A história central de A Cicatriz, de Maria Francisca Gama, recordou-me uma passagem de Aranda. Esta com final feliz, por comparação.
«Joca — era ele que chegava — deixou tombar a bicicleta e subiu ao encontro do grupo, parando em frente a cada um como um oficial que vistoriasse as suas tropas. Inês sentiu como uma leve náusea a sensação de pertencer a um clube, uma associação, uma seita, com as suas praxes e cerimoniais. Temia que viesse a faltar a este encontro algum sentido do ridículo. Esperou que chegasse a sua vez de ser cumprimentada e quando levantou o rosto descobriu em Joca um olhar despeitado, um olhar incapaz de, por instantes, esconder a animosidade que alguma coisa em Inês lhe despertara.
Era uma sensação frequente. Ela não sabia se tinha o dom de
causar aquele género de reacção nalguns homens ou se por alguma razão era
particularmente perspicaz a descobrir-lhes um certo tipo de mágoa, de
ressentimento. Eles reagiam assim e ela desvendava-lhes as emoções mais
profundas ou instintivas.
Tinha vivido aquilo algumas vezes. Outras situações, outros
intervenientes, mas a mesma inquietação, a mesma ameaça silenciosa, que por
vezes se exteriorizava brutalmente. Como quando foi agredida numa rua da cidade
onde morava por os seus olhos se terem cruzado com os de um rapaz. O que a sua
memória evocou foi o primeiro episódio da sua saga, a saga de uma mulher bela
demais.
Captara aquele olhar à primeira, captara-o e compreendera-o
até ao limite do entendível, como se no instante que durou tivesse sido
possível decompor o acto de observar nas suas múltiplas componentes e causas e
intenções, desenhar mentalmente um diagrama que permitisse seguir os ramos da
evolução que levou àquilo, perceber as bifurcações, as metamorfoses, o que
falhou, onde tinha sido possível intervir.
Era um rapaz, não mais do que isso, dezassete ou dezoito
anos, e não era feio — um corpo grosso mas sólido, sem a flacidez da obesidade
nem as suas dobras e pregas pendentes, o cabelo encaracolado quase pelos
ombros, como o de um guitarrista de grunge
(a barba viria no ano seguinte ou pouco depois), a adequada camisa de xadrez
por fora das calças, o queixo levantado, e os olhos cinzentos, semicerrados,
líquidos, excessivamente eloquentes. Passou por Inês, que estava com o seu
namorado da altura, no meio de um grupo de uns cinco ou seis rapazes, todos com
o ar de quem tem uma rixa agendada para o minuto e esquina seguintes, braços
arqueados, andar balanceado, decidido, agressivo, até, manada de elefantes
pouco preparada para as minúcias da civilidade — embora fosse também manifesto
que apenas se dirigiam ritualmente ao bar do fundo da rua.
Do grupo, só ele reparou no casal de namorados. Voltou-se no
momento em que passava ao seu lado e Inês viu-o, aquele olhar, e era como uma
sentença, um presságio, algo de que não se podia fugir. Muita coisa estava mal
com o mundo para que aqueles rapazes se sentissem tão em baixo ao acordar e
precisassem de construir personas
assim. Ou talvez fosse apenas a má influência das revistas e da televisão.
Provavelmente era a natureza humana — só à superfície deixáramos de ser
guerreiros, ou seres instintivos. Uma parte de nós, pelo menos.
Inês tinha sido bonita toda a vida. Se houvesse protótipos
para a beleza, ela era um, saída directamente das mãos do escultor mais dotado
ao serviço da divindade. Não: a própria divindade se tinha encarregado de
conceber as formas de Inês, de a moldar e proporcionar e de a colorir com os
tons certos, sem recorrer à costela de ninguém, tudo material genuíno,
imaginação pura. O cabelo de querubim era um capricho, um toque que denunciava
a autoria. Como nascera numa família com posses, nunca fora necessário resgatar
a sua formosura, ela não foi sequestrada pela indigência, não sofreu os ataques
da má nutrição, da sujidade, das doenças, a sua beleza esteve sempre evidente.
