Há pouco tempo visitei clandestinamente uma casa que durante mais de quarenta anos me fascinou e, se não me trai a memória, era o último lugar “misterioso” das termas de Pedras Salgadas em que me faltava entrar.
Desde a minha infância, as Pedras têm sido esse lugar onde os edifícios fascinam enquanto habitados e fascinam mais quando vão sendo abandonados. Um lugar vivo tem o mistério do seu tempo, das pessoas diferentes de nós que enchem os compartimentos com os seus modos exóticos, enquanto um edifício devoluto tem a soma dos mistérios de todos os tempos, em camadas de pó como estratos geológicos, e o mistério maior do vazio, do insondável.
A Villa Adriana, que hoje vejo como construção simples, era moradia de eleitos, com uma arquitectura alheia à humilde tradição local, por vezes revestida de hera como nobre solar, e a promessa de um recheio elegante. O próprio facto de a casa ter nome, e um nome excêntrico, colocava-a num Olimpo inacessível ao comum dos mortais, ou pelo menos a mim.
Quando chegava o Outono e a época de frades, a minha família era das que esquadrinhavam com regularidade os canteiros do parque em busca dos cogumelos ambicionados. Em criança acompanhava o meu tio na sua missão recolectora e nas imediações da Villa Adriana o meu espírito dividia-se na expectativa de duas epifanias: a descoberta de um frade pelos meus próprios olhos, sem ajudas, e um vislumbre do interior da casa e das pessoas que nela habitavam. Não sei se alguma das coisas chegou a acontecer naquela idade.
Quando visitei a Villa Adriana fi-lo sem forçar a entrada. A porta estava apenas encostada, como se alguém aguardasse a minha visita — talvez os fantasmas das personagens fabulosas que ali habitaram e que só existiram na minha cabeça, mesmo que alguns dos seus sucedâneos humanos continuem vivos. Mas entrou comigo o adolescente que sonhava maravilhas em casas assim e por isso não resisti ao impulso atávico de trazer uma recordação.
(Os edifícios do parque foram ao longo dos anos espoliados do seu recheio, por interesses materiais ou nostálgicos, mas não me recordo de alguma vez ter participado num desses movimentos activos. Não mantive senão na mente um compartimento com memorabilia das termas.)
Provavelmente, o objecto que meti ao bolso, sorrindo para mim mesmo com condescendência, nem faria parte do inventário original da casa, já que os compartimentos albergam agora materiais de várias proveniências e sem atractivo: um stock de lâmpadas fluorescentes, por exemplo.
Na cave havia um cartaz também emoldurado com uma mensagem auto-motivante da Companhia de Vidago, Melgaço & Pedras Salgadas há cinquenta anos. Nele lia-se: «A nossa expansão tem de medir-se em termos de actualidade» e, em baixo, de uma estrutura de lançamento de foguetões partiam sucessivamente três garrafas acompanhadas de uma data e um número, presumo que o total da produção nos anos indicados: 1966 (17 320 576), 1968 (23 956 895) e 1970 (31 734 749).
Numa mesinha de outro compartimento, partilhando a mesma cor azul, havia dois guias, um material e um espiritual: um User’s Guide da Hewlett Packard para um gravador de CDs e um Guia prático para o sacramento [não retive qual] com a mensagem «Suplico-vos: deixai-vos reconciliar com Deus». Talvez tenha estremecido um pouco nesse momento ao sentir no bolso o volume do meu despojo.
Na viagem de regresso, fiz um balanço da visita (os dourados na casa de banho, que há quarenta anos talvez me tivessem deslumbrado, pareceram-me agora um pouco kitsch) e satisfiz o desenhador técnico que durante anos fui, desenhando finalmente mas de cor a planta da casa. Pensei também no souvenir. Foi só então que, com novo sorriso condescendente, o achei adequado a mais do que o tamanho do bolso: afinal, uma chávena é o objecto fetiche da invocação do tempo perdido.
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P.S.: Se algum dos actuais proprietários das termas estiver a ler este post, saiba que prometo devolver a chávena, se ela fizer falta ao conjunto.
domingo, 27 de dezembro de 2020
domingo, 20 de dezembro de 2020
Fonte de discórdia
A narradora do romance Recordações do Futuro, de Siri Hustvedt, defende — como de resto a própria autora na sua vida real — a tese, assaz plausível, de que aquela que os especialistas consideraram a obra de arte mais influente do século XX, a célebre Fonte atribuída a Marcel Duchamp, foi na verdade uma criação da artista e poeta avant-garde e dadaísta Elsa Hildegard ou Baronesa von Freytag-Loringhoven.
O que acho irónico nisto não é haver um equívoco associado à peça que inspirou uma longa série de equívocos na arte, mas ver uma parte da comunidade que validou a ideia revolucionária e transgressora de “arte conceptual” ser hoje potencial veículo da perpetuação de um sentimento reaccionário: o patriarcalismo.
Explico melhor: a ironia não vem da resistência que especialistas oferecem à sugestão de que há uma autoria diferente e feminina para A Fonte, mas da possibilidade que se abre de vermos detractores habituais da arte conceptual tornarem-se de súbito acérrimos defensores do legado de Marcel Duchamp.
O que acho irónico nisto não é haver um equívoco associado à peça que inspirou uma longa série de equívocos na arte, mas ver uma parte da comunidade que validou a ideia revolucionária e transgressora de “arte conceptual” ser hoje potencial veículo da perpetuação de um sentimento reaccionário: o patriarcalismo.
Explico melhor: a ironia não vem da resistência que especialistas oferecem à sugestão de que há uma autoria diferente e feminina para A Fonte, mas da possibilidade que se abre de vermos detractores habituais da arte conceptual tornarem-se de súbito acérrimos defensores do legado de Marcel Duchamp.
sábado, 12 de dezembro de 2020
Sem palavras
O meu pai e eu não éramos muito faladores nos nossos telefonemas. Os telefonemas não serviam para contar coisas, na verdade, mas para declararmos com regularidade a nossa existência mútua enquanto pai e filho. Era como tocar com as pontas dos dedos nas costas de alguém que se ama, só para assinalar a presença, o afecto. Para reconfortar. Por vezes éramos tão telegráficos que parecíamos a sentinela nas ameias ou nas trincheiras dando voz de alento ou alívio: «Tudo calmo no posto norte». (Ou sul, dependia se ligava eu ou ele.)
Nas últimas visitas que pude fazer-lhe, desejei também usar o telemóvel, como aliás tinha já sido sugerido meio a rir meio a sério pela minha irmã mais velha, porque o meu pai estava a ouvir mal e agora, com máscara e painel acrílico entre a minha boca e as orelhas dele, a conversa era de surdos. Não o fiz, não peguei no telemóvel porque isso lembrava, ainda que erradamente, uma visita à prisão, como se vê nos filmes, e tive vergonha, mas tive sobretudo receio de que a ideia acabasse por não funcionar e o constrangesse também a ele. E assim constrangíamo-nos a olhar um para o outro, ele a tentar adivinhar as palavras, eu à espera que ele tivesse a iniciativa da conversa.
Havia coisas que gostaria de lhe perguntar sobre os oitenta e seis anos da sua vida e outras que queria contar-lhe sobre os meus últimos meses, mas duvido que alguma vez o fizesse, mesmo que ainda tivéssemos tempo, que não houvesse pandemia nem surdez, porque herdei isso dele, essa tendência para o mutismo sobre a vida própria.
O meu pai, que nos últimos anos voltara a ler com regularidade como numa fase da minha infância o vira fazer, leu os três livros que publiquei, mas fomos ambos bastante incapazes de falar sobre o assunto. Imagino que o primeiro o tenha entristecido um pouco, pela linguagem a espaços desabrida e obscena do personagem principal. Ou talvez não, ele tinha já a experiência de muitos anos de ver o seu filho mais novo escrever coisas menos adequadas e até de receber queixas sobre isso. Mas também recebia elogios, suponho, o que certamente o reconfortava e estimulava a magnanimidade de que era capaz.
De resto, o meu pai tinha já hábito de bondade em relação àquilo a que a sociedade considerava ovelhas tresmalhadas, mesmo quando no discurso corrente se mostrava crítico. Lembro-me que arranjou no parque das Pedras Salgadas nos anos setenta, princípios de oitenta — quando a sua influência, conquistada pelo trabalho e pela dedicação a pessoas e instituições, lhe permitia esse poder — uma sala de ensaios a um conjunto musical liderado por uma dessas ovelhas tresmalhadas, isto numa altura em que a maconha circulava com facilidade e indignação inauditas e se dizia que andavam por ali sacos dela vindos de África. Ovelha essa a que, de resto, concedeu também posteriormente amplo apoio enquanto autarca, precisamente, suponho, porque era capaz de reconhecer o talento e tinha um certo sentimento de protector da tribo.
Era por vezes uma pessoa severa e conservadora, herança da época salazarenta em que cresceu, mas era também uma personalidade reivindicativa, tanto que pode ser visto aí pelo Youtube num vídeo do pós-vinte-e-cinco-de-abril com ar e discurso de verdadeiro sindicalista a lutar pelos direitos dos trabalhadores seus colegas. Um dia a camioneta da loja de móveis parou na nossa rua e da camioneta descarregaram os sofás verdes que haveriam de ser os únicos sofás que toda a vida houve em casa. A perplexidade começou por ser da minha mãe, com os seis filhos de roda das saias, e depois foi dele, quando chegou e se pôs a declarar coçando a cabeça que não encomendara aquilo, nunca o poderia ter feito. Após algum suspense, a informação chegou: os sofás eram um presente de um grupo de trabalhadoras de quem ele era colega e encarregado.
A sua dedicação à terra e à companhia das águas das Pedras era total, criando por vezes certos ciúmes nos filhos. Mas não se lhe pode censurar isso. A companhia das águas e a terra e a família confundem-se, são uma e a mesma coisa, mesmo para mim, que há trinta anos não vivo ali. Quando se reformou tinha para gozar meses de férias. Foi entre outras coisas padeiro, distribuidor de pão, electricista, depois de em criança ter sido groom nos hotéis do parque termal e antes de se fixar definitivamente na “empresa”, que de certa forma, e como tantos outros, sentiu como sua. Talvez haja outras homenagens na terra àquele seu cidadão dedicado que foi também, em paralelo, presidente da junta de freguesia, vereador na câmara e director do clube de futebol local, mas a que ele me mostrou só o é indirectamente: o seu testemunho num vídeo em loop no museu das termas, o “Pedras Experience”. Ele orgulhava-se, e suponho que com legitimidade, do vídeo, não sei se com a consciência de o terem musealizado junto a outros vestígios termais.
Quando acabei o nono ano, o meu pai conluiou-se com um tio dele para porem os dois filhos rapazes mais novos (os outros já trabalhavam) a estudar em Vila Real num curso com acesso directo ao mercado de trabalho ao fim de um ano lectivo. O salário do meu pai mal dava para a conta da mercearia (às vezes não dava), quanto mais para trazer filhos a estudar. Na Escola Industrial e Comercial (hoje Secundária S. Pedro), havia a opção de secretariado, ou similar, mas romântica e imbecilmente o retardado do seu filho mais novo escolheu metalomecânica, achando que a parte de mecânica seria suficiente para o pôr a construir foguetões, ambição antiga de quem só sabia sonhar com aventuras e viagens espaciais. O meu pai estranhou decerto a escolha, inesperada para filhos que começavam a exibir tendências artísticas, mas respeitou-a, ou, com pragmatismo resignado, achou-a secretamente com mais saída. No dia das matrículas deu-me dinheiro para a carreira e logo ali concluí que ele e o tio tinham feito mal as contas, os preços tinham aumentado, o dinheiro dava para o bilhete de ida e pouco mais. Na altura ainda imperava a versão severa do meu pai e não me atrevi a dizer-lhe nada. Embarquei em silêncio, matutando durante a viagem em formas de regressar. Talvez o momento não tenha sido traumatizante porque ainda era Verão, dias longos, sabia vagamente o caminho para voltar a pé, estava habituado a andar fora de casa até tarde da noite. Entregues os papéis na secretaria em Vila Real, meti os pés à estrada para o regresso, esperando passivamente uma boleia, que só apareceu no alto da Samardã, uns doze quilómetros depois. O curso saiu portanto mais caro do que os cavalheiros planearam e, no final de um ano traumático (abominei a própria Escola até ao dia em que, ironia do destino, décadas depois, vim morar num prédio ao pé dela), com estágio apalavrado na empresa das águas (onde mais?), reunimos finalmente a coragem, o meu irmão e eu, depois de dias e noites a tremer de puro pânico, para anunciar que desistíamos desse projecto de vida e pretendíamos continuar a estudar no ensino “normal”. Eu estava mais ou menos a contar com a primeira sova paterna da minha vida. Mas os tempos eram já outros e a zanga, dura, teve apenas manifestações orais, com lamentações legítimas sobre a sua impotência para nos pagar estudos e a nossa visão romântica da vida. Tínhamos prometido logo no início da conversa, por antecipação, para amenizar a fúria, que não gastaríamos dinheiro em livros ou autocarro — e cumprimos. Nos três anos seguintes estudámos pelos livros dos outros e não houve condutor na Nacional 2 entre Pedras-Vila Pouca que não nos tivesse dado boleia, num sentido ou no outro. O meu pai continuou, imagino com que sacrifício, a alimentar-nos e vestir-nos. E a amar-nos, estou certo.
