Há três anos, num início de Outono chuvoso, descobri ao accionar o limpa-pára-brisas
uma ave inusitada do outro lado do Corgo. Tinha estacionado de frente para o
rio e dormitava sobre o livro. Ver o bicho pousado no pinheiro devolveu-me a
alegria que o tempo cinzento e a chuva tinham roubado e ocupou-me o resto da
tarde. Primeiro, a tentar identificar o alien
penado e pesado. De seguida, esperando que se mexesse ou, ainda melhor, voasse,
com uma trajectória favorável. Depois, a torcer para que, voando, regressasse
ao poleiro original, para se deixar mirar de novo intensamente. Naquela altura
ignorava que se tratava de uma garça-real e que estes bichos são capazes de
ficar horas imóveis, ou quase. A verdade é que caiu a noite e mais não pude
observar do que aquele perfil de cabeça recolhida entre os ombros.
Percebo pouco de pássaros, mas compenso com o muito que gosto deles. (Talvez
um dia me torne observador de aves certificado, como o Jonathan Franzen; capa
da Time é que não será tão fácil, mas
nunca se sabe.) E por gostar deles dedico-lhes mais do que uma vista de olhos.
Foi assim que pus de lado a suspeita mais fácil mas também menos entusiasmante de
que se tratava de uma cegonha. Estas não abundam por aqui, mas os avistamentos
são ainda assim suficientemente comuns para refrearem o entusiasmo. Contudo
aquela “cegonha” distinguia-se das outras, até um amador como eu o notava.
Penas cinzentas no dorso, aquela forma de recolher o pescoço... Fui consultar o
guia de aves e este concordava comigo em como não era uma cegonha.
No dia seguinte, já em modo de jogging,
voltei a espreitar o pinheiro curvado onde a bicha pousara e ali estava ela,
como se não se tivesse movido de um dia para o outro. Vi-a então com frequência
durante semanas, sempre sozinha, pousada no mesmo pinheiro derreado, raramente
em voo, até que, instalado o Inverno, desapareceu, talvez em busca de clima
mais favorável e de companhia do sexo oposto.
Para minha curiosidade e alegria, no ano seguinte ali estava de novo. Quer
dizer, nada garantia que fosse a mesma ave, mas como pensar o contrário ao
vê-la quotidianamente no mesmo pinheiro, com a mesma pose vigilante e solitária?
Coincidência? O local tem um atractivo genérico para a espécie? Talvez.
A garça-real não é uma ave rara em Portugal, ocorre um pouco por todo o
lado e com abundância no litoral e no Alentejo. Mas nesta parte de Trás-os-Montes
não é assim tão frequente. Eu nunca tinha visto nenhuma e outras pessoas confirmam
a raridade.
Ontem regressou, pelo terceiro ano consecutivo. Permito-me imaginar que
é o mesmo animal e que, desobedecendo à máxima, todos os anos volta a um local
onde foi feliz, porque amado. E talvez a sua presença seja também uma
retribuição. Sinto-a assim, quando nos observamos mutuamente, cada um do seu
lado do rio, dois bichos de temperamento solitário.
Gostei muito de ler. Sinto quase isso com as gaivotas. Quando alguma se aproxima, quase penso que é a mesma, que vem ter comigo.
ResponderEliminarConheci há uns anos um senhor invulgarmente culto e interessante. Era director na empresa onde eu trabalhava mas, quando ficávamos a falar só os dois depois de alguma reunião, ele falava-me dos seus filhos quase todos ligados às artes (alguns hoje muito conhecidos), falava-me da sua casa que era uma casa muito especial, e falava-me do seu hobby. Era observador de pássaros. Na altura eu nunca tinha ouvido falar nisso e nem percebia. Perguntava-lhe se tirava fotografias ou qualquer outra coisa de concreto e ele ria-se e explicava-me que não, que se limitava a ver os pássaros. Na altura eu achava aquilo uma coisa curiosa, quase um pouco doida, uma pessoa deslocar-se pelo país, dias inteiros enfiado nos sítios mais inesperados apenas para olhar pássaros. Hoje acho isso um hobby extraordinário, acho que é coisa de gente sábia, coisa de quem muito ama a natureza e a vida.
Obrigado pelo comentário e por partilhar essa bela história. É isso.
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