que lhe conferisse uma lógica. O que as unia era o facto de terem sido achadas inadvertidamente, pelo que lhe chamava a sua colecção de Perdidos & Achados. O termo perdidos não estava ali porque os objectos achados por ela tivessem sido perdidos por alguém (ainda que tivessem). Era diferente a razão. Ela considerava que as coisas por si encontradas ao acaso vinham substituir outras que perdera — por isso as guardava. Não que fossem o mesmo tipo de coisas, as que encontrava e as que perdia, não era uma coincidência dessas. Aliás, enquanto que aquilo que encontrava eram objectos, o que tinha perdido só em alguns casos se podia considerar assim. Deste modo, uma boneca podia, por exemplo, substituir um amigo, e felizmente Cláudia encontrava com espantosa frequência bonecas.
Lembrava-se de ter achado numa só semana, por esta ordem, um par de óculos graduados e articulados, daqueles que se dobravam para caber no mínimo espaço possível, um conjunto de chaves de diferentes feitios e tamanhos, um carrinho de brincar atravessado no meio de um passeio não muito frequentado e, claro, uma boneca. Encontrara-a num baloiço e tinha sido uma visão desoladora. Era uma boneca de plástico com uma expressão triste que parecia denunciar a orfandade a que fora votada. O baloiço ainda se movia, pelo que Cláudia pensou que quase testemunhara o acto vil do abandono. Sentiu pena da boneca, mas ao mesmo tempo alegrou-se, porque ela veio preencher uma lacuna importante na sua colecção, havia um perdido mesmo adequado para aquele achado.
Na colecção de Cláudia não havia só objectos que tinham pertencido a outras pessoas. Alguns dos achados eram coisas que ela própria tinha perdido, e estes não vinham substituir nada, apenas preenchiam vazios que havia na colecção desde que a iniciara. Era como se numa parede do sítio onde guardava as peças tivesse logo de início desenhado a forma de alguns dos objectos perdidos, como os carpinteiros faziam para definirem o sítio onde penduravam as diferentes ferramentas. Mesmo que não tivesse consciência exacta da forma, porque não se lembrava sempre que objectos perdera, identificava perfeitamente os espaços vazios, e quando encontrava algo que reconhecia como seu ou que se prestava à substituição, sabia de imediato a que espaço correspondia aquilo.
A maneira que tinha de relacionar perdidos com achados não era acessível a terceiros. Eles podiam tentar estabelecer vínculos, mas perderiam muito tempo com isso porque não era uma coisa óbvia senão para Cláudia. Ela encontrava a peça, revirava-a nas mãos e passados alguns minutos tinha inferido aquilo que a unia a uma das suas perdas. Geralmente chegava a casa tendo já determinado o sítio onde ia guardá-la.
Poder-se-ia considerar que Perdidos & Achados era também uma espécie de auxiliar de memória: sempre que entrava naquele quarto, os objectos achados invocavam as coisas perdidas. Cláudia relacionava o que achava com o que perdera, pelo que quando olhava para um lembrava-se do outro. E não apenas de uma maneira superficial: observar os objectos achados e tocá-los permitia-lhe reavivar impressões e sensações com alguma intensidade. Como se fossem representações muito fidedignas, fotografias que só ela sabia decifrar. As próprias fotografias comuns evocavam, aliás, muito mais do que o que estava enquadrado no plano. Não era assim com a sua velha fotografia na piscina?