Quando fui para a tropa, raramente tendo contribuído para o rendimento familiar (numa campanha de censos não consegui reunir a quantidade mínima de inquéritos para ser pago porque, já antropofóbico, tinha pavor de fazer perguntas às pessoas, e o curso de balneoterapia onde o meu pai me deixou durante uma semana de Inverno no Luso foi também sem consequência, embora com excelentes notas), quando fui para a tropa, dizia, a minha legitimidade para esperar apoio do meu pai era muito reduzida. E no entanto ele quase sempre acorria aos meus telefonemas quando lhe pedia que me fosse buscar à Régua nas sextas à noite em que conseguia ali chegar de comboio, vindo de Elvas, já sem ligações para a linha do Corgo. Nem se zangou comigo quando uma das vezes se prestou ao frete de ir à Régua já de madrugada e ali chegado não me encontrou, porque eu me deixei dormir em serviço e não dei conta que ele chegasse, nem ele me viu no meio de tanto magala verde estendido na escuridão sobre os bancos da carruagem que ao final da manhã seguinte iria até Vila Real. Não regressou de mãos a abanar porque apanhou um vizinho marinheiro com sono mais leve e ele gostava de ser útil às pessoas, mas imaginei-o zangado, com justeza, por o ter feito tolamente gastar gasolina e tempo. Contudo, foi divertido que me recebeu no dia seguinte ao almoço.
Antes de arrastar isto por uma autobiografia maçadora e inoportuna, devo dizer que a 9 de Dezembro de 2020 cessaram as respostas do posto norte. Não mais haverá telefonemas que nos assegurem mutuamente que estamos bem. Não mais haverá telefonemas a combinar almoços ao domingo. Não mais terei a oportunidade de o ver de novo aguardar-me com paciência e bondade como quando eu chegava por sistema atrasado para o ir buscar. Não mais teremos desses almoços em que também não falávamos muito mas éramos muito — devotamente, dedicadamente, afectuosamente — pai e filho. Fica um vazio terrível, maior do que o da falta de palavras (que nunca nos incomodou propriamente): o da ausência.
O cemitério onde o enterrámos anteontem numa urgência que não era nossa, nesta época terrível em que se enterram os mortos como se tivessem lepra, fica ao pé da igreja onde íamos aos domingos antes de almoço, quando ainda cumpríamos a tradição de ir à missa. Mas não é essa igreja que me fica na memória associada ao meu pai. Não é nenhuma igreja, na verdade, mas as manhãs de Inverno como a de anteontem em que optávamos por uma missa mais matutina no outro templo da terra e, regressados a casa, enquanto a minha mãe acendia o fogão a lenha e preparava industrialmente torradas para uma família de nove famintos devoradores de pão, o meu pai liderava um mantra que cantávamos em volta da mesa da cozinha, qual tribo invocando chuva, uma cantilena com letra onomatopaica que marcava o ritmo com que arrastávamos ou batíamos os pés para os aquecer. Era um momento de pura ternura paternal. Sem palavras, claro.
Nas últimas visitas que pude fazer-lhe, desejei também usar o telemóvel, como aliás tinha já sido sugerido meio a rir meio a sério pela minha irmã mais velha, porque o meu pai estava a ouvir mal e agora, com máscara e painel acrílico entre a minha boca e as orelhas dele, a conversa era de surdos. Não o fiz, não peguei no telemóvel porque isso lembrava, ainda que erradamente, uma visita à prisão, como se vê nos filmes, e tive vergonha, mas tive sobretudo receio de que a ideia acabasse por não funcionar e o constrangesse também a ele. E assim constrangíamo-nos a olhar um para o outro, ele a tentar adivinhar as palavras, eu à espera que ele tivesse a iniciativa da conversa.
Havia coisas que gostaria de lhe perguntar sobre os oitenta e seis anos da sua vida e outras que queria contar-lhe sobre os meus últimos meses, mas duvido que alguma vez o fizesse, mesmo que ainda tivéssemos tempo, que não houvesse pandemia nem surdez, porque herdei isso dele, essa tendência para o mutismo sobre a vida própria.
O meu pai, que nos últimos anos voltara a ler com regularidade como numa fase da minha infância o vira fazer, leu os três livros que publiquei, mas fomos ambos bastante incapazes de falar sobre o assunto. Imagino que o primeiro o tenha entristecido um pouco, pela linguagem a espaços desabrida e obscena do personagem principal. Ou talvez não, ele tinha já a experiência de muitos anos de ver o seu filho mais novo escrever coisas menos adequadas e até de receber queixas sobre isso. Mas também recebia elogios, suponho, o que certamente o reconfortava e estimulava a magnanimidade de que era capaz.
De resto, o meu pai tinha já hábito de bondade em relação àquilo a que a sociedade considerava ovelhas tresmalhadas, mesmo quando no discurso corrente se mostrava crítico. Lembro-me que arranjou no parque das Pedras Salgadas nos anos setenta, princípios de oitenta — quando a sua influência, conquistada pelo trabalho e pela dedicação a pessoas e instituições, lhe permitia esse poder — uma sala de ensaios a um conjunto musical liderado por uma dessas ovelhas tresmalhadas, isto numa altura em que a maconha circulava com facilidade e indignação inauditas e se dizia que andavam por ali sacos dela vindos de África. Ovelha essa a que, de resto, concedeu também posteriormente amplo apoio enquanto autarca, precisamente, suponho, porque era capaz de reconhecer o talento e tinha um certo sentimento de protector da tribo.
Era por vezes uma pessoa severa e conservadora, herança da época salazarenta em que cresceu, mas era também uma personalidade reivindicativa, tanto que pode ser visto aí pelo Youtube num vídeo do pós-vinte-e-cinco-de-abril com ar e discurso de verdadeiro sindicalista a lutar pelos direitos dos trabalhadores seus colegas. Um dia a camioneta da loja de móveis parou na nossa rua e da camioneta descarregaram os sofás verdes que haveriam de ser os únicos sofás que toda a vida houve em casa. A perplexidade começou por ser da minha mãe, com os seis filhos de roda das saias, e depois foi dele, quando chegou e se pôs a declarar coçando a cabeça que não encomendara aquilo, nunca o poderia ter feito. Após algum suspense, a informação chegou: os sofás eram um presente de um grupo de trabalhadoras de quem ele era colega e encarregado.
A sua dedicação à terra e à companhia das águas das Pedras era total, criando por vezes certos ciúmes nos filhos. Mas não se lhe pode censurar isso. A companhia das águas e a terra e a família confundem-se, são uma e a mesma coisa, mesmo para mim, que há trinta anos não vivo ali. Quando se reformou tinha para gozar meses de férias. Foi entre outras coisas padeiro, distribuidor de pão, electricista, depois de em criança ter sido groom nos hotéis do parque termal e antes de se fixar definitivamente na “empresa”, que de certa forma, e como tantos outros, sentiu como sua. Talvez haja outras homenagens na terra àquele seu cidadão dedicado que foi também, em paralelo, presidente da junta de freguesia, vereador na câmara e director do clube de futebol local, mas a que ele me mostrou só o é indirectamente: o seu testemunho num vídeo em loop no museu das termas, o “Pedras Experience”. Ele orgulhava-se, e suponho que com legitimidade, do vídeo, não sei se com a consciência de o terem musealizado junto a outros vestígios termais.
Quando acabei o nono ano, o meu pai conluiou-se com um tio dele para porem os dois filhos rapazes mais novos (os outros já trabalhavam) a estudar em Vila Real num curso com acesso directo ao mercado de trabalho ao fim de um ano lectivo. O salário do meu pai mal dava para a conta da mercearia (às vezes não dava), quanto mais para trazer filhos a estudar. Na Escola Industrial e Comercial (hoje Secundária S. Pedro), havia a opção de secretariado, ou similar, mas romântica e imbecilmente o retardado do seu filho mais novo escolheu metalomecânica, achando que a parte de mecânica seria suficiente para o pôr a construir foguetões, ambição antiga de quem só sabia sonhar com aventuras e viagens espaciais. O meu pai estranhou decerto a escolha, inesperada para filhos que começavam a exibir tendências artísticas, mas respeitou-a, ou, com pragmatismo resignado, achou-a secretamente com mais saída. No dia das matrículas deu-me dinheiro para a carreira e logo ali concluí que ele e o tio tinham feito mal as contas, os preços tinham aumentado, o dinheiro dava para o bilhete de ida e pouco mais. Na altura ainda imperava a versão severa do meu pai e não me atrevi a dizer-lhe nada. Embarquei em silêncio, matutando durante a viagem em formas de regressar. Talvez o momento não tenha sido traumatizante porque ainda era Verão, dias longos, sabia vagamente o caminho para voltar a pé, estava habituado a andar fora de casa até tarde da noite. Entregues os papéis na secretaria em Vila Real, meti os pés à estrada para o regresso, esperando passivamente uma boleia, que só apareceu no alto da Samardã, uns doze quilómetros depois. O curso saiu portanto mais caro do que os cavalheiros planearam e, no final de um ano traumático (abominei a própria Escola até ao dia em que, ironia do destino, décadas depois, vim morar num prédio ao pé dela), com estágio apalavrado na empresa das águas (onde mais?), reunimos finalmente a coragem, o meu irmão e eu, depois de dias e noites a tremer de puro pânico, para anunciar que desistíamos desse projecto de vida e pretendíamos continuar a estudar no ensino “normal”. Eu estava mais ou menos a contar com a primeira sova paterna da minha vida. Mas os tempos eram já outros e a zanga, dura, teve apenas manifestações orais, com lamentações legítimas sobre a sua impotência para nos pagar estudos e a nossa visão romântica da vida. Tínhamos prometido logo no início da conversa, por antecipação, para amenizar a fúria, que não gastaríamos dinheiro em livros ou autocarro — e cumprimos. Nos três anos seguintes estudámos pelos livros dos outros e não houve condutor na Nacional 2 entre Pedras-Vila Pouca que não nos tivesse dado boleia, num sentido ou no outro. O meu pai continuou, imagino com que sacrifício, a alimentar-nos e vestir-nos. E a amar-nos, estou certo.
Quando fui para a tropa, raramente tendo contribuído para o rendimento familiar (numa campanha de censos não consegui reunir a quantidade mínima de inquéritos para ser pago porque, já antropofóbico, tinha pavor de fazer perguntas às pessoas, e o curso de balneoterapia onde o meu pai me deixou durante uma semana de Inverno no Luso foi também sem consequência, embora com excelentes notas), quando fui para a tropa, dizia, a minha legitimidade para esperar apoio do meu pai era muito reduzida. E no entanto ele quase sempre acorria aos meus telefonemas quando lhe pedia que me fosse buscar à Régua nas sextas à noite em que conseguia ali chegar de comboio, vindo de Elvas, já sem ligações para a linha do Corgo. Nem se zangou comigo quando uma das vezes se prestou ao frete de ir à Régua já de madrugada e ali chegado não me encontrou, porque eu me deixei dormir em serviço e não dei conta que ele chegasse, nem ele me viu no meio de tanto magala verde estendido na escuridão sobre os bancos da carruagem que ao final da manhã seguinte iria até Vila Real. Não regressou de mãos a abanar porque apanhou um vizinho marinheiro com sono mais leve e ele gostava de ser útil às pessoas, mas imaginei-o zangado, com justeza, por o ter feito tolamente gastar gasolina e tempo. Contudo, foi divertido que me recebeu no dia seguinte ao almoço.
