Claro que ele interporá recurso e nalguma instância a Justiça
encontrará forma de o ilibar, como é costume. Para alegria dos seus correligionários.
E dos seus adversários, desconfio.
quinta-feira, 28 de junho de 2012
Justiça
A Justiça portuguesa mostrou ter algum respeito por si própria ao
condenar o socialista Ricardo Rodrigues. Isto é especialmente importante quando
sabemos que os partidos políticos não se dão ao respeito nem nos respeitam. Recorde-se
que o mesmo sujeito que furtou dois gravadores a jornalistas integra, entre
outros organismos igualmente sérios, a Comissão para a Ética, a Cidadania e a
Comunicação…
Perdemos, e foi bom
Uma coisa é a emoção de torcer até ao fim pela selecção, outra é querer
mesmo que ela ganhe. Para uma quantidade
demasiado ruidosa e abastecida de combustível de pessoas, uma vitória é uma
licença para tomar o espaço público e impedir por longas horas qualquer movimento
ou forma de vida ou de expressão para lá do ritual futebolístico.
Nesse sentido, o jogo de hoje, com prolongamento e penalties, permitiu o melhor de dois mundos: emoção redobrada e expandida
— e um resto de noite aberto a outras possibilidades.
O campeonato perfeito seria aquele em que Portugal estivesse presente em
todas as fases, da qualificação à final, e não ganhasse nenhuma delas. Sou pela
emoção do jogo, não pela da vitória.
sábado, 23 de junho de 2012
Parabéns
António Pinto Ribeiro faz hoje no Ípsilon
o seu balanço de um ano de Secretaria de Estado da Cultura. Voltarei ao
texto mais tarde. Por agora fico-me por algumas observações avulsas.
APR lembra duas iniciativas fantásticas do SEC: a «criação de uma rede
de património do judaísmo» e a programação de uma «tournée de Verão a ser realizada por uma orquestra». A primeira
proposta tem o seu interesse, sejamos magnânimos, mas faz-nos perguntar, por
exemplo, que iniciativas teria Viegas se fosse um apaixonado pela cultura
muçulmana, um pouco mais visível no património.
A segunda seria só ridícula se não fosse sintomática (a primeira também
o é, aliás): de facto, o que fazia falta em Portugal era uma estrutura do Estado central que se dedicasse à programação.
Deve ser a este paternalismo que Viegas chama liberalismo. À moda antiga, pois claro.
Depois da famosa entrevista de FJV ao I em Maio de 2011, é bom fazer notar que em Portugal as apresentações
de dança, teatro e música (excepto pop/rock) diminuíram drasticamente (há salas
que simplesmente já não programam teatro), mas, hélas!, um ano de SEC depois a música pimba e manifestações conexas não retrocederam.
Pelo contrário: procuram ocupar o vazio da restante programação.
Se quisermos ser simplórios, podemos atribuir à falta de dinheiro ou à
desistência de algumas câmaras municipais o recuo na programação de qualidade,
mas também não custa perguntar à SEC por onde tem andado.
Uma resposta possível é esta: ocupada a telefonar ao maestro Vitorino d’Almeida a propor-lhe o projecto do «Festival Grande Orquestra de Verão» que, pasme-se, vai levar concertos promenade a
várias cidades do país, cousa nunca vista nem sonhada.
O país pode portanto dormir descansado: desaparecem o teatro, a dança e a música
menos óbvia, mas uma vez no ano vai ter o senhor maestro e uma orquestra expressamente providenciados pela SEC. Uma
barrigada.
A propósito: António Pinto Ribeiro também refere «a dimensão kitsh da aplicação obrigatória da menção
‘Governo de Portugal’ em todo material de comunicação de todas as acções que
tenham um mínimo de apoio do Estado». Esqueceu-se de referir que na cultura a
menção inclui ainda «Secretário de Estado
da Cultura». Secretário, não Secretaria…
quarta-feira, 20 de junho de 2012
Literatura “transmontana”
Visito com menos regularidade do que devia a Casa de Cacela, mas regresso dali sempre com um gosto bom nos
lábios de ter lido em voz baixa os poemas de José Carlos Barros. (Havia um
vizinho que lia assim, num sussurro permanente, os livros do Mandrake ou lá o
que eram, e talvez não me devesse ter rido dele: também eu descobri que certas frases
ou estrofes precisam de ser ouvidas, mesmo que num murmúrio, para serem desfrutadas.
