quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Povo, povão, povaréu


Há doze anos, no defunto Eito Fora:
Quem me conhece sabe que tenho em grande estima o nosso Eça de Queirós. Não é que me agrade ser chato, mas, como alguém disse, o cérebro tem razões que o coração desconhece. Ao ex-cônsul em Cuba admiro-lhe sobretudo a ironia. Este ano foi o aniversário da sua morte e a moda de dizer-se que «o Eça é sempre actual» ganhou novo ímpeto. Por ironia (agora do destino), sinto-me completamente démodé. É que há coisas que nem ao janota do monóculo lembrava.Num editorial do Districto de Évora, de há mais de cem anos, Eça fazia uma compungente apologia do povo. Confesso que li o texto imerso em lágrimas. Deixei-me abater pela saudade e corroer pelos remorsos. Eu, que me tinha por cínico, fiquei uma lástima, condoído da minha condição de membro da plebe. Mas, passado o pranto, dei-me conta do anacronismo da prosa. Em vão procurei naquele rol das virtudes do bom povo alguma analogia com os dias de hoje. Vejamos:Reza o editorial que «há no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligência serena e lúcida, com dedicações profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem, que sofrem, que se lamentam em vão». Com tal mote, predispus-me a olhar o meu semelhante com profundidade, procurando descobrir-lhe no rosto boçal a alma virtuosa. A exemplo do mestre, entalei sob o sobrolho esquerdo uma lupa de laboratório. Deambulei por ruas e praças em busca do vulgo. Observei-o no catre onde se recosta, na tasca onde bebe, no confessionário onde genuflecte, no prostíbulo onde se confirma, vi-lhe a manga do casaco, catei-lhe os piolhos, mas nada me revelou. Vi nas secretarias, nos gabinetes, nos cabeleireiros, nos jipes, subi montes, desci vales, revirei as pedras da calçada, espreitei atrás de árvores, mergulhei nas sarjetas, remexi as lixeiras — absolutamente nada. Fiz jogging em hipermercados, estive in nos restaurantes da moda, assisti a desfiles, fui a festas loucas, li a Nova Gente — riennothing.Desesperado, fiz maratonas na TV e na Internet vendo o Big Brother (uma casa portuguesa, diziam): em nenhum momento os anjos cantaram hossanas como naquele velho texto do periódico eborense.Em boa verdade, não encontrei o povo de que falava o José Maria. Corri o espectro social de uma ponta à outra: revoltou-se-me o estômago, ganhei uma úlcera, uma neurose, tornei-me suicida — sem resultados.Onde está aquela «raça de homens com instintos sagrados e luminosos»? Onde param as «divinas bondades do coração»? Que é feito da «inteligência serena e lúcida»? Que é do «amor pelo trabalho» e da «adoração pelo bem»?Aquele povo definhou. Está extinto. Tem sete palmos de terra por cima. Eclipsou-se.O povo actual, o nosso povo, o povo das estatísticas de iliteracia, do share de audiências, dos hipermercados, dos telemóveis, conservou os defeitos do bom povo queirosiano — mas perdeu todas as virtudes. Salvo meia dúzia de idosos que vão enfeitando os umbrais das portas das aldeias históricas de Portugal, o povo dos dias de hoje é (só) abjecto. Lava-se, corta e limpa as unhas, vai à escola, opina, vota, compra o "Expresso" — mas repugna. Trapaceiro, calaceiro, invejoso, cobiçoso, imbecil, inepto, boçal, cavalgadura, asno — eis uma sucessão de termos queirosianos quase elogiosos para o povo actual.