Antes de arrastar isto por uma autobiografia maçadora e inoportuna, devo dizer que a 9 de Dezembro de 2020 cessaram as respostas do posto norte. Não mais haverá telefonemas que nos assegurem mutuamente que estamos bem. Não mais haverá telefonemas a combinar almoços ao domingo. Não mais terei a oportunidade de o ver de novo aguardar-me com paciência e bondade como quando eu chegava por sistema atrasado para o ir buscar. Não mais teremos desses almoços em que também não falávamos muito mas éramos muito — devotamente, dedicadamente, afectuosamente — pai e filho. Fica um vazio terrível, maior do que o da falta de palavras (que nunca nos incomodou propriamente): o da ausência.
O cemitério onde o enterrámos anteontem numa urgência que não era nossa, nesta época terrível em que se enterram os mortos como se tivessem lepra, fica ao pé da igreja onde íamos aos domingos antes de almoço, quando ainda cumpríamos a tradição de ir à missa. Mas não é essa igreja que me fica na memória associada ao meu pai. Não é nenhuma igreja, na verdade, mas as manhãs de Inverno como a de anteontem em que optávamos por uma missa mais matutina no outro templo da terra e, regressados a casa, enquanto a minha mãe acendia o fogão a lenha e preparava industrialmente torradas para uma família de nove famintos devoradores de pão, o meu pai liderava um mantra que cantávamos em volta da mesa da cozinha, qual tribo invocando chuva, uma cantilena com letra onomatopaica que marcava o ritmo com que arrastávamos ou batíamos os pés para os aquecer. Era um momento de pura ternura paternal. Sem palavras, claro.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2020
Lamber sabão
Havia quem afirmasse conseguir vender presidentes como quem vende sabonetes. Actualmente, a Bertrand vende, sem ironia, uma «colecção exclusiva» de «sabonetes literários». Pelo seu lado, a Gradiva mostra-se hoje ufana com o «Prémio Cinco Estrelas» atribuído a um seu autor por uma entidade dedicada a «testes e estudos de mercado» e que distingue marcas, personalidades e media.
O autor, adivinharam, é José Rodrigues dos Santos, cujos livros foram submetidos a, perdoem-me a longa citação, «um sistema de avaliação que mede o grau de satisfação que os produtos, serviços e as marcas conferem aos seus utilizadores, tendo como critérios de avaliação as cinco principais variáveis que influenciam a decisão de compra dos consumidores: Satisfação pela Experimentação, Relação Preço-qualidade, Intenção de Compra ou Recomendação, Confiança na Marca e Inovação.»
Com toda a legitimidade, perante uma avaliação assim criteriosa, os fãs do autor já se começaram a manifestar afirmando que, se dúvidas houvesse, ali a está prova definitiva da qualidade literária de JRS.
O autor, adivinharam, é José Rodrigues dos Santos, cujos livros foram submetidos a, perdoem-me a longa citação, «um sistema de avaliação que mede o grau de satisfação que os produtos, serviços e as marcas conferem aos seus utilizadores, tendo como critérios de avaliação as cinco principais variáveis que influenciam a decisão de compra dos consumidores: Satisfação pela Experimentação, Relação Preço-qualidade, Intenção de Compra ou Recomendação, Confiança na Marca e Inovação.»
Com toda a legitimidade, perante uma avaliação assim criteriosa, os fãs do autor já se começaram a manifestar afirmando que, se dúvidas houvesse, ali a está prova definitiva da qualidade literária de JRS.
Eis algumas das primeiras reacções (verdadeiras):
— Parabéns! Caro amigo, nada melhor para calar os invejosos que a realidade deste prémio, e o facto de se venderem milhões dos seus livros. A arrogância dos que se julgam "divinos" cega-os.
— Um prémio bem merecido para calar os que só mostram como são pequeninos face ao êxito dos outros. Somos um povo invejoso.
— Merecido um escritor fantástico.
— Bem merecido. Cala a boca a muita gente.
Como se compreende, seria fútil mandar a tropa acima ir lamber sabão, porque, no que diz respeito ao saponáceo ingrediente, estamos já perante assíduos consumidores e verdadeiros gourmets. Presentes, de resto, como se vê, em toda a linha de produção e comercialização do dito.
— Parabéns! Caro amigo, nada melhor para calar os invejosos que a realidade deste prémio, e o facto de se venderem milhões dos seus livros. A arrogância dos que se julgam "divinos" cega-os.
— Um prémio bem merecido para calar os que só mostram como são pequeninos face ao êxito dos outros. Somos um povo invejoso.
— Merecido um escritor fantástico.
— Bem merecido. Cala a boca a muita gente.
Como se compreende, seria fútil mandar a tropa acima ir lamber sabão, porque, no que diz respeito ao saponáceo ingrediente, estamos já perante assíduos consumidores e verdadeiros gourmets. Presentes, de resto, como se vê, em toda a linha de produção e comercialização do dito.
terça-feira, 8 de dezembro de 2020
Se isto é um Omo: o branqueador de Auschwitz
Há duas teorias sobre a suavização do nazismo que o pivot arvorado em escritor José Rodrigues do Santos operou através de uma entrevista e de dois livros. A primeira diz só isso, que o tipo suavizou o nazismo. A segunda diz que ele fez o que faz sempre que tem livros novos: criar uma polémica forte para vender mais livros.
No primeiro caso, JRS é um revisionista histórico, com um programa promovido sabe-se lá se pelo ego (a vaidade de alegadamente ter descoberto coisas que uma geração ou duas de historiadores não descobriram), se por razões ideológicas.
No segundo caso, trata-se apenas de alguém sem escrúpulos, capaz de tudo para vender mais uns livros.
(Há na verdade uma outra hipótese, que é JRS ser apenas tonto e o mundo mediático que o leva nas palmas não ser mais assisado.)
O meu diagnóstico sobre a criatura em estudo, olhando daqui, é que provavelmente se trata de um compósito, um híbrido que além disso tem um olho-que-pisca, o que não deixa de ser um feito da natureza, se não for um upgrade de tamagotchi.
Isto conduz-nos aos seus leitores. Eles deviam saber que, além de mal entretidos (há muita obra capaz de entreter melhor do que as posturas galináceas de JRS), ao comprar-lhe os livros estão a ser vítimas e cúmplices de rodriguinhos, digamos, pouco santos.
Não faço aqui um apelo à censura dos livros de JRS, mas não tenho nada contra o boicote. O pivot deve ter o direito de escrever as baboseiras que quiser (dentro de certos limites constitucionais), mas os leitores devem ter o direito e a decência de o mandar à merda.
No primeiro caso, JRS é um revisionista histórico, com um programa promovido sabe-se lá se pelo ego (a vaidade de alegadamente ter descoberto coisas que uma geração ou duas de historiadores não descobriram), se por razões ideológicas.
No segundo caso, trata-se apenas de alguém sem escrúpulos, capaz de tudo para vender mais uns livros.
(Há na verdade uma outra hipótese, que é JRS ser apenas tonto e o mundo mediático que o leva nas palmas não ser mais assisado.)
O meu diagnóstico sobre a criatura em estudo, olhando daqui, é que provavelmente se trata de um compósito, um híbrido que além disso tem um olho-que-pisca, o que não deixa de ser um feito da natureza, se não for um upgrade de tamagotchi.
Isto conduz-nos aos seus leitores. Eles deviam saber que, além de mal entretidos (há muita obra capaz de entreter melhor do que as posturas galináceas de JRS), ao comprar-lhe os livros estão a ser vítimas e cúmplices de rodriguinhos, digamos, pouco santos.
Não faço aqui um apelo à censura dos livros de JRS, mas não tenho nada contra o boicote. O pivot deve ter o direito de escrever as baboseiras que quiser (dentro de certos limites constitucionais), mas os leitores devem ter o direito e a decência de o mandar à merda.
domingo, 6 de dezembro de 2020
Desbeatificação
A propósito do post anterior, lembrei-me de uma entrevista que fizemos para o Eito Fora a um padre na reforma que tinha fama de grande cultura e sabedoria e o hábito quotidiano de caminhar. Perguntamos-lhe, esperando encontrar um filósofo viandante como Rousseau, Kant, Nietzsche ou Thoreau, se o costume das caminhadas traduzia o seu gosto pela meditação ou pela natureza.
— Não, não. O médico disse-me que tinha de andar. Por causa da próstata, sabe?
— Não, não. O médico disse-me que tinha de andar. Por causa da próstata, sabe?
Just a perfect day
Com o recolher obrigatório, o Governo devia decretar também frio e ameaça credível ou concretizada de chuva para que como hoje só se atrevesse aos caminhos do rio meia dúzia de portadores certificados de diabetes, colesterol ou próstata hipertrofiada — e os melancólicos, que precisam de passear a existência.
Ah, nada melhor do que a humanidade confinada.
Ah, nada melhor do que a humanidade confinada.
sábado, 5 de dezembro de 2020
O fim dos “Manifestos”
Quem me lê sabe que mantive nos últimos anos uma suave mas persistente embirração com os “Manifestos” da LER. Não porque os textinhos fossem mal escritos ou ignorantes (pelo contrário), mas porque denotavam demasiadas vezes uma obsessão ou uma certeza doutrinárias, não raro furiosas, bastante comparáveis às dos fenómenos ou movimentos sociais de cuja crítica se ocupavam.
Depois, havia com frequência uma tal sintonia de sentimentos e forma entre FJV e BVA que me perguntava progressivamente, ao verificar as iniciais que assinavam os textos, quanto desta minha impressão se devia a gralha dos tipógrafos, provocação lúdica dos autores ou resultado de uma escala de serviços cumprida quando conveniente com troca oficiosa de turnos.
Por fim, estava o facto de uma parte dos textinhos — suponho que atribuível a Francisco José Viegas, mas não sei a que ponto foram levados os equívocos ou combinações que referi no parágrafo anterior — ser material requentado do blogue A Origem das Espécies, o que não ficaria mal a uma revista miserável como a Periférica mas lançava um ligeiro opróbrio sobre a LER.
Agora — diz a LER, confirmando uma inconfidência de Bruno Vieira Amaral em comentário ao meu último post da série dedicada ao assunto — os “Manifestos” acabaram: «saúdam e despedem-se».
Não escondo que, apesar do alívio (o médico já não aconselha irritações), me rola uma sincera lágrima pela face.
---
Adenda: Bruno Vieira Amaral, em comentário a este post no Facebook, esclarece: «Não cometi qualquer inconfidência sobre o fim dos manifestos. Aliás, fiquei a saber do fim dos manifestos ao ler o teu blogue, que era o sítio onde me ia mantendo informado sobre as novidades da revista.»
Depois, havia com frequência uma tal sintonia de sentimentos e forma entre FJV e BVA que me perguntava progressivamente, ao verificar as iniciais que assinavam os textos, quanto desta minha impressão se devia a gralha dos tipógrafos, provocação lúdica dos autores ou resultado de uma escala de serviços cumprida quando conveniente com troca oficiosa de turnos.
Por fim, estava o facto de uma parte dos textinhos — suponho que atribuível a Francisco José Viegas, mas não sei a que ponto foram levados os equívocos ou combinações que referi no parágrafo anterior — ser material requentado do blogue A Origem das Espécies, o que não ficaria mal a uma revista miserável como a Periférica mas lançava um ligeiro opróbrio sobre a LER.
Agora — diz a LER, confirmando uma inconfidência de Bruno Vieira Amaral em comentário ao meu último post da série dedicada ao assunto — os “Manifestos” acabaram: «saúdam e despedem-se».
Não escondo que, apesar do alívio (o médico já não aconselha irritações), me rola uma sincera lágrima pela face.
