sábado, 7 de outubro de 2023

Pausa

Duas moças falam de desentendimentos amorosos havidos com terceiros. Uma delas é, ao que parece, vítima de ciúmes retroactivos. Tinha havido uma ruptura e uma reactivação e pelo meio a vida.
«Nós naquela altura não namorávamos», queixa-se à amiga. «Não namorávamos!», insiste algumas vezes, com ênfase, em crescendo.
Abrando discretamente o passo à espera de ouvir um sonoro e rossiano «We were on a break!», mas a moça é demasiado nova ou não está com humor para a punchline que este texto implora.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Mutante

À distância, enquadrado na vitrina do café deserto como num quadro nocturno de Hopper, algo indefinido e perturbador lhe desenha no rosto a expressão macabra do Joker. Um pouco mais de perto, a figura transforma-se num inesperado e aprumado comandante de navio norueguês com uma barba branca rigorosamente talhada, em frente ao seu chocolate quente. Entramos então no café e constatamos que é apenas o Zé Manel e as suas rugas num raro dia de crânio e fácies aparados, bebendo Super Bock à caneca com sorriso enfastiado de marinheiro em doca seca.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Transmissão de relatos

A CMTV pode não ter os direitos de transmissão de certos jogos de futebol, mas exerce o direito de transmitir durante noventa inóspitos minutos imagens dos seus relatadores e comentadores a relatarem e a comentarem esses jogos.
No relato a que assisto (eis uma expressão que há quarenta anos ninguém suspeitaria vir a empregar, não por ser descrente da evolução tecnológica mas por lhe faltar imaginação para achar interesse no exercício), o relatador cumpre sem esforço o papel de afastar qualquer fantasia que alguém tivesse sobre a mímica, a gestualidade e a sanidade dos relatadores de futebol. Tirando a prosódia empolgada, nada na sua esfinge nos remete para domingos à tarde de rádio no ouvido.
Pelo seu lado, o comentador não comenta quase nunca, mas sofre permanente e visivelmente (não por estar ali, como se julgaria, mas pelo jogo a que assiste no seu monitor), o que me leva a conjecturar que ele foi posto no estúdio apenas para ilustrar a imagem de um adepto em frente à televisão em dia de jogo. A televisão como espelho e sem metáforas, portanto. Nos momentos em que o comentador está sem som, poderíamos ser levados a considerar que ele fez uma pausa no sofrimento para soltar com recato palavrões ou insultos ao árbitro — se ignorássemos a existência dos programas de «análise» desportiva.
O terceiro elemento com que a CMTV talvez justifique a ideia peregrina de relatos (não jogos) televisionados é uma janela em miniatura inserida entre relatador e comentador através da qual vemos, não sei se alternadamente, um dos treinadores das equipas a tentar dirigir, a partir do seu território desenhado a cal no melhor estilo Dogville à margem do campo, um jogo de que só temos conhecimento pelo relato, pelo sofrimento alheio e pelo gesticular montypythoniano do «mister».
Mas eis que a certa altura a televisão se ilumina com fotografias de um remate, de uma falta ou de um golo — e concluímos que a CMTV se poderia chamar nesses momentos Correio da Manhã Slide Show.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Reacção

Estou tranquilamente a viver acima das minhas posses no Vintage do Pinhão quando em baixo, junto ao rio, passa um grupo de rapazes levando música no telemóvel em volume que há trinta anos apenas se conseguia carregando ao ombro um armário estereofónico. A música também é herdeira do mesmo género rap sem causa ou gangsta rap ou quejando. Passam lentos e exasperantes como uma procissão, ou como o soprador de folhas de árvores nas madrugadas urbanas e insones de Outono, antes que consiga retomar a leitura e a vida silenciosa de rico.

Mais tarde, regressava já a casa e à classe média baixa, vi-os a caminhar enfileirados na berma da estrada e esfreguei vingativamente o volante. Quando os alcancei, abri a janela do carro e atirei-lhes para cima, ufana e estentórea, uma ária da ópera que ia a ouvir.
Confio que lhes tenha doído.