Ou entendidas.)
Há qualquer coisa que me encanta nos poemas de JCB e pergunto-me quanto
disso é a sua revisitação de Trás-os-Montes, uma revisitação de quem não vive em Trás-os-Montes. Tive idêntico
sentimento quando li Ernestina, de J. Rentes de Carvalho. Na altura escrevi que às vezes a literatura pode passar por
uma região sem se atolar nela. Esta afirmação tinha implícito um desdém pela
literatura transmontana, que na minha presumida opinião vivia atascada na lama
patrícia, mesmo nos escassos momentos em que parecia querer sobressair.
É tristemente redutor que uma obra literária seja abordada pelo barro
que utiliza, mas por vezes pergunto-me, com injustiça, se não é isso que alguns
leitores e comentadores fazem, mais fascinados pelo exotismo regional ou epocal
do que pelos méritos da prosa. Não raro leio José Carlos Barros com um fascínio
não sei se inverso se análogo: o fascínio de quem nunca tendo vivido fora de
Trás-os-Montes identifica a região que ele evoca como se sempre a tivesse visto
pelas mesmas lentes focadas a partir do Algarve.
Rui Catalão, crítico do Público,
tem revelado o seu particular fascínio transmontano. Creio que ainda nenhum outro
crítico falou dos livros de Manuel António Araújo, escritor de Chaves, mas pode
ter sido distracção minha. Catalão não parece ter chegado aos dois livros que
recenseou daquele autor pela sua proveniência regional, e o exotismo que o
atrai talvez não seja geográfico, mas o do próprio universo literário dos textos.
Contudo, há algo de profundamente transmontano em mim quando me descubro a ler
as recensões com a complacência que os caseiros dedicavam aos senhoritos de
visita às propriedades nas berças.
Trás-os-Montes é o título do
livro vencedor do Prémio Agustina Bessa-Luís. Tiago Patrício, o seu autor, é
madeirense de nascimento mas viveu aqui até aos 19 anos. Revelou ter resistido
até ao fim a escolher aquele título porque «não queria denunciar o sítio do
romance», mas o júri tomou em consideração «as qualidades de escrita reportadas
à dureza de um universo infantil numa aldeia de Trás-os-Montes».
Durante um ano ou dois convivi nas páginas do Semanário Transmontano com Manuel António Araújo, mas ainda não li
os seus livros. O que temerei? A enésima repetição da «dureza» da vida em
Trás-os-Montes que tanto fascina as novas gerações literatas urbanas? Ou
descobrir finalmente que um conterrâneo não precisa de ir viver fora para
escrever bons livros? No primeiro caso, é talvez preconceito da minha parte. No
segundo, é preconceito e inveja.
terça-feira, 19 de junho de 2012
Pelos céus comunitários*
O casal de
namorados que viu de manhã fê-lo lembrar-se de si próprio. O artista quando
jovem. Passou por eles ao contornar um relvado (detestava a merda dos cães —
não tanto quanto os bichos em si, claro — e não queria correr o risco).
Primeiro notou o olhar vago da rapariga. Ela fixava um ponto qualquer no correr
de edifícios do outro lado da rua. O namorado assediava-a. Queria um beijo, um
toque, roçar-lhe o seio, o entrepernas. Queria fodê-la, em suma. Quim Zé voltou
para trás e foi posicionar-se num sítio onde poderia apreciar a cena.
Conhecia-a. Vivera-a muitas vezes. A rapariga resistia fracamente às
investidas. O olhar fixo era sonhador. Queria estar naquela situação — mas com
outro tipo. Não a repugnava ser beijada, apalpada, fodida, mas ficava
melancólica pela tremenda má-sorte. Aceitara o namoro porque uma gaja tinha de
namorar, não era? Mas agora só queria acabar com aquilo. Cumprir o seu papel,
distanciada, resistindo tanto quanto possível, e rezar para que da próxima vez
as coisas se passassem com outro, com um de meia dúzia que ela era capaz de
enumerar.
Quim Zé também
sabia o que o rapaz pensava. Não era muito diferente, de resto, do que pensava
a rapariga de olhar perdido. Os rapazes não sabiam fazer aqueles olhares
(excepto alguns, profissionais de outro calibre) mas também não era o seu
papel. O seu papel era investir, forçar caminho, sem demasiada ternura mas sem
violência. E geralmente pensavam o mesmo que elas, partilhavam a mesma sensação
de infortúnio: era outra tipa que gostavam de ter ali à mão. A diferença é que
os rapazes conseguiam mesmo entusiasmar-se com o que tinham: afinal, havia
mamas, carne.