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Adenda: Bruno Vieira Amaral, em comentário a este post no Facebook, esclarece: «Não cometi qualquer inconfidência sobre o fim dos manifestos. Aliás, fiquei a saber do fim dos manifestos ao ler o teu blogue, que era o sítio onde me ia mantendo informado sobre as novidades da revista.»
terça-feira, 1 de dezembro de 2020
O caso do Wallace desaparecido
Li ontem com gosto Um crime da Solidão — Sobre o Suicídio, de Andrew Solomon, mas cheguei ao fim com uma vaga sensação de ter sido enganado, sem ter logo percebido porquê. Ao revisitar a contracapa antes de pousar o livro tive a resposta.
Já tinha lido vários elogios ao autor mas nunca tinha lido nada dele. Há dias encontrei esta obra por acaso na livraria e pensei «é agora». Reforçou o impulso a informação de que o volume reúne «uma série de textos sobre o suicídio, analisado sempre a partir de uma história pessoal ou de um caso concreto: quer do círculo mais íntimo do autor (...); quer de figuras públicas (…), ou até os de celebridades literárias, como David Foster Wallace ou Sylvia Plath.
Ora, a referência ao caso de Wallace (cujas obras aprecio e por cuja biografia tenho curiosidade) é de facto apenas isso, uma referência. Na página 107, lá está, sem dúvida: «A imagem do suicida literário, do escritor cuja servidão ao ofício pode ser consequência ou causa de mais terrível depressão é recorrente; David Foster Wallace é o último elo dessa triste corrente.» E pronto, termina aqui a participação do autor de A Piada Infinita. Mero figurante.
A obra é pequena, não se estaria à espera de ensaios profundos sobre cada um dos casos referidos, mas, bolas, por que trazer o nome deste escritor para a sinopse se o caso dele nem sequer é analisado? Vício de name-dropping? Para compor o ramalhete? Piscadela de olho a leitores como eu?
De resto, o livro é interessante por si, dispensa o alardear forçado de casos famosos. Contudo, e isto já não será culpa da editora, eu apresentá-lo-ia não como um livro «sobre o suicídio» mas como um livro «sobre o suicídio na sua relação com a depressão». Que é o tema em que Solomon é especialista e a que se dedica sobretudo o último texto desta recolha, o maior.
Já tinha lido vários elogios ao autor mas nunca tinha lido nada dele. Há dias encontrei esta obra por acaso na livraria e pensei «é agora». Reforçou o impulso a informação de que o volume reúne «uma série de textos sobre o suicídio, analisado sempre a partir de uma história pessoal ou de um caso concreto: quer do círculo mais íntimo do autor (...); quer de figuras públicas (…), ou até os de celebridades literárias, como David Foster Wallace ou Sylvia Plath.
Ora, a referência ao caso de Wallace (cujas obras aprecio e por cuja biografia tenho curiosidade) é de facto apenas isso, uma referência. Na página 107, lá está, sem dúvida: «A imagem do suicida literário, do escritor cuja servidão ao ofício pode ser consequência ou causa de mais terrível depressão é recorrente; David Foster Wallace é o último elo dessa triste corrente.» E pronto, termina aqui a participação do autor de A Piada Infinita. Mero figurante.
A obra é pequena, não se estaria à espera de ensaios profundos sobre cada um dos casos referidos, mas, bolas, por que trazer o nome deste escritor para a sinopse se o caso dele nem sequer é analisado? Vício de name-dropping? Para compor o ramalhete? Piscadela de olho a leitores como eu?
De resto, o livro é interessante por si, dispensa o alardear forçado de casos famosos. Contudo, e isto já não será culpa da editora, eu apresentá-lo-ia não como um livro «sobre o suicídio» mas como um livro «sobre o suicídio na sua relação com a depressão». Que é o tema em que Solomon é especialista e a que se dedica sobretudo o último texto desta recolha, o maior.
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
As aventuras dos sete: noites de parkour
Quando nos primeiros meses da pandemia gastei longas noites a assistir a partidas de ténis em reposição nos canais de desporto, não hesitei em escrever sobre a experiência. Nas últimas semanas dediquei um número de horas equivalente a ver no computador vídeos de um grupo de parkour e até agora só timidamente aflorei o assunto. Terei achado, à sombra de Foster Wallace, que o ténis é um bom tema para ensaios literários mas o parkour não? Serão os Storror menos nobres do que Federer?
Há algo de adolescente, divertido, irreverente e indomado nos Storror que não há no ténis profissional, por mais joviais e imaginativos que sejam os jogadores. Além disso, há uma exposição ao risco que o ténis nem sequer sugere. O pior que pode acontecer a Federer num jogo é perder uns milhares de euros — os rapazes do parkour, embora igualmente metódicos e conscienciosos no seu treino, arriscam-se com alguma frequência a perder a vida.
Há assim mais adrenalina, suspense e material para pesquisa sócio-antropológica em alguns vídeos de parkour do que numa final à melhor de cinco entre Nadal e Federer. E nem sequer há menos técnica, coreografia ou beleza de movimentos, o esplendor estético não é menor.
Será que o meu interesse nos vídeos são as proezas atléticas e desportivas? O fascínio de ver corpos ágeis e treinados em acrobacias mirabolantes, a superar obstáculos, esforços ou situações limite? Além dos vídeos dos Storror, no início da minha curiosidade espreitei filmagens de outros atletas ou grupos e as proezas, por vezes não menos espantosas, não me mantiveram cativo como a série organizada daqueles sete ingleses. Ali encontrei não apenas façanhas próprias da elite do parkour mas também formas de filmar (e montar as filmagens) que constroem uma narrativa, pequenas histórias. Os vídeos, além dos momentos de parkour propriamente dito, mostram as “personagens” nas deslocações para os locais, em convívio, interagindo com o público, em ensaios, planeamento e processos de decisão que conduzem às suas aventuras (pelo mundo fora), e tudo isto é filmado com certo interesse documental, artístico e cinematográfico. Michael Bay, no filme de acção 6 Undergound, que fui ver na Netflix como extensão das noites de parkour, aproveitou os talentos do grupo não apenas para cenas com duplos, algumas inspiradas em proezas de vídeos específicos dos Storror, mas também para a filmagem de algumas partes segundo as técnicas do grupo, inclusive empregando brevemente alguns dos seus elementos como camaramen ou consultores de movimento de câmara.
Com frequência, os vídeos não são de expedições a territórios e locais onde o parkour se alia ao fascínio e exotismo de paisagens ou skylines urbanas internacionais, mas de treinos em “spots” caseiros, nas cidades ou áreas suburbanas da Inglaterra. O meu interesse não diminui. Uma parte do meu encantamento permanece viva, porque nestes vídeos entre viagens ou entre grandes desafios continuam em cena os caracteres dos sete.
Poderia dizer-se, sem falhar tudo, que aqueles vídeos protagonizados e filmados por pós-adolescentes e divulgados semanalmente despertam a nostalgia de livros de aventuras como Os Cinco e Os Sete ou séries televisivas como Os Pequenos Vagabundos e Verão Azul. No post que anteriormente escrevi sobre este tema, contei que um dos atletas do grupo lia Tarzan, o que é quase uma tautologia e remete como se de propósito para o espírito daquelas aventuras.
Mas como responder a acusações de um certo voyeurismo neste interesse pelas peripécias, diálogos, interacções e exibições dos sete de Horsham se não invocando a defesa de que é um interesse partilhado por milhões de seguidores no Youtube e, no meu caso, matizado por uma alegada e para aqui muito útil vocação literária?
Nos outros canais de Youtube que nos últimos anos dei por mim a seguir (Porta dos Fundos e Walk Off The Earth), o lado humano e social dos intervenientes tornou-se a certa altura tão importante quanto os próprios vídeos com os sketches (no primeiro caso) ou as músicas (no segundo). A consciência deste potencial interesse por parte dos seus seguidores fez com que o Porta dos Fundos tivesse criado canais paralelos com making ofs, erros de gravação, entrevistas e conversas entre os participantes nos vídeos, de um lado e outro da câmara. Os melhores fãs daquela produtora acompanhavam assim não apenas os sketches cómicos semanais mas também um pouco do dia-a-dia daquele grupo de pessoas.
Da mesma forma, os Walk Off The Earth (WOTE) — que me interessaram menos pelas músicas originais que compunham do que pelas versões que faziam de temas de outros artistas, os vídeos engenhosos que encenavam e filmavam e a versatilidade técnica na música e nas filmagens — disponibilizavam também making ofs, conversas e imagens de bastidores que mostravam os seus elementos na intimidade da vida em grupo.
O fenómeno dos reality shows não será alheio a esta ideia generalizada de que as pessoas, para além da sua arte, interessam aos espectadores, e os artistas destes canais, como os concorrentes do Big Brother, ainda que exibindo muito menos da sua intimidade, moldam decerto a personalidade a ser visionada. Por isso, ao mesmo tempo que me forço a acreditar que há nos rapazes do Storror algo de especial, dou por mim às vezes a duvidar metodicamente da permanente joie de vivre, da disciplina, da serenidade, da inocência, da candura, da cordialidade, da gentileza que exibem sempre nos seus vídeos. Tanto mais que pelo menos um deles tem cara e ar de clássico rufia irlandês e os outros exibem a espaços expressões de uma malícia menos infantil.
Se agissem como um gangue, comportamento que na minha ignorância caluniosa inicialmente esperava ver num grupo de parkour, é pouco provável que os seguisse. Tenho os meus momentos de imersão no bas-fond da Internet, contudo, em prejuízo da pesquisa literária mas talvez em benefício do meu cadastro online e da minha sanidade mental, não adopto rotinas quando há violência ou estupidez envolvida.
Nos Storror, como nos membros do Porta dos Fundos e dos WOTE, julgo por vezes apanhar traços de uma geração e de uma nacionalidade, de um grupo ou classe social. Observo a “vida selvagem” online usando a mesma curiosidade literária que me faz escutar as conversas dos outros no café. Mas seria enveredar por eufemismos ou equívocos escusados proclamar que é esse o principal motivo para voltar regularmente aos vídeos. Como aconteceu com o ténis, há também associada a este hábito uma necessidade de alienação, de entretenimento. Com os Storror talvez prossiga afinal o gosto adolescente de viver aventuras por interpostas personagens.
Há algo de adolescente, divertido, irreverente e indomado nos Storror que não há no ténis profissional, por mais joviais e imaginativos que sejam os jogadores. Além disso, há uma exposição ao risco que o ténis nem sequer sugere. O pior que pode acontecer a Federer num jogo é perder uns milhares de euros — os rapazes do parkour, embora igualmente metódicos e conscienciosos no seu treino, arriscam-se com alguma frequência a perder a vida.
Há assim mais adrenalina, suspense e material para pesquisa sócio-antropológica em alguns vídeos de parkour do que numa final à melhor de cinco entre Nadal e Federer. E nem sequer há menos técnica, coreografia ou beleza de movimentos, o esplendor estético não é menor.
Será que o meu interesse nos vídeos são as proezas atléticas e desportivas? O fascínio de ver corpos ágeis e treinados em acrobacias mirabolantes, a superar obstáculos, esforços ou situações limite? Além dos vídeos dos Storror, no início da minha curiosidade espreitei filmagens de outros atletas ou grupos e as proezas, por vezes não menos espantosas, não me mantiveram cativo como a série organizada daqueles sete ingleses. Ali encontrei não apenas façanhas próprias da elite do parkour mas também formas de filmar (e montar as filmagens) que constroem uma narrativa, pequenas histórias. Os vídeos, além dos momentos de parkour propriamente dito, mostram as “personagens” nas deslocações para os locais, em convívio, interagindo com o público, em ensaios, planeamento e processos de decisão que conduzem às suas aventuras (pelo mundo fora), e tudo isto é filmado com certo interesse documental, artístico e cinematográfico. Michael Bay, no filme de acção 6 Undergound, que fui ver na Netflix como extensão das noites de parkour, aproveitou os talentos do grupo não apenas para cenas com duplos, algumas inspiradas em proezas de vídeos específicos dos Storror, mas também para a filmagem de algumas partes segundo as técnicas do grupo, inclusive empregando brevemente alguns dos seus elementos como camaramen ou consultores de movimento de câmara.
Com frequência, os vídeos não são de expedições a territórios e locais onde o parkour se alia ao fascínio e exotismo de paisagens ou skylines urbanas internacionais, mas de treinos em “spots” caseiros, nas cidades ou áreas suburbanas da Inglaterra. O meu interesse não diminui. Uma parte do meu encantamento permanece viva, porque nestes vídeos entre viagens ou entre grandes desafios continuam em cena os caracteres dos sete.