2. Tempos houve em que o mundo estava dividido em vários estratos. Mesmo sob risco de me acusarem de feudal, enumero-os: povo, burguesia, clero e nobreza. Havia uma divisão muito clara dos defeitos — cada classe tinha os seus. Hoje, a mistura desconcerta. A classe média é um albergue espanhol pior que o velho PSD e o actual PS: cabe lá tudo. Quer a gente insultar alguém e não sabe, em rigor, que epítetos lhe atribuir. Tudo se confunde num despropósito que haveria de indignar os nossos antepassados. E as restantes classes — baixa e alta — apenas se distinguem pela quantidade (ou ausência) de notas no banco. O resto, maneiras, educação, conhecimento, nivelou-se. Por baixo. Tal como os grandes partidos de esquerda e direita convergem, nestes dias pragmáticos, num grande centrão, as velhas classes diluíram-se numa só, que acumula os defeitos de todas: o povão.As classes unem-se pela falta dela. De classe. O assalariado reserva a noite para ver as novidades do "Big Brother" — o patrão grava-as em vídeo. A sopeira perde horas a ver a Maria — a patroa lê a Caras. O prestador de serviços filosofa exclusivamente sobre os programas de futebol que vê — o profissional liberal vai aos programas expor a metafísica da bola. O cidadão comum tem caprichos imbecis — o governante não olha a meios para agradar ao povão (de que, de resto, faz parte).Quando alguém fala do povo deve, além de se persignar, ter em conta que fala da quase totalidade da população portuguesa. O advento da democracia trouxe muitas coisas, mas acima de tudo obrigou as classes a submeterem-se à ditadura do povo. Do mais reles povo.Aqueles que defendiam a ditadura do proletariado e hoje estão tristes e desiludidos, não o deveriam estar. O proletariado não venceu a luta de classes — fez mais, assimilou as outras classes. Só que no processo perdeu as virtudes. Quem está hoje nos diversos órgãos de poder é o mais vil, o mais boçal povo. O povo não se pode queixar da má governação porque é ele quem governa. Não temos líderes políticos — temos representantes do povo. Os detentores de cargos públicos estão lá para satisfazer os piores caprichos do povo. (E fazem-no com suma perfeição e requinte!)O povo do tempo do Eça era boçal, ignorante, crédulo, rústico, bruto — mas tinha virtudes. Hoje é boçal, ignorante, crédulo, suburbano, bruto — e tem telemóvel.

3. Eu queria, sinceramente, fazer apologia de grandes sentimentos, nobres virtudes, sãs qualidades; queria seguir o exemplo do Eça e emocionar-me com o povo — mas dou comigo rondando a necrofilia. Quando leio sobre "o saber ancestral e sereno do povo", vejo um padre dando a extrema unção; quando alguém fala no "povo bom e honesto", aguardo que o coveiro recolha a pá; quando ouço que "o povo não é parvo", sei que é dia de visita ao cemitério; quando me lembram que "o povo é quem mais ordena", eis a minha vez de descer à cova — resigno-me e espero pela autópsia que me hão-de fazer.Para já, vou arranjar um lugar no umbral de uma porta ao lado de alguém que não tenha a infelicidade de saber que «o povo unido jamais será vencido»... 

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Sketch book

Partir-se a rir
Duas senhoras de idade, balanceando bastões ou bengalas, sapatos de desporto, calças de fato de treino. A mais nova fala e a outra ouve, retorque de vez em quando, faz perguntas. A dada altura, a senhora mais velha fica para trás, bengala fincada no chão, mão no peito. Decorrem segundos de incerteza. O que significa aquele silêncio, aquela pausa? Apoplexia? A iminência de um ataque cardíaco devido ao esforço da caminhada? O mundo fica suspenso. Então a mais nova vira-se para trás e afinal está sorridente. A outra explode por fim numa gargalhada que a estremece da cabeça aos pés, a desequilibra. Tinha sido dita uma pilhéria entre elas e o corpo da mais velha já não se entrega a um riso desbragado e franco sem uma preparação, o apoio da bengala. Retomou a passada apenas quando as ondas de choque cómicas desceram a níveis menos sísmicos.