Depois do
almoço a cena foi mais insólita, mas não menos previsível (se o seguiam no
raciocínio). Da varanda de um edifício baixo de habitação estavam a ser
arrojadas roupas e objectos pessoais. Uma ou outra peça de mobília. Em cima,
possuída por fúria bíblica e forças sobrenaturais, actuava uma mulher. No
passeio, encolhido contra um poste, envergonhado, humilhado, vencido, pouco
menos do que morto — um homem, marido da senhora. Era a cena típica que estava
reservada a todos os casais, só que esta viera para a rua. O homem, como Quim
Zé bem sabia, estava a assistir a um filme, como se diz que as vítimas de
acidentes assistem antes da inconsciência. Toda a puta da sua vida em ecrã
panorâmico, a 3D. Os erros, as estupidezes, os momentos em que podia ter
evitado chegar a este ponto, as encruzilhadas onde poderia ter escolhido outra
direcção. Mais um imbecil que acreditara no amor e que agora via as suas cuecas
e as suas peúgas espalhadas pela rua, depois de um voo gracioso pelos céus
comunitários.
*in Aranda
sábado, 16 de junho de 2012
Cemitérios*
Quim Zé (…) a
dada altura queixou-se da frivolidade dos assuntos.
— Falemos de
coisas grandes, profundas, não do comezinho.
Beto ia
protestar, mas desistiu, talvez por não se sentir com forças. Preferiu
reabastecer-se de whisky enquanto
perguntava:
— E quais são as
coisas grandes?
Não era
retórica, o cérebro de Beto já precisava de alguma ajuda.
— O amor, a
morte, a guerra, temas destes — informou-o Quim Zé.
— Ah… Ok,
podes começar — disse Beto recompondo-se com esforço na cadeira, o que o fez parecer
irónico.
Quim Zé olhou
através da janela para a noite escura durante um hiato considerável Depois
decidiu-se:
— O que pensas
dos cemitérios?
— ?
— Bem, tanto
faz o que pensas. Não há muito para pensar, não é? Pacientes centrais de
reciclagem, se quisermos ser espirituosos. Depósitos de ossos com entrada
interdita a cães… Na verdade, são uma quantidade infindável de talhões cobertos
com mármores e granitos em feroz competição pela honra de serem o monumento
mais kitsch da cristandade. (Se ao
menos o conseguissem…) Há tempos fui visitar um. Não um qualquer: aquele onde
estão os meus antepassados. Não ia ali desde pequeno e foi um choque ver o que
a família fez daquilo. Não sou uma pessoa simples, não me interessam a modéstia
e a humildade, a singeleza. Não sou dos que apreciam aqueles cemitérios
bucólicos ingleses ou irlandeses, pradozinhos sem mais do que lápides ou cruzes
e erva. Mas não contava que se pudesse profanar a memória desta forma. Ia a
contar com a nossa velha cruz de pedra, coberta de musgo, com os seus relevos
medievais de cordas entrançadas, e a laje venerável que sempre cobriu as campas
paralelas, com um clássico epitáfio lavrado em latim, encaixado numa moldura
elegante em alto-relevo. Era assim o nosso jazigo, tanto quanto o lembrava;
nada que pudéssemos evocar com ênfase em ocasiões sociais, se o assunto era a
estética, mas ainda assim um túmulo com uma nobreza antiga, respeitável, antes
de mais por vir da bruma dos tempos. Se havia que intervir naquilo, eu deveria
ter sido consultado. Quase vomitei por cima dos meus avós quando vi a que ponto
desceu o gosto da família. Como se eu tivesse nascido no seio de uma parentela
de emigrantes ou empreiteiros. No novo jazigo, agora com ar de templo, não
faltavam coluninhas dóricas e capiteis, pórticos, o barroco e o gótico de mãos
dadas, mas tudo grosseiro, sem fineza (embora em materiais polidos), sem
verdadeira cultura arquitectónica ou iconográfica, como se o trabalho tivesse
sido entregue a um aprendiz sem talento nem estudos, incapaz de desenhar uma
linha recta, mas igualmente inábil com as volutas e ignorante quanto à estética.