Poderia dizer-se, sem falhar tudo, que aqueles vídeos protagonizados e filmados por pós-adolescentes e divulgados semanalmente despertam a nostalgia de livros de aventuras como Os Cinco e Os Sete ou séries televisivas como Os Pequenos Vagabundos e Verão Azul. No post que anteriormente escrevi sobre este tema, contei que um dos atletas do grupo lia Tarzan, o que é quase uma tautologia e remete como se de propósito para o espírito daquelas aventuras.
Mas como responder a acusações de um certo voyeurismo neste interesse pelas peripécias, diálogos, interacções e exibições dos sete de Horsham se não invocando a defesa de que é um interesse partilhado por milhões de seguidores no Youtube e, no meu caso, matizado por uma alegada e para aqui muito útil vocação literária?
Nos outros canais de Youtube que nos últimos anos dei por mim a seguir (Porta dos Fundos e Walk Off The Earth), o lado humano e social dos intervenientes tornou-se a certa altura tão importante quanto os próprios vídeos com os sketches (no primeiro caso) ou as músicas (no segundo). A consciência deste potencial interesse por parte dos seus seguidores fez com que o Porta dos Fundos tivesse criado canais paralelos com making ofs, erros de gravação, entrevistas e conversas entre os participantes nos vídeos, de um lado e outro da câmara. Os melhores fãs daquela produtora acompanhavam assim não apenas os sketches cómicos semanais mas também um pouco do dia-a-dia daquele grupo de pessoas.
Da mesma forma, os Walk Off The Earth (WOTE) — que me interessaram menos pelas músicas originais que compunham do que pelas versões que faziam de temas de outros artistas, os vídeos engenhosos que encenavam e filmavam e a versatilidade técnica na música e nas filmagens — disponibilizavam também making ofs, conversas e imagens de bastidores que mostravam os seus elementos na intimidade da vida em grupo.
O fenómeno dos reality shows não será alheio a esta ideia generalizada de que as pessoas, para além da sua arte, interessam aos espectadores, e os artistas destes canais, como os concorrentes do Big Brother, ainda que exibindo muito menos da sua intimidade, moldam decerto a personalidade a ser visionada. Por isso, ao mesmo tempo que me forço a acreditar que há nos rapazes do Storror algo de especial, dou por mim às vezes a duvidar metodicamente da permanente joie de vivre, da disciplina, da serenidade, da inocência, da candura, da cordialidade, da gentileza que exibem sempre nos seus vídeos. Tanto mais que pelo menos um deles tem cara e ar de clássico rufia irlandês e os outros exibem a espaços expressões de uma malícia menos infantil.
Se agissem como um gangue, comportamento que na minha ignorância caluniosa inicialmente esperava ver num grupo de parkour, é pouco provável que os seguisse. Tenho os meus momentos de imersão no bas-fond da Internet, contudo, em prejuízo da pesquisa literária mas talvez em benefício do meu cadastro online e da minha sanidade mental, não adopto rotinas quando há violência ou estupidez envolvida.
Nos Storror, como nos membros do Porta dos Fundos e dos WOTE, julgo por vezes apanhar traços de uma geração e de uma nacionalidade, de um grupo ou classe social. Observo a “vida selvagem” online usando a mesma curiosidade literária que me faz escutar as conversas dos outros no café. Mas seria enveredar por eufemismos ou equívocos escusados proclamar que é esse o principal motivo para voltar regularmente aos vídeos. Como aconteceu com o ténis, há também associada a este hábito uma necessidade de alienação, de entretenimento. Com os Storror talvez prossiga afinal o gosto adolescente de viver aventuras por interpostas personagens.
O que é certo é que por vezes já não sei se nestas incursões pelo Youtube estou a desempenhar a minha função ambiciosa no observatório da humanidade se a acompanhar com periodicidade regular um grupo de personagens de ficção. Recordo no entanto que, quando a 31 de Dezembro de 2018 soube que o Beard Guy, um dos músicos/personagens dos WOTE, tinha morrido subitamente, experimentei uma comoção genuína.
Os Contos Esquivos
Lamentar não ter mais páginas o volume de Os Contos Esquivos (sessenta) poderia parecer uma observação espirituosa de alguém que pretende elogiar o livro, mas é na verdade uma petulância, porque a escrita superior de Ivone Mendes da Silva é muito generosa no que oferece — e perante literatura assim o leitor não tem mais do que ficar grato e humilde.
Mudança de velocidade
Depois de largar o Proust, que acompanhei em viagem de sete meses, um por volume, passei para a escrita estonteante, de velocidade e assombro, d’Os Dias do Abandono (Elena Ferrante). Foi como baixar da sege com vagares de dandy e continuar viagem colado ao assento em comboio de altíssima velocidade. Isto não é um juízo sobre literatura ou a manifestação de uma preferência, mas o relato de acontecimentos factuais. Aliás, o meu espírito consegue dobrar-se em vénia perante catedrais como a de Marcel e tratados de anatomia como os de Ferrante. São muitas as formas da comoção estética.
domingo, 29 de novembro de 2020
Pela verdade
Esta pandemia foi criada para reintroduzir o hábito retrógrado e o gosto vicioso da leitura, mas a humanidade resistirá!
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
Uma ida à varanda
Depois de cada jantar vou sacudir ritualmente a toalha de mesa à varanda da cozinha, a que tem vistas para a serra, e recebo como um benigno balde de água na cara, se tal é crível, odores de Outono: de neblina, de folhas caídas no chão molhado, de inesperadas lareiras vicinais lá em baixo. Demoro-me por ali um pouco a encher o peito de ar e por instantes o cocktail de aromas tem efeitos de gatilho proustiano, mas não se chegam a formar memórias, verdadeiras ou forjadas, de aldeias e idades felizes, porque outro sentimento se instala, com um suspiro. É que a ida à varanda é a entrada na antecâmara de uma felicidade possível e presente, a que resultaria de aceitar o convite, que por fraqueza declino, e acto contínuo me pôr a calçar umas botas, enfiar um anoraque e partir para a serra ou o que mais próximo disso tenho por aqui.
Não me demove desse impulso de libertação e prazer prometido o recolher obrigatório (saberia contorná-lo), nem afazeres nenhuns (todos adiáveis ou nem sequer dignos de atenção, fosse eu fiel a mim mesmo), mas o comodismo, a preguiça, a pusilanimidade.
Recolho ao interior com o rabo entre as pernas, agora sim proustiano de últimos dias, espírito enfezado, a evocar melancolicamente o tempo não muito antigo em que tinha o apelo da natureza como o primeiro dos mandamentos a obedecer.
Mas regresso madrugada dentro à varanda, já não para me ciliciar masoquista com o cheiro do fruto apetecido, ou como vítima de sádico que deixa fora do alcance de um cão acorrentado um osso recém-despido de carne, mas para acudir a outro chamado, o das corujas na sua hora. E então, a ouvi-las falar por sobre a cidade adormecida, soberanas da noite, procurando geolocalizar mentalmente o poiso de cada uma delas ou imaginar os seus voos se os pressinto, esqueço que estou recolhido sem causa e já não sinto nenhum estado de emergência.
Não me demove desse impulso de libertação e prazer prometido o recolher obrigatório (saberia contorná-lo), nem afazeres nenhuns (todos adiáveis ou nem sequer dignos de atenção, fosse eu fiel a mim mesmo), mas o comodismo, a preguiça, a pusilanimidade.
Recolho ao interior com o rabo entre as pernas, agora sim proustiano de últimos dias, espírito enfezado, a evocar melancolicamente o tempo não muito antigo em que tinha o apelo da natureza como o primeiro dos mandamentos a obedecer.
Mas regresso madrugada dentro à varanda, já não para me ciliciar masoquista com o cheiro do fruto apetecido, ou como vítima de sádico que deixa fora do alcance de um cão acorrentado um osso recém-despido de carne, mas para acudir a outro chamado, o das corujas na sua hora. E então, a ouvi-las falar por sobre a cidade adormecida, soberanas da noite, procurando geolocalizar mentalmente o poiso de cada uma delas ou imaginar os seus voos se os pressinto, esqueço que estou recolhido sem causa e já não sinto nenhum estado de emergência.
Os duros não dançam?
Uma das classificações habitualmente usadas para denegrir quem é acusado de praticar ou defender ideias «politicamente correctas» é a de que se trata de pessoas em demasia susceptíveis. Mas hoje a susceptibilidade estava toda do lado dos «duros», indignados com a sugestão — indelicada, pois claro — de que Maradona não tinha mão leve apenas para a bola.
domingo, 22 de novembro de 2020
The last days
Um artigo do The Guardian, que faz o relato do que se passa na Casa Branca e inclui uma súmula de como isso é comentado por vários observadores, sugere uma outra metáfora para os últimos dias de Trump. E admira-me por isso ainda não ter visto adaptada ao ex-presidente americano a famosa cena do filme A Queda que tantas apropriações teve por esta Internet fora para as situações mais hilárias ou absurdas.
O curioso é que na verdade este relato não traz nada de novo: toda a presidência de Trump, como de resto se esperava, foi esta distopia nem em sonhos imaginada de uma América a ter por presidente um fedelho mimado, caprichoso e imbecil. Até o pequeno rei-sol da Coreia do Norte parece adulto ao lado de Trump e dos milhões que, nos EUA e no mundo, vão tentando manter viva a farsa de que a América teve não apenas um presidente mas um adulto na Casa Branca nos últimos quatro anos.
O curioso é que na verdade este relato não traz nada de novo: toda a presidência de Trump, como de resto se esperava, foi esta distopia nem em sonhos imaginada de uma América a ter por presidente um fedelho mimado, caprichoso e imbecil. Até o pequeno rei-sol da Coreia do Norte parece adulto ao lado de Trump e dos milhões que, nos EUA e no mundo, vão tentando manter viva a farsa de que a América teve não apenas um presidente mas um adulto na Casa Branca nos últimos quatro anos.
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quinta-feira, 19 de novembro de 2020
domingo, 15 de novembro de 2020
Gestão de danos
O Ace Ventura, ar de tonto mas fino como um alho, veio, com descarado sentido de oportunidade e desprezo pela inteligência alheia (começando pela dos militantes do seu partido), manifestar-se, contradizendo-se, a favor do casamento gay e contra Salazar. Faz-se assim voluntariamente de pateta para aliviar o PSD dos impactos negativos do arranjinho mútuo.
Muitos cairão no isco, apontando o seu contorcionismo ideológico como demonstração de que o fascismo nele é folclore e mero oportunismo eleitoral. Mas talvez devessem ceder a um raciocínio mais humilde: o homem não tem escrúpulos nem carácter — características indispensáveis não apenas a um democrata mas a alguém que se convida para casa.
Muitos cairão no isco, apontando o seu contorcionismo ideológico como demonstração de que o fascismo nele é folclore e mero oportunismo eleitoral. Mas talvez devessem ceder a um raciocínio mais humilde: o homem não tem escrúpulos nem carácter — características indispensáveis não apenas a um democrata mas a alguém que se convida para casa.
#ACulturaÉSegura
Nas livrarias, o risco de apanhar covid folheando livros é irrelevante, excepto nas prateleiras do top e dos destaques, onde raramente há literatura.
Trepa no Coqueiro
Dos sucessos popularizados pela mesma cantora, Carmélia Alves, o primo Fernando cantava também, numa versão mais quente do que a de Amália, Trepa no Coqueiro, uma música gingona, sensual, que lhe servia na perfeição para sublimar a sua faceta de intérprete divertido, brincalhão, irónico, irreverente, provocador, sedutor. Estou certo que ele escolhia as músicas que cantava sobretudo pela sua plasticidade, pela forma como permitiam trejeitos vocais, inflexões e falsetes. Ou talvez não precisasse de as escolher: as canções no seu cavaquinho e na sua voz ganhavam naturalmente essa tessitura voluptuosa, insinuante, «tropical» — ele era suficiente músico e artista para as submeter a andamentos pessoais e a pausas de efeito, momentos de sustinência de uma nota em falsete, vibrada, ou com trinados e requebros tiroleses. E era também genuína e suficientemente boémio para que todo o seu repertório fosse dedicado a uma marcante joie de vivre, mesmo quando as letras tratavam de tropeções na vida.
