O casal de
namorados que viu de manhã fê-lo lembrar-se de si próprio. O artista quando
jovem. Passou por eles ao contornar um relvado (detestava a merda dos cães —
não tanto quanto os bichos em si, claro — e não queria correr o risco).
Primeiro notou o olhar vago da rapariga. Ela fixava um ponto qualquer no correr
de edifícios do outro lado da rua. O namorado assediava-a. Queria um beijo, um
toque, roçar-lhe o seio, o entrepernas. Queria fodê-la, em suma. Quim Zé voltou
para trás e foi posicionar-se num sítio onde poderia apreciar a cena.
Conhecia-a. Vivera-a muitas vezes. A rapariga resistia fracamente às
investidas. O olhar fixo era sonhador. Queria estar naquela situação — mas com
outro tipo. Não a repugnava ser beijada, apalpada, fodida, mas ficava
melancólica pela tremenda má-sorte. Aceitara o namoro porque uma gaja tinha de
namorar, não era? Mas agora só queria acabar com aquilo. Cumprir o seu papel,
distanciada, resistindo tanto quanto possível, e rezar para que da próxima vez
as coisas se passassem com outro, com um de meia dúzia que ela era capaz de
enumerar.
Quim Zé também
sabia o que o rapaz pensava. Não era muito diferente, de resto, do que pensava
a rapariga de olhar perdido. Os rapazes não sabiam fazer aqueles olhares
(excepto alguns, profissionais de outro calibre) mas também não era o seu
papel. O seu papel era investir, forçar caminho, sem demasiada ternura mas sem
violência. E geralmente pensavam o mesmo que elas, partilhavam a mesma sensação
de infortúnio: era outra tipa que gostavam de ter ali à mão. A diferença é que
os rapazes conseguiam mesmo entusiasmar-se com o que tinham: afinal, havia
mamas, carne.
Depois do
almoço a cena foi mais insólita, mas não menos previsível (se o seguiam no
raciocínio). Da varanda de um edifício baixo de habitação estavam a ser
arrojadas roupas e objectos pessoais. Uma ou outra peça de mobília. Em cima,
possuída por fúria bíblica e forças sobrenaturais, actuava uma mulher. No
passeio, encolhido contra um poste, envergonhado, humilhado, vencido, pouco
menos do que morto — um homem, marido da senhora. Era a cena típica que estava
reservada a todos os casais, só que esta viera para a rua. O homem, como Quim
Zé bem sabia, estava a assistir a um filme, como se diz que as vítimas de
acidentes assistem antes da inconsciência. Toda a puta da sua vida em ecrã
panorâmico, a 3D. Os erros, as estupidezes, os momentos em que podia ter
evitado chegar a este ponto, as encruzilhadas onde poderia ter escolhido outra
direcção. Mais um imbecil que acreditara no amor e que agora via as suas cuecas
e as suas peúgas espalhadas pela rua, depois de um voo gracioso pelos céus
comunitários.
*in Aranda
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