Um escândalo em forma de túmulo de família. Não um escândalo — se fosse um
escândalo sentir-me-ia redimido, gosto de escândalos —: um aborto. Uma monstruosidade
onde supostamente eu estava destinado a descansar para sempre. Nem morto!
Tornei-me ali mesmo partidário da cremação. Venha o fogo purificador que me
impeça de me tornar numa espécie de ex-voto para peregrinações novo-ricas.
— Mas não era
disto que queria falar — continuou Quim Zé. — Quando decidi visitar aquele
local ia em busca de algo que imaginava poder obter de um cemitério: um momento
de paz, serenidade, fé, resignação. (Sim, estava transformado num idiota
naqueles dias.) Depois de recuperar do choque estético, foquei a minha atenção
nos retratos de família, sabes, aquelas fotografias em tons de sépia que se
metem em molduras ovais. Havia uns poucos daqueles, contudo eu olhava-os como
se olhasse para desconhecidos. Lembrava-me de um ou outro pendurado lá por
casa, mas diziam-me tanto como o retrato do Dom Manuel ou do Dom Carlos, que
também por lá andavam. Nem sequer me reconhecia naqueles traços físicos, não
mais do que nos retratos dos túmulos ao lado. Aliás, tanto quanto poderia
asseverar, a existirem ali laços familiares visíveis, eles uniam era os
defuntos uns aos outros. Os mesmos rostos — duros, ossudos, angulosos, de
maxilares fortes e sobrancelhas cerradas — espalhavam-se para um lado e outro
daquela ala.
— Na minha
família não se falava muito do passado — confidenciou Quim Zé —, não mais do
que para evocar a antiguidade dos genes, e para tal bastava um par de frases
pomposas. Por isso eu perguntava-me ao ver as fotos no túmulo que mulher era
aquela cujo rosto enrugado se encerrava anacronicamente dentro de um penteado
redondo dos anos cinquenta? E o homem na moldura ao seu lado? O que distinguia
aquele bigode farto de tantos outros que povoavam o cemitério? Não havia
respostas para mim. Tinha ido porque me sentia um elefante com ordens para
depositar o marfim no cemitério da espécie, mas os defuntos da família não me
reconfortavam, não me sentia inclinado a tombar ali — e não era apenas por
aquela ser uma última morada horrenda. Na verdade, e este é o pormenor mais
inesperado da visita, não senti nem por um minuto a presença da morte naquele
vasto campo de bijutaria. A terra, se eu tivesse sido capaz de a ver debaixo de
toda a feia ornamentação, não me requisitava. Não me sentia na iminência de
descer à cova. E era estranho, porque eu andava a ver a morte por todo o lado,
a senti-la chegar.
*in Aranda
sexta-feira, 15 de junho de 2012
Música*
— Eu sou do
género de sair à noite com a música aos berros no carro, ainda sou — disse Mário.
— Meto um CD e abro os vidros. É a minha forma de estar deprimido, não te rias.
Não quero saber o que pensam os outros. Escolho o que de mais foleiro houver na
minha discoteca. Não tenho nada assim de muito foleiro, mas sempre se arranja
alguma coisa. Bem, não te vou enganar, há coisas bastante foleiras na minha
discoteca. Mesmo hardcore, na verdade.
Um tipo previne-se, não é? Se sabes que tens essa panca não ficas à espera que
os discos te apareçam no carro. Compra-los. E olha que é preciso alguma atenção
ao mercado do lixo. Comprar esterco exige um certo método, quando a tua
formação é outra. Tens de te libertar de tudo o que aprendeste e tentar pensar
como um imbecil, um falhado, um bimbo, ou seja lá como for que se designam os
que genuinamente compram aquelas coisas.
— Antigamente
era mais simples, estava tudo nas feiras, nos ciganos, e só ali. Passar por lá a
ver aquelas capas e a ouvir aquelas canções era um prazer e uma grande galhofa.
Ah, que castiço o povo, que típico. Que divertido misturarmo-nos e sermos
condescendentes. Comprava-se uma cassete ou duas, para ajudar os vendedores e
para as pormos de surpresa no leitor numa qualquer festa das nossas.
Mijávamo-nos a rir com aquilo; trazer o vulgo para casa era divertido.