Quando o bairro já tinha soçobrado e a sua geração migrado geográfica ou metaforicamente, ele continuava na sua missão de bardo, agora ao acordeão, em horas de estudo solitário ou de rememoração igualmente solitária, que se ouviam na rua, como em certas cidades se ouvem intemporalmente os sinos característicos de uma catedral. Faltava contudo a sua voz, até mais do que o cavaquinho: nenhum acordeão podia imitar-lhe o canto. E o canto, se se ouvisse nos últimos anos, seria já o do cisne — pelo fim de uma época de ouro, que ele prolongou pelo menos até ao fim do século, quando até num bairro como o nosso, atávico de muitas formas, era possível, muito por mão dele, experimentar o glamour hollywoodiano dos anos cinquenta.
Quando o bairro já tinha soçobrado e a sua geração migrado geográfica ou metaforicamente, ele continuava na sua missão de bardo, agora ao acordeão, em horas de estudo solitário ou de rememoração igualmente solitária, que se ouviam na rua, como em certas cidades se ouvem intemporalmente os sinos característicos de uma catedral. Faltava contudo a sua voz, até mais do que o cavaquinho: nenhum acordeão podia imitar-lhe o canto. E o canto, se se ouvisse nos últimos anos, seria já o do cisne — pelo fim de uma época de ouro, que ele prolongou pelo menos até ao fim do século, quando até num bairro como o nosso, atávico de muitas formas, era possível, muito por mão dele, experimentar o glamour hollywoodiano dos anos cinquenta.
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Trepa no Coqueiro: https://youtu.be/Dx60vsBOzZs
sábado, 14 de novembro de 2020
Sabiá na Gaiola
Certas recordações da infância chegam-me associadas de forma misteriosa a um lugar ou a uma acção. Havia uma cançoneta do repertório de êxitos de um primo do meu pai — presença quotidiana ao cavaquinho nas nossas vidas, bardo da tribo, ar e voz de galã dos anos 50 — que para sempre ficou em mim associada a uma ramada alta, que se vindimava com escadas de muitos degraus e equilíbrio frágil. É sempre essa ramada outonal que vejo quando evoco a canção, projectando mentalmente uma espécie de video-clip privado de uma era pré-Youtube. Não me recordo de alguma vez o primo Fernando ter tocado e cantado aquela canção naquele lugar, pelo que talvez tenha sido eu a cantá-la ali enquanto apanhava bagos do chão numa vindima em que também terei decifrado pela primeira vez o sentido de algum verso ou, mais provavelmente, percebido que amava de forma irremediável a melancolia ou a tristeza sob a toada alegre e juvenil da música.
A canção chama-se Sabiá na Gaiola e só agora — demasiado tarde para a formação do meu carácter — descobri que a letra tem um final redentor.
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Se alguém quiser ouvir a música: https://youtu.be/4jw88UfVsKA
A canção chama-se Sabiá na Gaiola e só agora — demasiado tarde para a formação do meu carácter — descobri que a letra tem um final redentor.
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Se alguém quiser ouvir a música: https://youtu.be/4jw88UfVsKA
Em resumo
Aqueles que se desculpam com o Bloco de Esquerda e o PCP para desvalorizar o acordo do PSD com o Chega estão, na verdade, a confessar, mais ou menos conscientemente, que não os incomodam a xenofobia e o fascismo latente. Ponto.
Uma vez que consideram equivalente a normalização do Chega à normalização do BE e do PCP (partidos que acham malévolos), se os preocupassem de facto a democracia e os direitos humanos não os estaríamos a ver desculpar um mal com outro, mas sim a arrepelar cabelos por agora haver três em vez de dois partidos de carácter não democrático. Mas não é isto que lhes ouvimos, pois não? E não é porque alguns deles não tenham aprendido lógica. Ponto final.
Uma vez que consideram equivalente a normalização do Chega à normalização do BE e do PCP (partidos que acham malévolos), se os preocupassem de facto a democracia e os direitos humanos não os estaríamos a ver desculpar um mal com outro, mas sim a arrepelar cabelos por agora haver três em vez de dois partidos de carácter não democrático. Mas não é isto que lhes ouvimos, pois não? E não é porque alguns deles não tenham aprendido lógica. Ponto final.
segunda-feira, 9 de novembro de 2020
Elena Ferrante
Se alguma vez Elena Ferrante foi unânime, deixou de o ser. Já há quem se permita trejeitos faciais e tom enfastiado ao ouvir-lhe o nome, quem anuncie só ter lido o quarto volume d’A Amiga Genial porque lhe encostaram uma pistola à cabeça, quem declare, em suma, não perceber tanto barulho por nada. Algumas destas reacções são impulsionadas pela mesma energia que faz mover os fãs de best-sellers, só que engatando em marcha-atrás, como o diabo perante a cruz. O falatório que atrai o voyeurismo inconsequente de uns convoca a snobeira de outros. E tudo isto é previsível e kitsch e um abuso escusado de combustíveis fósseis.
domingo, 8 de novembro de 2020
Abóboras
Entretanto, temos já nas redes sociais «notícias» sobre um Joe Biden «pedófilo» e uma Kamala Harris «neoliberal» e cruel. E não se trata de desinformação oriunda de ignotos regimentos trumpistas (para quem, de resto, isto são virtudes ou pecadilhos) onde ainda não chegou a má-nova do fim da guerra, mas de alertas emitidos por almas boas que, surpreendidas pela possibilidade inesperada de não terem sido eleitos Anjos e Fadas nos EUA, encontram no bas-fond da Internet, por contraste, o seu banho de «realidade».
Entretanto em Portugal
(Ok, isto merece um post próprio.)
Jaime Nogueira Pinto almoçou com ontem com o Ace Ventura e este, aparentando como de costume um ar de tonto mas com evidente cálculo político, logo publicou uma selfie celebratória no Twitter. Pelo seu lado, o veterano das direitas, digamos, extremas também foi lesto a mandá-lo apagá-la, afirmando assim o seu ascendente e porque de momento prefere ser uma eminência parda.
A Visão disseminou a foto e a notícia e isso, suspeito, foi do agrado de ambos, repreendido e repreendedor.
(Quem ainda não percebeu o filme, pesquise: “Jaime Nogueira Pinto”.)
Jaime Nogueira Pinto almoçou com ontem com o Ace Ventura e este, aparentando como de costume um ar de tonto mas com evidente cálculo político, logo publicou uma selfie celebratória no Twitter. Pelo seu lado, o veterano das direitas, digamos, extremas também foi lesto a mandá-lo apagá-la, afirmando assim o seu ascendente e porque de momento prefere ser uma eminência parda.
A Visão disseminou a foto e a notícia e isso, suspeito, foi do agrado de ambos, repreendido e repreendedor.
(Quem ainda não percebeu o filme, pesquise: “Jaime Nogueira Pinto”.)
sexta-feira, 6 de novembro de 2020
Bustos
A propósito das eleições americanas, as televisões portuguesas foram buscar como comentadores algumas figuras antigas como Jaime Nogueira Pinto (que, se não estou em erro vi em duas delas, ubíquo) e Vasco Rato. Não sei se os convidaram para mostrarem como é inclusiva a democracia em Portugal, se por acharem que precisavam de comentadores associáveis ideologicamente ao ogre, para um pendant em directo com bustos da mesma era geológica de Trump.
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Nota 1: Sem novidade, ambos os bustos declararam mui prestamente que votariam em Trump, se lhes fosse dada a honrosa oportunidade.
Nota 2: Jaime Nogueira Pinto foi hoje fugazmente visto numa foto a almoçar com o Ace Ventura. Mas este logo apagou a selfie do Twitter, a mando do veterano, que prefere decerto ser eminência parda.
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Nota 1: Sem novidade, ambos os bustos declararam mui prestamente que votariam em Trump, se lhes fosse dada a honrosa oportunidade.
Nota 2: Jaime Nogueira Pinto foi hoje fugazmente visto numa foto a almoçar com o Ace Ventura. Mas este logo apagou a selfie do Twitter, a mando do veterano, que prefere decerto ser eminência parda.
Restaurando a pintura
Enquanto o PSD vai ajudando a incubar os ovos da serpente, por aqui há quem sabe o que deve ser feito (com três pinceladas apenas).
(clique para aumentar)
quinta-feira, 5 de novembro de 2020
«O arraial está bom de mais»
O meu percurso habitual para o trabalho, uns dez minutos a atravessar a pé o parque florestal, teve hoje a banda sonora de um baile perdido no tempo. De início ininteligível, a música foi ganhando contornos e versos («há festa na aldeia / o arraial está bom de mais») à medida que se encurtava a distância que me separava da fonte, um tipo caminhando adiante com um passo ligeiramente mais curto.
A aproximação foi penosa, como se me dirigisse por absurda vontade própria a uma danceteria das que nos anos noventa começaram a surgir com música pimba. Na ultrapassagem optei por uma precavida trajectória ao largo, temendo que passar junto ao altifalante tivesse o mesmo impacto no músculo cardíaco e nos ossos que passar em frente aos subwoofers de um PA quando não se vê outro atalho para chegar ao bar. Exagerei na parábola, claro, o aparelhito portátil que o sujeito levava a confortar-lhe o ouvido e a alma tinha um sopro moderado, mesmo que os médios e agudos se ouvissem numa légua em redor.
A fase do afastamento, talvez devido às modulações introduzidas pelo vento que se levantou ou porque a distância voltava a aumentar e a percepção dos versos a diminuir na proporção inversa, foi menos rebarbativa e tornou-se até evocatória de uma outra forma. Já não era o pesadelo de uma danceteria a assomar do meio das árvores mas a memória vaga e melhorada de um verdadeiro arraial de aldeia a insinuar-se por sobre as colinas. A memória de quando a idade era suficiente (isto é, pouca) para se suspenderem juízos estéticos em troca das vãs promessas que um arraial continha e que, como os sub-graves, faziam tremer ossos e coração.
A aproximação foi penosa, como se me dirigisse por absurda vontade própria a uma danceteria das que nos anos noventa começaram a surgir com música pimba. Na ultrapassagem optei por uma precavida trajectória ao largo, temendo que passar junto ao altifalante tivesse o mesmo impacto no músculo cardíaco e nos ossos que passar em frente aos subwoofers de um PA quando não se vê outro atalho para chegar ao bar. Exagerei na parábola, claro, o aparelhito portátil que o sujeito levava a confortar-lhe o ouvido e a alma tinha um sopro moderado, mesmo que os médios e agudos se ouvissem numa légua em redor.
A fase do afastamento, talvez devido às modulações introduzidas pelo vento que se levantou ou porque a distância voltava a aumentar e a percepção dos versos a diminuir na proporção inversa, foi menos rebarbativa e tornou-se até evocatória de uma outra forma. Já não era o pesadelo de uma danceteria a assomar do meio das árvores mas a memória vaga e melhorada de um verdadeiro arraial de aldeia a insinuar-se por sobre as colinas. A memória de quando a idade era suficiente (isto é, pouca) para se suspenderem juízos estéticos em troca das vãs promessas que um arraial continha e que, como os sub-graves, faziam tremer ossos e coração.
quarta-feira, 4 de novembro de 2020
A democracia na América
Há mais de trinta anos, adolescente criado em ambiente tribal «social-democrata», discutia com um amigo (cuja família era simpatizante do PCP) a superioridade da América em relação à Rússia. Anos depois, vivendo e lendo jornais, encontrámo-nos (não a meio do caminho, ele teve de caminhar mais) num ponto de confluência e partilha de ideais. Acho por isso burlesco que tanta gente adulta se mantenha ainda na conversa imberbe de atacar ou defender a superioridade da democracia na América. Como se, sobretudo nas eleições da era Trump, o ponto fosse esse.
terça-feira, 3 de novembro de 2020
The lord of the apes
A minha fé na humanidade aumenta quando vejo um membro dos Storror a ler um livro num dos extraordinários vídeos (ou vlogs) daquele grupo de parkour. Curioso, comovido e condescendente, vou navegando pelo vídeo na expectativa de que o livro volte a aparecer e revele os surpreendentes interesses literários do atleta. Quase no final, vê-se a capa — e o título não podia ser em simultâneo mais decepcionante, previsível e divertidamente adequado: Tarzan.
domingo, 1 de novembro de 2020
Marcel
Uma das coisas que me intrigam na obra Em Busca do Tempo Perdido é a importância que o narrador, enquanto personagem, tem para as outras personagens, mesmo quando não se vislumbram particulares razões para isso. Se bem recordo, Marcel (auto-designado deste modo, como que arbitrariamente, uma única vez até perto do final) não pertence à aristocracia, mas a sua família é ainda assim tida em boa conta na «sociedade», que rejeita mais facilmente do que acolhe. Pessoa afável, inteligente, culta, escritor em potência, Marcel é crescentemente convidado para todos os chás e saraus, para quase todos os eventos sociais relevantes, para integrar grupos selectos, mas as atenções que desperta, a marca indelével que deixa nos outros é mais forte do que a que deixaria alguém apenas sociável ou medianamente popular. Como se Marcel tivesse um carisma nunca referido, mas visível nos outros como num espelho.