Pai e filho
O pai leva o filho pequeno, quase bebé, ao colo. Param em frente ao bar eternamente por concessionar e espreitam pelo vidro. Lá dentro, ausência de mobiliário e garrafas dispersas pelo chão. O puto aponta e diz: «Coca-cola». O pai ri-se, mostra-se orgulhoso do feito. Talvez ache que é bom para o miúdo aprender cedo a reconhecer os produtos e as marcas que balizam a sociedade. Parece seguro afirmar que aquele miúdo já tem um clube, o pai decerto ensinou-o a papaguear o nome do seu. É isto que um pai faz.

Tendência Nabokov
A (pouca) idade, o corte de cabelo, o andar, as sapatilhas, a t-shirt, sobretudo os calções curtos e a frase: «E ele olha para mim e, tipo, calou-se, e eu fiquei assim, tipo a olhar para o lado». Não há dúvidas: lolitas de marca, um género em voga. Roupas e atitude de catálogo fashion, léxico de MTV. Talvez no mundo da moda para massas alguém tenha sido suficientemente irónico para apelidar o estilo de «tendência Nabokov».

Garça-real



Há três anos, num início de Outono chuvoso, descobri ao accionar o limpa-pára-brisas uma ave inusitada do outro lado do Corgo. Tinha estacionado de frente para o rio e dormitava sobre o livro. Ver o bicho pousado no pinheiro devolveu-me a alegria que o tempo cinzento e a chuva tinham roubado e ocupou-me o resto da tarde. Primeiro, a tentar identificar o alien penado e pesado. De seguida, esperando que se mexesse ou, ainda melhor, voasse, com uma trajectória favorável. Depois, a torcer para que, voando, regressasse ao poleiro original, para se deixar mirar de novo intensamente. Naquela altura ignorava que se tratava de uma garça-real e que estes bichos são capazes de ficar horas imóveis, ou quase. A verdade é que caiu a noite e mais não pude observar do que aquele perfil de cabeça recolhida entre os ombros.
Percebo pouco de pássaros, mas compenso com o muito que gosto deles. (Talvez um dia me torne observador de aves certificado, como o Jonathan Franzen; capa da Time é que não será tão fácil, mas nunca se sabe.) E por gostar deles dedico-lhes mais do que uma vista de olhos. Foi assim que pus de lado a suspeita mais fácil mas também menos entusiasmante de que se tratava de uma cegonha. Estas não abundam por aqui, mas os avistamentos são ainda assim suficientemente comuns para refrearem o entusiasmo. Contudo aquela “cegonha” distinguia-se das outras, até um amador como eu o notava. Penas cinzentas no dorso, aquela forma de recolher o pescoço... Fui consultar o guia de aves e este concordava comigo em como não era uma cegonha.
No dia seguinte, já em modo de jogging, voltei a espreitar o pinheiro curvado onde a bicha pousara e ali estava ela, como se não se tivesse movido de um dia para o outro. Vi-a então com frequência durante semanas, sempre sozinha, pousada no mesmo pinheiro derreado, raramente em voo, até que, instalado o Inverno, desapareceu, talvez em busca de clima mais favorável e de companhia do sexo oposto.
Para minha curiosidade e alegria, no ano seguinte ali estava de novo. Quer dizer, nada garantia que fosse a mesma ave, mas como pensar o contrário ao vê-la quotidianamente no mesmo pinheiro, com a mesma pose vigilante e solitária? Coincidência? O local tem um atractivo genérico para a espécie? Talvez.
A garça-real não é uma ave rara em Portugal, ocorre um pouco por todo o lado e com abundância no litoral e no Alentejo. Mas nesta parte de Trás-os-Montes não é assim tão frequente. Eu nunca tinha visto nenhuma e outras pessoas confirmam a raridade.
Ontem regressou, pelo terceiro ano consecutivo. Permito-me imaginar que é o mesmo animal e que, desobedecendo à máxima, todos os anos volta a um local onde foi feliz, porque amado. E talvez a sua presença seja também uma retribuição. Sinto-a assim, quando nos observamos mutuamente, cada um do seu lado do rio, dois bichos de temperamento solitário.