— Claro que de
repente a foleirice não é só um divertimento inofensivo, é mainstream — Mário fez um parêntese. — Houve um tipo da televisão
que também achou divertidíssimo levar aquilo para o seu show, queria rir-se e gozar à brava mesmo nas trombas dos pacóvios
que iam lá interpretar as suas cantiguitas de tasca, embaixadores esforçados da
província. O gajo ria-se e eles começaram a rir-se nas suas costas (talvez
também na cara) e passaram a sofisticar-se e a teorizar sobre a sua arte,
genuína e tal, verdadeiramente popular, e de repente aquilo saiu do esgoto, do
submundo, da clandestinidade, e era o que estava a dar. O tipo da televisão, ou
porque aquilo fez revelar-se a sua verdadeira face, ou porque viu a audiência
mudar, deixou-se de Monty Phyton e mais não sei o quê e pintou o cabelo e
abraçou incondicionalmente o povo. Isto é, em resumo, a história da TV nos
últimos vinte anos. Deprimente, não é?
— Mas o que
estava a dizer é que gosto de pôr a música aos berros no carro. Irrompo pela
baixa com o que de mais brejeiro encontrar no porta-luvas e as pessoas
admiram-se por aquele som sair deste carro, conduzido por um tipo bem-parecido,
endinheirado, como eu. Ou não se admiram com isso, admiram-se por a matrícula
não corresponder ao esperado; uma matrícula nacional, pode lá ser. Ou já nem se
admiram de todo, eu é que alimento esta ilusão de originalidade. Creio que a
única altura em que a minha atitude causa mesmo surpresa é quando chego
atrasado e de volume no máximo aos concertos de música clássica da família. O velho
bobo a regressar à corte, agregada em volta de Mozart como numa missa contra as
invasões bárbaras.
— Mas não era
de dramas existenciais que te queria falar. Ouvir música aos berros não é só a uma
forma de épater le bourgeois
(expressão irónica na minha boca, não? Gosto dela). É um estímulo de que
necessito amiúde. Claro que também ouço coisas decentes. Tenho a minha própria banda
sonora. E para esta viagem tinha de ser realmente criterioso. Não estamos
apenas a ir de um sítio a outro. Estamos a recuar no tempo, estamos a passar de
uma época para outra. É isso o que realmente me excita nesta ideia. Voltar a
Aranda… Voltar a Aranda é como viajar no tempo.
— Bem, trouxe
os cedês adequados. Começámos por Nouvelle Vague não por acaso.
*in Aranda
quinta-feira, 14 de junho de 2012
Verão*
— Por vezes —
disse Mário — penso que o Verão, aquela altura do ano em que vamos definitivamente
ser felizes, é um mito, uma projecção dos nossos desejos mais íntimos. Ou
talvez uma evocação. Sim, definitivamente uma evocação. Vejamos: o Verão existiu, um dia houve Verão. Não é como Deus ou os santos, nos quais temos de
acreditar sem evidências nem testemunhos, cegamente. Não é uma questão de fé —
mas está imbuído da mesma intangibilidade. Temos as nossas memórias dele, sem
dúvida que temos. A felicidade estava ali, por todo o lado, inundando tudo
naqueles fins-de-tarde intermináveis, como uma cornucópia generosa que não
parasse de jorrar luz e prazer e boas coisas a todo o momento, um regador
gigante manuseado pela mão de Deus, aspergindo com uma nuvem de vapor
inebriante, muito fina e suave e fresca, os nossos dias incontáveis e incontados.
— Mas o Verão
— continuou Mário — não tem existência senão no passado, por isso o seu
carácter mitológico. Ano após ano alimentamos a esperança de que agora é que
vai ser, vamos repetir tudo a que temos direito, o ócio, as sestas depois de
almoço, os planos para as diferentes partes do dia que se não se cumprirem não
importa pois há tantos dias à escolha, as manhãs sem fim, os almoços longos,
com sobremesa, as tardes a perder de vista, os jantares com guitarras e
cantorias eufóricas, as noites também habitáveis, usufruíveis (a uma da manhã à
distância da Namíbia, se não mais longe ainda, de qualquer modo sempre para lá
do Bojador).
— Depois eles acabaram
com o Verão. A humanidade prestes a cumprir-se (as máquinas farão as coisas chatas, dizia-se em 1900 — em 1900!) e
eles a acabar com o Verão. A tecnologia de ponta, a riqueza, o voto universal,
a igualdade, o amor livre, o homem na Lua, tantas evoluções — e eles a acabar
com o Verão.