A meio do último volume, quando o narrador reencontra um Barão de Charlus muito envelhecido e debilitado após ter sofrido um ataque, o Barão aponta uma coluna de publicidade com um cartaz semelhante àquele junto ao qual Charlus estava da primeira vez que ele e Marcel se encontraram. É certo que o «invertido» Barão, que se pusera ali para o engate, chegou a sentir-se atraído por Marcel, mas ele sentiu-se (e sente-se) atraído por todos os rapazinhos com bom ar, e não é credível que se lembrasse, décadas depois, de tais pormenores sobre as circunstâncias em que encontrou cada um deles, ou sequer aqueles com quem conviveu mais tempo.
A cena, que não é a de dois antigos apaixonados a evocarem o primeiro beijo ou o primeiro olhar, é relatada para evidenciar como está intacta, além da inteligência, a memória do Barão, mas parece escrita para fazer notar também como era super-humana a sua atenção aos detalhes. Parece uma inverosimilhança.
Li algures que Proust divide a vida e o carácter do narrador por várias personagens do romance, como Charles Swann e o Barão de Charlus. Isso explicaria que do primeiro encontro entre Charlus e Marcel — o adulto snob e indiferente aos que o rodeiam e o adolescente curioso, com ambição literária e com uma faceta idólatra — não fosse apenas este a recordar-se do cartaz na coluna de publicidade.
A meio do último volume, quando o narrador reencontra um Barão de Charlus muito envelhecido e debilitado após ter sofrido um ataque, o Barão aponta uma coluna de publicidade com um cartaz semelhante àquele junto ao qual Charlus estava da primeira vez que ele e Marcel se encontraram. É certo que o «invertido» Barão, que se pusera ali para o engate, chegou a sentir-se atraído por Marcel, mas ele sentiu-se (e sente-se) atraído por todos os rapazinhos com bom ar, e não é credível que se lembrasse, décadas depois, de tais pormenores sobre as circunstâncias em que encontrou cada um deles, ou sequer aqueles com quem conviveu mais tempo.
A cena, que não é a de dois antigos apaixonados a evocarem o primeiro beijo ou o primeiro olhar, é relatada para evidenciar como está intacta, além da inteligência, a memória do Barão, mas parece escrita para fazer notar também como era super-humana a sua atenção aos detalhes. Parece uma inverosimilhança.
Li algures que Proust divide a vida e o carácter do narrador por várias personagens do romance, como Charles Swann e o Barão de Charlus. Isso explicaria que do primeiro encontro entre Charlus e Marcel — o adulto snob e indiferente aos que o rodeiam e o adolescente curioso, com ambição literária e com uma faceta idólatra — não fosse apenas este a recordar-se do cartaz na coluna de publicidade.
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
A última capa da Recherche
A pouco mais de um terço do sétimo volume da Recherche deu-me para questionar a imagem da capa. Sem pensar muito no assunto, tinha achado as capas dos volumes anteriores bonitas e adequadas, com as suas reproduções de pinturas oitocentistas como ilustrações dos livros. Agora que uma boa parte do faubourg Saint Germain frequenta em plena Primeira Grande Guerra um hotel transformado em casa de prazeres homossexuais e sadomasoquistas, com pregos na ponta do chicote e peles esfaceladas e padres devassos e tudo, pensei que a escolha de uma imagem de um sarau elegante e decoroso foi afinal, não necessariamente de uma cumplicidade metaliterária com a hipocrisia do faubourg, mas talvez um pouquinho fofa demais.
A imagem, ao contrário das seis anteriores, apresenta-se monocromática, sépia, mas desconfio que isso se deve mais à tentativa de representar impressivamente a guerra e o fim de um tempo do que de indiciar o deboche. Percebo o interesse de evitar uma capa spoiler, só que em contrapartida a editora perdeu a oportunidade de captar nas prateleiras algum do leitorado fetiche das sombras de Grey.
P.S.: É incrível, e ao mesmo tempo gratificante, que tenha lido nesta idade tardia a obra de Proust não sabendo a priori mais do seu conteúdo do que a história mal contada da madalena. É certo que ameacei de porrada, década após década, todos os amigos e conhecidos que, leitores aviados da coisa, se pelavam por partilhar o enredo, e isso há-de ter tido o seu efeito dissuasor (mas só porque nenhum dos meus amigos era o barão de Charlus…).
P.S.2: A partir de certa altura, quando dizia que estava a guardar a Recherche para quando tivesse mais tempo, confesso que já nem eu acreditava muito nisso. Há uns anos, comprei esta edição da Relógio d’Água e senti-me, mais do que esbanjador, com os remorsos de um frugalista a comprar bibelôs. Anunciei que era para a reforma, acreditando tanto nesse projecto como em que chegava à reforma. E, no entanto, aqui estou eu, não com a reforma, mas avançado no último volume — e desejando altruisticamente terminar depressa a leitura porque a comecei com a pandemia e sabe-se lá se as duas coisas não estão ligadas.
domingo, 25 de outubro de 2020
Joaquim Agostinho
Cresci a ouvir falar de Joaquim Agostinho. O meu pai e os meus tios, como a maioria dos portugueses homens, eram apreciadores de desportos e misturavam nisso um pouquinho de fervor patriótico à maneira do Estado Novo, que a minha geração aligeirou mas hoje torna a assumir aqui e ali cores pesadas.
Na altura, o futebol não tinha o poder avassalador e esterilizador que hoje tem na sociedade. Outros desportos eram seguidos com atenção regular e o ciclismo era mais um deles. Enquanto criança e adolescente, fui por inerência fã de ciclismo e gostava dele sobretudo quando a caravana passava na minha terra atirando pelas janelas dos carros de apoio chapéus de papel, bonés, crachás e outros itens do que hoje se chamaria merchandising, uma dádiva a que não estávamos habituados. A passagem do circo da Volta era mais uma festa no calendário e, oh, se não apreciávamos festas.
A morte acidental e precoce de Joaquim Agostinho foi vivida e revivida em casa como uma tragédia tribal, familiar. Durante décadas, até há poucos anos, as quase vitórias de Agostinho, os seus lugares nos tops 10 ou 5 da Vuelta e do Tour (na altura era tudo apenas voltas aos respectivos países, algo que o patriotismo poliglota de hoje descura), os seus sucessos pessoais eram integrados na gesta lusa e narrados lá em casa, à luz do fogão a lenha ou sob a ramada de uvas morangueiras, como em Esparta se contava a Batalha das Termópilas ou nas estepes da Idade do Gelo se lembravam caçadas épicas a mamutes.
Depois de a pandemia me ter feito seguidor de ténis, nas últimas três semanas andei atento ao Giro de Itália, beneficiando da suave adrenalina que me chegou ao sofá à custa das pernas violentadas de João Almeida e Ruben Guerreiro. Não desfraldei uma bandeira na varanda nem fiz pinturas de guerra verde-rubras, mas perguntei-me se daqui a trinta anos um hipotético filho meu teria de João Almeida, no caso de eu lhe repetir ritualmente a saga italiana, uma ideia diferente da que tenho de Joaquim Agostinho: um nome que antes de evocar qualquer feito desportivo evoca figuras e tempos familiares.
Na altura, o futebol não tinha o poder avassalador e esterilizador que hoje tem na sociedade. Outros desportos eram seguidos com atenção regular e o ciclismo era mais um deles. Enquanto criança e adolescente, fui por inerência fã de ciclismo e gostava dele sobretudo quando a caravana passava na minha terra atirando pelas janelas dos carros de apoio chapéus de papel, bonés, crachás e outros itens do que hoje se chamaria merchandising, uma dádiva a que não estávamos habituados. A passagem do circo da Volta era mais uma festa no calendário e, oh, se não apreciávamos festas.
A morte acidental e precoce de Joaquim Agostinho foi vivida e revivida em casa como uma tragédia tribal, familiar. Durante décadas, até há poucos anos, as quase vitórias de Agostinho, os seus lugares nos tops 10 ou 5 da Vuelta e do Tour (na altura era tudo apenas voltas aos respectivos países, algo que o patriotismo poliglota de hoje descura), os seus sucessos pessoais eram integrados na gesta lusa e narrados lá em casa, à luz do fogão a lenha ou sob a ramada de uvas morangueiras, como em Esparta se contava a Batalha das Termópilas ou nas estepes da Idade do Gelo se lembravam caçadas épicas a mamutes.
Depois de a pandemia me ter feito seguidor de ténis, nas últimas três semanas andei atento ao Giro de Itália, beneficiando da suave adrenalina que me chegou ao sofá à custa das pernas violentadas de João Almeida e Ruben Guerreiro. Não desfraldei uma bandeira na varanda nem fiz pinturas de guerra verde-rubras, mas perguntei-me se daqui a trinta anos um hipotético filho meu teria de João Almeida, no caso de eu lhe repetir ritualmente a saga italiana, uma ideia diferente da que tenho de Joaquim Agostinho: um nome que antes de evocar qualquer feito desportivo evoca figuras e tempos familiares.
Hop off
Enquanto passo por um grupo de teenagers clandestinos num drink de final de tarde e sou por momentos sequestrado por uma nuvem de hip hop com rimas geradas pelo algoritmo da Empresa na Hora, tenho um pensamento típico de adulto antigo e pergunto-me onde irá parar o gosto musical desta juventude. A cena poderia ter ocorrido com adultos da minha idade a ouvir música de adolescentes da idade deles em qualquer década do século XX e até aos dias de hoje, mas, talvez também muito tipicamente, senti que desta vez é que era verdade, agora é que o gosto degenerara mesmo.
A música para crianças exaspera; suponho que é preciso ser pai delas para a ouvir deliciadamente, ou pelo menos suportá-la, ou disfarçar o melhor que se pode. A música de adolescentes é, pelo seu lado, frequentemente banda sonora de órfãos: nenhum pai com sensibilidade estética está disposto a assumir a paternidade de criaturas com tão mau uso de orelhas. Os adolescentes são indivíduos dependentes mas anseiam desesperadamente por autonomia, por romper as teias familiares, e talvez por isso a sua jukebox, instrumental na sublevação, se esforce por ser áspera a ouvidos adultos. Com este hip hop de rimas bacocas e samplers pirosos a sensação que fica é que de um modo geral se esforça pouco, embora consiga muito.
A música para crianças exaspera; suponho que é preciso ser pai delas para a ouvir deliciadamente, ou pelo menos suportá-la, ou disfarçar o melhor que se pode. A música de adolescentes é, pelo seu lado, frequentemente banda sonora de órfãos: nenhum pai com sensibilidade estética está disposto a assumir a paternidade de criaturas com tão mau uso de orelhas. Os adolescentes são indivíduos dependentes mas anseiam desesperadamente por autonomia, por romper as teias familiares, e talvez por isso a sua jukebox, instrumental na sublevação, se esforce por ser áspera a ouvidos adultos. Com este hip hop de rimas bacocas e samplers pirosos a sensação que fica é que de um modo geral se esforça pouco, embora consiga muito.
terça-feira, 20 de outubro de 2020
Pingas
Na casa onde nasci e cresci morava uma família feliz, mesmo se o tecto pingava de Inverno — e pingava sempre. (Não é certo que na altura todos partilhássemos esta opinião de que éramos uma família feliz, mas aos cinquenta encontramos sempre forma de acreditar que sim, quando tudo o que temos de seguro é o passado antigo.) Pingava sobretudo na cozinha, que era o sítio onde mais tempo estávamos, espécie de living room à transmontana mas com uma cobertura mais permeável do que se fosse de telha-vã. Em dias de depressão atmosférica inominada tinha lugar o ritual castrense de dispor a bateria de bacias e alguidares de acordo com as linhas de infiltração e de, a intervalos que variavam com a intensidade da chuva, esvaziar e recolocar os recipientes como na Guerra de 14 se repunham efectivos nas trincheiras: mecanicamente, sem considerações ou estados de espírito.