Talvez por isso fosse para Inês banal, supérflua, nada que a preocupasse nem a
que se tivesse de dedicar particularmente. E, de resto, não era dela a culpa de
ser bonita.
O rapaz pensava de forma diferente. Não teria por certo
formação política ou ideológica, a não ser talvez uma réstia mal compreendida
que passava através das gerações, ou que era já anterior a qualquer formulação
teórica, aquela versão do marxismo que alimentava o ódio aos ricos e poderosos,
mais tarde revista e aumentada com o ódio à beleza e à saúde e ao sucesso e à
felicidade, a tudo o que permitisse aos outros sorrir enquanto nós lutávamos
para respirar no lodaçal da nossa existência. Não tinha esse género de
formação, mas não precisava. O que precisava era de apaziguar o ressentimento,
de encontrar culpados para o que falhara consigo, para o seu permanente mau
humor. Chegou à esquina e, como se se tivesse esquecido de alguma coisa, como
se tivesse gastado os últimos passos a tentar lembrar-se de algo, voltou para
trás e ela soube que o pressentimento era fundado.
Inês conseguiu que o namorado aceitasse sair daquele local
mas cedo percebeu que tomaram a direcção errada. Ali havia luz e gente, mais
acima os candeeiros rareavam e deixava de haver transeuntes. Ao fim de uns
minutos de caminhada, e depois de terem mudado de passeio e de rua, não
restavam dúvidas de que estavam a ser perseguidos.
O rapaz alcançou-os com uma última corrida, fazendo-os parar
ao colocar-lhes as mãos nos ombros.
— Eu hoje estou fodido — disse ele, e era a sua melhor
abertura.
Também estava drogado, achou Inês, tanto quanto podia ver
para lá do oceano em que nadavam os olhos dele. Parecia chorar. A pose, a
atitude, era a de um rufia, de um agressor, de alguém prestes a cometer um
assalto ou uma violação, mas uma câmara que o focasse apenas do nariz para cima
revelaria um tipo desesperado, o género de amigo ébrio que queria muito ser
ouvido nas suas lamentações e no minuto seguinte nos vomitava os sapatos. Claro
que Inês não era uma câmara de filmar num enquadramento apertado, tinha acesso
ao retrato completo. Havia desespero, sim, mas não do género que se contentaria
com um divã ou um ombro. O que aqueles olhos significavam era violência. Eram
uns olhos acossados, mas de alguém que reage à desolação, ao desespero, à
ameaça, à raiva com doses reforçadas de crueldade. O mundo, alegadamente, tinha
feito mal àquele rapaz, fazia-lhe mal dia-a-dia, privava-o de coisas,
humilhava-o, deixava-o sem saídas, dorido na sua presumida fealdade e
impotência — e Inês sabia que ele queria vingança.
— Não faça nada de que se arrependa — gaguejou o namorado de
Inês.
Continuavam de mão dada e ela sentiu-o tremer, mas de medo,
não de fúria contida. A vantagem numérica significava pouco quando se tratava
de um casal como eles, em que o elemento feminino não era dotado de relevante
força muscular e em que ambos viviam longe de brigas e da disputa física.
— E do que é que eu me podia arrepender? — O rapaz
limitava-se a olhar para Inês, com aquele ar de denúncia e lamento, olhos
semicerrados, prestes a desfazerem-se em lágrimas, mas simultaneamente frios e
acusadores. No corpo sentia-se a tensão de uma mola prestes a soltar-se.
Inês não sabia se era legítimo da sua parte esperar que o
namorado agisse, que desse um passo em frente para mostrar que a protegeria, ou
que pelo menos o iria tentar. Não se atrevia a solicitar o altruísmo alheio,
mas certos códigos sociais não escritos, ou escritos muitas vezes sem nunca se
referir a fonte original, determinavam que o homem protegesse a sua mulher. Ele
não o fez. Não que não o desejasse, apenas não estava dotado de coragem física.
O rapaz tocou a face de Inês e deixou que a mão descaísse e pousasse no ombro
dela. O namorado esboçou um gesto irresoluto, vago, que foi logo repelido. Não
voltou a tentar, embora numa parte do seu cérebro estivesse a adivinhar a
humilhação, o remorso que o afrontaria o resto da vida.
