Quim Zé (…) a
dada altura queixou-se da frivolidade dos assuntos.
— Falemos de
coisas grandes, profundas, não do comezinho.
Beto ia
protestar, mas desistiu, talvez por não se sentir com forças. Preferiu
reabastecer-se de whisky enquanto
perguntava:
— E quais são as
coisas grandes?
Não era
retórica, o cérebro de Beto já precisava de alguma ajuda.
— O amor, a
morte, a guerra, temas destes — informou-o Quim Zé.
— Ah… Ok,
podes começar — disse Beto recompondo-se com esforço na cadeira, o que o fez parecer
irónico.
Quim Zé olhou
através da janela para a noite escura durante um hiato considerável Depois
decidiu-se:
— O que pensas
dos cemitérios?
— ?
— Bem, tanto
faz o que pensas. Não há muito para pensar, não é? Pacientes centrais de
reciclagem, se quisermos ser espirituosos. Depósitos de ossos com entrada
interdita a cães… Na verdade, são uma quantidade infindável de talhões cobertos
com mármores e granitos em feroz competição pela honra de serem o monumento
mais kitsch da cristandade. (Se ao
menos o conseguissem…) Há tempos fui visitar um. Não um qualquer: aquele onde
estão os meus antepassados. Não ia ali desde pequeno e foi um choque ver o que
a família fez daquilo. Não sou uma pessoa simples, não me interessam a modéstia
e a humildade, a singeleza. Não sou dos que apreciam aqueles cemitérios
bucólicos ingleses ou irlandeses, pradozinhos sem mais do que lápides ou cruzes
e erva. Mas não contava que se pudesse profanar a memória desta forma. Ia a
contar com a nossa velha cruz de pedra, coberta de musgo, com os seus relevos
medievais de cordas entrançadas, e a laje venerável que sempre cobriu as campas
paralelas, com um clássico epitáfio lavrado em latim, encaixado numa moldura
elegante em alto-relevo. Era assim o nosso jazigo, tanto quanto o lembrava;
nada que pudéssemos evocar com ênfase em ocasiões sociais, se o assunto era a
estética, mas ainda assim um túmulo com uma nobreza antiga, respeitável, antes
de mais por vir da bruma dos tempos. Se havia que intervir naquilo, eu deveria
ter sido consultado. Quase vomitei por cima dos meus avós quando vi a que ponto
desceu o gosto da família. Como se eu tivesse nascido no seio de uma parentela
de emigrantes ou empreiteiros. No novo jazigo, agora com ar de templo, não
faltavam coluninhas dóricas e capiteis, pórticos, o barroco e o gótico de mãos
dadas, mas tudo grosseiro, sem fineza (embora em materiais polidos), sem
verdadeira cultura arquitectónica ou iconográfica, como se o trabalho tivesse
sido entregue a um aprendiz sem talento nem estudos, incapaz de desenhar uma
linha recta, mas igualmente inábil com as volutas e ignorante quanto à estética.
Um escândalo em forma de túmulo de família. Não um escândalo — se fosse um
escândalo sentir-me-ia redimido, gosto de escândalos —: um aborto. Uma monstruosidade
onde supostamente eu estava destinado a descansar para sempre. Nem morto!
Tornei-me ali mesmo partidário da cremação. Venha o fogo purificador que me
impeça de me tornar numa espécie de ex-voto para peregrinações novo-ricas.
— Mas não era
disto que queria falar — continuou Quim Zé. — Quando decidi visitar aquele
local ia em busca de algo que imaginava poder obter de um cemitério: um momento
de paz, serenidade, fé, resignação. (Sim, estava transformado num idiota
naqueles dias.) Depois de recuperar do choque estético, foquei a minha atenção
nos retratos de família, sabes, aquelas fotografias em tons de sépia que se
metem em molduras ovais. Havia uns poucos daqueles, contudo eu olhava-os como
se olhasse para desconhecidos. Lembrava-me de um ou outro pendurado lá por
casa, mas diziam-me tanto como o retrato do Dom Manuel ou do Dom Carlos, que
também por lá andavam. Nem sequer me reconhecia naqueles traços físicos, não
mais do que nos retratos dos túmulos ao lado. Aliás, tanto quanto poderia
asseverar, a existirem ali laços familiares visíveis, eles uniam era os
defuntos uns aos outros. Os mesmos rostos — duros, ossudos, angulosos, de
maxilares fortes e sobrancelhas cerradas — espalhavam-se para um lado e outro
daquela ala.
— Na minha
família não se falava muito do passado — confidenciou Quim Zé —, não mais do
que para evocar a antiguidade dos genes, e para tal bastava um par de frases
pomposas. Por isso eu perguntava-me ao ver as fotos no túmulo que mulher era
aquela cujo rosto enrugado se encerrava anacronicamente dentro de um penteado
redondo dos anos cinquenta? E o homem na moldura ao seu lado? O que distinguia
aquele bigode farto de tantos outros que povoavam o cemitério? Não havia
respostas para mim. Tinha ido porque me sentia um elefante com ordens para
depositar o marfim no cemitério da espécie, mas os defuntos da família não me
reconfortavam, não me sentia inclinado a tombar ali — e não era apenas por
aquela ser uma última morada horrenda. Na verdade, e este é o pormenor mais
inesperado da visita, não senti nem por um minuto a presença da morte naquele
vasto campo de bijutaria. A terra, se eu tivesse sido capaz de a ver debaixo de
toda a feia ornamentação, não me requisitava. Não me sentia na iminência de
descer à cova. E era estranho, porque eu andava a ver a morte por todo o lado,
a senti-la chegar.
*in Aranda
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