— Em 1967 eu
ainda não sabia que eles estavam a acabar com o Verão. Quer dizer, eu estava a
nascer, não é?, não podia reparar logo nisso, tinha as minhas próprias prioridades.
Durante os primeiros anos e os seguintes, tudo o que fiz foi aproveitar o
Verão, carpe aestivum. Não de uma
forma táctica, oportunista, reflectida, filosófica, ideológica. Não. Nada
disso. No sentido menos consciente da expressão. Apenas mergulhando plenamente
nele, de trombas, de barriga, de costas, lançando-me para ele como pudesse e a
todo o momento. O Verão estava ali à mão de semear, era gratuito, para todos,
cada um que fizesse dele o que quisesse. Não havia um minuto a perder (embora
houvesse imensos minutos para perder), tudo o que tínhamos a fazer era dar uma
corridinha rápida, um saltinho para o ar na beira e, zás, cair nele de cabeça,
formosamente, atleticamente, imensamente, para sempre.
— Sim, para
sempre. Aqueles que mergulharam no Verão naqueles anos sabem do que falo. São,
como eu, os despojados do Verão. O cume da raça humana, a quem subitamente
tiraram o tapete de debaixo dos pés. O tapete não, a prancha, o trampolim.
Íamos nós para mais um salto, joelhos ligeiramente flectidos para o impulso que
nos lançaria nos céus como um Ícaro sem percalços e de repente também nós temos
um percalço. O maior deles todos. Não há prancha. Não há trampolim. Não há
Verão. De todo. Há apenas a queda. A longa e interminável queda. O lado
simétrico do Verão. Algo que nos puxava para baixo onde antes nos sentíamos
enlevados. Para baixo, sempre para baixo, Alice caindo pelo buraco mas sem
nunca chegar ao País das Maravilhas. Nem a lado nenhum. Nem sequer ao Inferno,
que poderia ser um sucedâneo do Verão, com o seu próprio calorzinho. Não. Nada.
Apenas a queda. A Queda e o Tempo. Tempo para ponderar a perda. Para gravar
mais profundamente na nossa pele o que estávamos a perder. Não como o Verão
gravava na pele a sua infinita bondade, com uma cor, um tom, o bronze, nalguns casos o ébano puro — sem escaldões nem
melanomas.
— Depois de
alguma vez se ter entrado no Verão, como eu entrei, como nós entrámos, a vida
torna-se muito difícil. Há a Queda, claro — aguardamos a todo o momento
ficarmos esborrachados, como um poio a cair do cu de uma vaca lacónica —, há a
queda, mas houve o Verão. Estamos
para aqui a cair, sempre a cair, mas temos uma memória, algures no nosso
cérebro temos registos de que houve um Verão. Um não, dez ou vinte, a eterna
repetição, a terna repetição da
melhor coisa que o mundo teve. Haverá castigo maior do que esse? Conhecer o
Paraíso e perdê-lo? Saber como as coisas podem ser e depois sermos informados
de que nunca mais as coisas serão assim? Que daqui para a frente o que nos
resta é lembrar, lembrar e chorar a perda até à neurose? Freud, Freud, onde
andas? Era isto que tu querias, não era, meu sacana? A humanidade a remoer as
suas neuroses e a comprar os excitantes, os calmantes, os soníferos que gajos
como eu prescrevem aos outros e a si mesmos. Que bela ideia de negócio, a tua,
ó sócio.
— Quer dizer,
se ao menos as férias não fossem apenas um mês, se pudéssemos ir três meses
para França, para o Loire, alugar um castelo com piscina até nos aborrecermos… Deliro,
bem sei. Fico sempre assim quando chega o Verão — concluiu Mário.
*in Aranda
quarta-feira, 13 de junho de 2012
The siege
Havia aqui uma esplanada que era um oásis no bairro de baiucas
noctívagas onde vivo. Bom serviço, boa carta, bom gosto, boa música em níveis
discretos, sem televisão nem luzes estentóricas. Isso acabou, talvez porque a
concessão tenha chegado ao seu termo (o bar é camarário), ou porque era um
espaço intolerável no mundo de hoje. Alguém na câmara ou na cidade certamente
ansiava por revogar a licença de empresa tão elegante e há aqui sempre mais um
empresário disposto a replicar o conceito chunga das restantes tascas das
redondezas. Os moradores? Permanecem indiferentes, viciados na receita de
soporíferos que têm de tomar todas as noites para continuarem a habitar o seu
próprio bairro.