Ela soube pela primeira vez o que era o medo, o medo
profundo, medo absoluto. Não pela sua própria experiência (estava assustada,
claro), mas indirectamente, pelo processo que sentia em ebulição no namorado.
De certa maneira, não voltaria a estar ligada a nenhum homem como naquele
momento esteve àquele. As suas mãos entrelaçadas eram como um feixe de nervos,
a corrente eléctrica atravessava-os livremente e unia os dois cérebros. Ela
estava a ter duas experiências em simultâneo, a sua e a do namorado. Vivia o
seu próprio medo e o pânico que explodia nas sinapses do namorado.
O rapaz agarrou o queixo de Inês e hesitou no passo
seguinte. Não era um violador nem tinha pensado em assaltar o casal. Na
verdade, não tinha um plano. Tudo que sentia era vontade de esmagar aquele
rosto, de apertar os dedos até sentir os ossos a estalar. Era ódio na sua forma
mais pura e incondicional. A simples presença de Inês nas ruas era ofensiva
para alguém como ele. A sua existência, a grande afronta. Sentia perante ela o
que tantos sentem diante das serpentes, aquele automatismo que os faz olhar em
volta e pegar no calhau adequado. Esmaga-se a cabeça de uma cobra porquê? Pelo
medo do mal que ela possa fazer? Pela mera repulsa que olhá-la causa? Porque é
um ritual imposto por Deus aos humanos? Ele estava a olhá-la e não conseguia
parar de a odiar. Aquela beleza não era para ele erótica, não o excitava dessa
maneira, não desejava vencer a beleza possuindo-a, mostrar a sua superioridade
derramando sobre ela o seu sémen com o mesmo desprezo pelos espermatozóides que
sentia ao ejacular encostado a uma parede. Não. O que ele sentiu naquela noite
ao ver o rosto de Inês, o corpo de Inês, os seus caracóis e o seu ar de
plenitude serena foi uma ânsia de extermínio, o impulso genocida, como se a
sobrevivência da sua espécie dependesse do extermínio de outra.
No último instante, um qualquer lampejo de razão iluminou a
mente perturbada do rapaz. Ela viu a dúvida instalar-se no seu semblante, já
tão complexo, tão contraditório, como se ele agora lutasse consigo próprio, o
diabo pendurado numa orelha e um anjo na outra.
Zangado agora também com a sua própria hesitação, o rapaz
largou o rosto de Inês e, de mão aberta, desferiu-lhe uma bofetada tão forte
que a fez rodar e estatelar-se no passeio.
— Foda-se! — ouviu-o ela gritar, meio ensurdecida com o
golpe. Era como se ele e tudo o que a rodeava estivessem muito longe, sentia uma
zoeira na cabeça e a visão turva. Quase perdeu os sentidos.
Aquilo não fora a grande catarse que o rapaz esperava, a
redenção pela força, a ascensão a um novo estádio. No último momento
contivera-se. Mas a pequena explosão libertou energia suficiente para que, no
meio da sua frustração, ele aceitasse retirar como de uma batalha vitoriosa na
grande guerra que travava.
Inês viu-o afastar-se com as mãos na cabeça, sacudindo os
cabelos, o som dos seus passos inaudível, o mundo a regressar custosamente.
Depois olhou para o namorado, lentíssimo a estender-lhe a mão para que ela se
levantasse, lentíssimo a abraçá-la, ainda meio petrificado (embora tremesse
furiosamente), à espera de que ela o acordasse daquele pesadelo terrível com um
beijo, que o confortasse com as suas palavras meigas, lhe dissesse que estava
tudo bem, ninguém poderia ter feito nada. Não saiu em perseguição do agressor,
não pensou por um minuto em vingá-la, fosse de que forma fosse. O namorado não
era de um tipo efeminado, nem frágil, mas não teve qualquer reacção. Ela não o
culpou. Viria a desinteressar-se dele pouco tempo depois, talvez também por
isso, mas não com ressentimento.»
In Aranda, RAA
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