sexta-feira, 15 de junho de 2012

Música*

— Eu sou do género de sair à noite com a música aos berros no carro, ainda sou — disse Mário. — Meto um CD e abro os vidros. É a minha forma de estar deprimido, não te rias. Não quero saber o que pensam os outros. Escolho o que de mais foleiro houver na minha discoteca. Não tenho nada assim de muito foleiro, mas sempre se arranja alguma coisa. Bem, não te vou enganar, há coisas bastante foleiras na minha discoteca. Mesmo hardcore, na verdade. Um tipo previne-se, não é? Se sabes que tens essa panca não ficas à espera que os discos te apareçam no carro. Compra-los. E olha que é preciso alguma atenção ao mercado do lixo. Comprar esterco exige um certo método, quando a tua formação é outra. Tens de te libertar de tudo o que aprendeste e tentar pensar como um imbecil, um falhado, um bimbo, ou seja lá como for que se designam os que genuinamente compram aquelas coisas.
— Antigamente era mais simples, estava tudo nas feiras, nos ciganos, e só ali. Passar por lá a ver aquelas capas e a ouvir aquelas canções era um prazer e uma grande galhofa. Ah, que castiço o povo, que típico. Que divertido misturarmo-nos e sermos condescendentes. Comprava-se uma cassete ou duas, para ajudar os vendedores e para as pormos de surpresa no leitor numa qualquer festa das nossas. Mijávamo-nos a rir com aquilo; trazer o vulgo para casa era divertido.
— Claro que de repente a foleirice não é só um divertimento inofensivo, é mainstream — Mário fez um parêntese. — Houve um tipo da televisão que também achou divertidíssimo levar aquilo para o seu show, queria rir-se e gozar à brava mesmo nas trombas dos pacóvios que iam lá interpretar as suas cantiguitas de tasca, embaixadores esforçados da província. O gajo ria-se e eles começaram a rir-se nas suas costas (talvez também na cara) e passaram a sofisticar-se e a teorizar sobre a sua arte, genuína e tal, verdadeiramente popular, e de repente aquilo saiu do esgoto, do submundo, da clandestinidade, e era o que estava a dar. O tipo da televisão, ou porque aquilo fez revelar-se a sua verdadeira face, ou porque viu a audiência mudar, deixou-se de Monty Phyton e mais não sei o quê e pintou o cabelo e abraçou incondicionalmente o povo. Isto é, em resumo, a história da TV nos últimos vinte anos. Deprimente, não é?
— Mas o que estava a dizer é que gosto de pôr a música aos berros no carro. Irrompo pela baixa com o que de mais brejeiro encontrar no porta-luvas e as pessoas admiram-se por aquele som sair deste carro, conduzido por um tipo bem-parecido, endinheirado, como eu. Ou não se admiram com isso, admiram-se por a matrícula não corresponder ao esperado; uma matrícula nacional, pode lá ser. Ou já nem se admiram de todo, eu é que alimento esta ilusão de originalidade. Creio que a única altura em que a minha atitude causa mesmo surpresa é quando chego atrasado e de volume no máximo aos concertos de música clássica da família. O velho bobo a regressar à corte, agregada em volta de Mozart como numa missa contra as invasões bárbaras.
— Mas não era de dramas existenciais que te queria falar. Ouvir música aos berros não é só a uma forma de épater le bourgeois (expressão irónica na minha boca, não? Gosto dela). É um estímulo de que necessito amiúde. Claro que também ouço coisas decentes. Tenho a minha própria banda sonora. E para esta viagem tinha de ser realmente criterioso. Não estamos apenas a ir de um sítio a outro. Estamos a recuar no tempo, estamos a passar de uma época para outra. É isso o que realmente me excita nesta ideia. Voltar a Aranda… Voltar a Aranda é como viajar no tempo.
— Bem, trouxe os cedês adequados. Começámos por Nouvelle Vague não por acaso.

*in Aranda

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