O cerco continua.
segunda-feira, 11 de junho de 2012
A propósito de bola (ou talvez não)
Tinha ficado
bloqueado naquela canção como um disco riscado e ela gostava de o levar a
passear pela rua enquanto ele a cantava baixinho e lhe apertava a mão. Will you still need
me, will you still feed me. Tinham mais
de sessenta e quatro (a esperança de vida aumentara desde os Beatles), mas,
sim, ela continuava a precisar dele e a alimentá-lo, agora de uma forma
literal, a colherinhas de sopa.
Havia um recolher
obrigatório — os tempos hoje em dia eram deste jaez — mas ela estava cansada de
estar em casa, queria sentir a brisa do fim da tarde, passear de mão dada pela
marginal. De modo que mandou às malvas os avisos e fez o que lhe apetecia
fazer.
As claques não
tardariam a encher as ruas, evidentemente. Era dia de derby, e as autoridades faziam questão de reservar o espaço público
para os hunos em dias destes. Faziam-no em nome da segurança e do bem-estar
social. E, de facto, ela tinha de concordar que de um certo ponto de vista era
mais razoável para o cidadão comum (caso ainda existisse) ficar em casa,
sequestrado pelo seu próprio governo.
Mas não naquele dia.
Tinham passado cinquenta anos desde o casamento precipitado no final dos anos
sessenta, quando ele confundiu o desejo dela com paixão e ela, que pensara
iniciar então uma vida de amor livre e flores no cabelo, se embeveceu com a
ingenuidade do futuro marido e acedeu a dizer sim, mesmo que na altura não
achasse que aquilo a comprometia de forma alguma. Cinquenta anos em que nem por
um dia a banda sonora oficial daquela união improvável (will you still need me, will you still feed me) deixou de se ouvir.
Cinquenta anos era mais do que tinham o primeiro-ministro, o ministro das
finanças e o ministro-adjunto, a tríade que o país escolhera, talvez num desfile
de manequins (o que era feito dos anciãos, por Deus?).
Talvez já não
houvesse muitos velhos para além de eles os dois. Aqueles que se lembrava de
ter visto contavam-se pelos dedos das mãos. Mas na verdade não reparava muito no
que havia à sua volta. Quando saía só lhe interessava ir sentar-se num banco a
ver a foz e a acariciar a mão do marido, que o Alzheimer felizmente cingira à
faixa certa do álbum, mesmo que ela não apreciasse particularmente o arranjo
meio pateta que o McCartney providenciara para a musiquinha.
Ao chegar ao fim da
avenida o tempo começou a mudar e ela arrependeu-se de não ter trazido os
abrigos que tinha sempre pendurados no vestíbulo — mas não se arrependeu de ter
saído. Talvez chovesse (havia relâmpagos a cruzar o céu), mas o que era mais
romântico do que um passeio à chuva? Haveriam de sobreviver à constipação, se ela
os acometesse, e a maré viva era um espectáculo que ambos apreciavam.
Sim, estava
verdadeiramente excitada com a decisão de ter saído apesar de tudo e todos
pretenderem o contrário. Ainda havia alguém no país que fazia o que lhe
apetecia e não o que era determinado. E Deus, no caso de existir tal singularidade
lá em cima, bem poderia convocar as tempestades que quisesse. Se ela achava que
lhe calhava bem um passeio até à foz, vinha até à foz. Feliz por ter o marido
de sempre a cantarolar-lhe na sua vozinha querida a melhor declaração de amor.
Depois de se terem
sentado a ver a espuma das ondas, a primeira claque passou nas costas deles,
bastante desmotivada, quebrando apenas uma ou outra vitrina e incendiando escassos
contentores de lixo. Meia hora mais tarde, escoltada pela polícia, veio a insolente
claque adversária, com disciplina militar e sarcasmo palaciano, entoando um conhecido
cântico guerreiro.
João, o marido,
voltou-se para trás, com um sorriso e um dedo hesitante de maestro no ar.
Demorou algum tempo a apanhar a melodia, mas depois atacou-a a plenos pulmões — e
ela soube pela primeira vez em cinquenta anos o que era a traição.
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