Vivi sempre com este trauma das infiltrações e a vida foi-me renovando as razões (e as infiltrações) para isso. As pingas perseguem-me, em casa ou no trabalho, década após década. Talvez apenas para me lembrar de que faça o que fizer serei sempre o rapazinho que ficava encolhido entre as pingas a ler à luz das velas. Talvez para me lembrar de que deveria continuar a ser sempre e só o rapazinho que acima de tudo queria ficar a ler entre as pingas à luz das velas.
Vivi sempre com este trauma das infiltrações e a vida foi-me renovando as razões (e as infiltrações) para isso. As pingas perseguem-me, em casa ou no trabalho, década após década. Talvez apenas para me lembrar de que faça o que fizer serei sempre o rapazinho que ficava encolhido entre as pingas a ler à luz das velas. Talvez para me lembrar de que deveria continuar a ser sempre e só o rapazinho que acima de tudo queria ficar a ler entre as pingas à luz das velas.
Last orders
A voz nos altifalantes invoca a legislação e informa os clientes, no mesmo tom com que anuncia promoções na secção de peixes, que esta é a última oportunidade para comprar bebidas alcoólicas. A voz nos altifalantes actua como a campainha num pub inglês em fim de noite e tem a mesma eficácia: a clientela salta vários itens da lista de compras, alguns quiçá taxados com IVA de primeira necessidade, e aglomera-se no corredor dos vinhos e bebidas brancas. Os estudantes universitários, precavidos, já por ali deambulam há algum tempo, a estudar atentamente a relação preço / teor alcoólico.
Se isto continua, talvez os corredores de vinhos dos supermercados venham a precisar de porteiros.
Se isto continua, talvez os corredores de vinhos dos supermercados venham a precisar de porteiros.
sexta-feira, 16 de outubro de 2020
Trump, a «nódoa» de Viegas
Pela mesma voz tonitruante que em tempos ameaçou mandar o fisco «tomar no cu», ouvi hoje chamar nada menos do que «nódoa» a Trump. Muitos pensarão que Francisco José Viegas, o autor do apodo, foi demasiado diplomático, delicado — até fofo —, mas aquilo exigiu-lhe certa coragem, estou em crer.
«Nódoa» parece uma forma benigna de ver o actual presidente dos EUA, mas no contexto do post e do blogue de Viegas, onde ressoa com assiduidade a litania que ajudou a eleger Bolsonaro e a eleger Trump, a palavra surge quase inesperada, quase valente.
Aqui: https://origemdasespecies.blogs.sapo.pt/nodoa-1716777
---------
* O texto foi libertado por estes dias no blogue mas é de Julho.
«Nódoa» parece uma forma benigna de ver o actual presidente dos EUA, mas no contexto do post e do blogue de Viegas, onde ressoa com assiduidade a litania que ajudou a eleger Bolsonaro e a eleger Trump, a palavra surge quase inesperada, quase valente.
Aqui: https://origemdasespecies.blogs.sapo.pt/nodoa-1716777
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* O texto foi libertado por estes dias no blogue mas é de Julho.
segunda-feira, 5 de outubro de 2020
Radio Ga Ga ou as ferramentas futuristas ao serviço da nostalgia nos anos 80
Quando ouvi pela primeira vez, na rádio, a canção «Radio Ga Ga» não pensei que fosse dos Queen e se me apaixonei por ela foi inicialmente pelo lado «futurista» dos arranjos — o que era uma grande ironia, julgo que involuntária, para uma canção que queria homenagear uma rádio em risco de ser ultrapassada pela televisão e o vídeo.
De resto, eu sentia ao ouvir a canção, com um misto de melancolia e excitação, um certo anacronismo, um certo atavismo (não totalmente entendidos), não só pela sugestão da música mas porque ouvia rádio tanto por prazer e necessidade como porque não tinha a alternativa que as tecnologias davam a muita gente em volta: gira-discos, aparelhagens de alta-fidelidade, leitores de cassetes, walkmans. Ouvia a rádio com um sentimento de clandestinidade, não por vergonha de o fazer, mas por vergonha de saber que era a única forma que tinha de ouvir música e, para compensar com fervor heróico um ego ferido, evocando as contingências da guerra, como agente em missão no estrangeiro sem outra maneira de estabelecer contacto com a pátria.
«Video Killed the Radio Star», dos Buggles, evoca o mesmo «problema» de transição da mesma forma irónica, reforçando o argumento de que podemos servir-nos das ferramentas do futuro para matar saudades do passado. A ironia (ou a crueldade) é aliás maior porque o video clip desta música terá sido o primeiro a passar na MTV.
«Echo Beach», que invoco apenas por capricho ou por sugestão de uma linha de baixo, faz um trio estética e sensualmente produtivo com as duas canções anteriores, embora nesta a nostalgia seja apenas a do Verão passado, tornado simbólico.
A nostalgia, a par da melancolia (de que é indissociável), é um estado de espírito tão propício à criação artística que nos servimos do passado, distante ou próximo, apenas como barro para moldar a obra que queremos legar ao futuro. Ou porque reviver o passado em Brideshead é frequentemente a única forma de sermos felizes no presente onde temos residência oficial.
Marcel Proust, se tivesse nascido num bairro operário da Londres dos anos oitenta do século XX, talvez tivesse armado o cabelo (e o bigode) com laca e gravado com sintetizadores uma obra conceptual em sete álbuns sobre os efeitos da passagem do tempo. (Se tivesse nascido no West End, como lhe era mais próprio, talvez tivesse sido apenas um simpatizante dos Iron Maiden. Da Iron Lady, quero dizer.)
De resto, eu sentia ao ouvir a canção, com um misto de melancolia e excitação, um certo anacronismo, um certo atavismo (não totalmente entendidos), não só pela sugestão da música mas porque ouvia rádio tanto por prazer e necessidade como porque não tinha a alternativa que as tecnologias davam a muita gente em volta: gira-discos, aparelhagens de alta-fidelidade, leitores de cassetes, walkmans. Ouvia a rádio com um sentimento de clandestinidade, não por vergonha de o fazer, mas por vergonha de saber que era a única forma que tinha de ouvir música e, para compensar com fervor heróico um ego ferido, evocando as contingências da guerra, como agente em missão no estrangeiro sem outra maneira de estabelecer contacto com a pátria.
«Video Killed the Radio Star», dos Buggles, evoca o mesmo «problema» de transição da mesma forma irónica, reforçando o argumento de que podemos servir-nos das ferramentas do futuro para matar saudades do passado. A ironia (ou a crueldade) é aliás maior porque o video clip desta música terá sido o primeiro a passar na MTV.
«Echo Beach», que invoco apenas por capricho ou por sugestão de uma linha de baixo, faz um trio estética e sensualmente produtivo com as duas canções anteriores, embora nesta a nostalgia seja apenas a do Verão passado, tornado simbólico.
A nostalgia, a par da melancolia (de que é indissociável), é um estado de espírito tão propício à criação artística que nos servimos do passado, distante ou próximo, apenas como barro para moldar a obra que queremos legar ao futuro. Ou porque reviver o passado em Brideshead é frequentemente a única forma de sermos felizes no presente onde temos residência oficial.
Marcel Proust, se tivesse nascido num bairro operário da Londres dos anos oitenta do século XX, talvez tivesse armado o cabelo (e o bigode) com laca e gravado com sintetizadores uma obra conceptual em sete álbuns sobre os efeitos da passagem do tempo. (Se tivesse nascido no West End, como lhe era mais próprio, talvez tivesse sido apenas um simpatizante dos Iron Maiden. Da Iron Lady, quero dizer.)
O tempo baralhado
Acontece-me em certas passagens de Em Busca do Tempo Perdido, em certas frases ou pensamentos que o narrador atribui a título hipotético ou demonstrativo a alguma personagem ou a pensamentos seus, em diálogos que faz consigo mesmo, acontece-me, dizia, aperceber em Proust ecos de Javier Marías. Naturalmente só Marías pode ser eco de Proust e não o contrário, mas, como os li na ordem inversa, é de Marías que me parecem ser tributárias algumas soluções narrativas de Proust.
sexta-feira, 2 de outubro de 2020
Roland Garros ou como nada ficou igual depois da pandemia
Está aí Roland Garros e eu, que para esta rentrée me tinha comprometido com tanta coisa séria, só anelo por ver cada um dos jogos de todas as rondas do torneio de Paris. Têm razão os negacionistas: o confinamento lavou-nos o cérebro, sequestrou-nos o espírito, inventou a procrastinação.
Papel almaço
Num post patrocinado, um «autor» (designação que o próprio acrescenta oficialmente ao nome) ameaça-nos com um novo livro em breve. Uma segunda «obra», informa, «e com ainda mais garantia de qualidade».
Edita, adivinharam, a Chiado – empresa grossista de papel almaço.
A criação do mundo
A criação do mundo por Deus na versão do Antigo Testamento é admirável, mas a versão dos Cadernos de Bernfried Järvi (pp. 61 a 63), onde percebemos que quem criou o mundo foi Pagreus, é muito mais credível.
«Assim foram acabados os céus e a terra. Ao sétimo dia, tendo Pagreus terminado a obra (…), chamou Heike, o empregado do café, e pediu mais uma cerveja.»
«Assim foram acabados os céus e a terra. Ao sétimo dia, tendo Pagreus terminado a obra (…), chamou Heike, o empregado do café, e pediu mais uma cerveja.»
terça-feira, 29 de setembro de 2020
Cadernos de Bernfried Järvi
Rui Manuel Amaral escreveu um livro precioso. Não só porque é uma maravilha literária mas porque se revela de uma utilidade prática, digamos, se gostamos de assentar em cafés com alguma coisa para ler. Menos (mas também) porque tem uma estrutura narrativa propícia a frequentes levantares de olhos para observação da fauna do que porque nos dá toda a atmosfera dos melhores cafés (ou piores tascas) sem que precisemos de levantar os olhos das páginas.
Postas as coisas assim, poderia parecer um livro para preguiçosos, um substituto de experiências e de ficções pessoais a partir de uma ida ao café. Mas vejam a coisa de outro modo: quantos de nós poderíamos fazer alguma coisa de útil com os cafés que nos calham? Os Cadernos de Bernfried Järvi no limite até nos poupam uma saída de casa, porque ao lê-los somos felizes estando ou não no café. Ao lê-los, somos como o gato de Schrödinger da vida nocturna: eventualmente de pantufas, mas sempre vivos, pardos e vadiando.
Postas as coisas assim, poderia parecer um livro para preguiçosos, um substituto de experiências e de ficções pessoais a partir de uma ida ao café. Mas vejam a coisa de outro modo: quantos de nós poderíamos fazer alguma coisa de útil com os cafés que nos calham? Os Cadernos de Bernfried Järvi no limite até nos poupam uma saída de casa, porque ao lê-los somos felizes estando ou não no café. Ao lê-los, somos como o gato de Schrödinger da vida nocturna: eventualmente de pantufas, mas sempre vivos, pardos e vadiando.
O crescimento do partido de Ace Ventura em Estevais de Mogadouro
Não sei se é patético ou deprimente ver um escritor rejubilar com o crescimento do partido de Ace Ventura em Estevais de Mogadouro.
(Talvez não seja ainda rejubilar, mas o wishful thinking de alguém que tendo acendido sucessivas velas a determinados santos espera ver homologado o culto.)
(Talvez não seja ainda rejubilar, mas o wishful thinking de alguém que tendo acendido sucessivas velas a determinados santos espera ver homologado o culto.)
terça-feira, 22 de setembro de 2020
Revisitando o passado, com ou sem aliens
Como parte do meu sólido compromisso com a procrastinação e a frivolidade, estive esta noite a ver a comédia The World’s End. O gatilho e cerne da história é simples: Gary King, um alcoólico de 40 anos que não saiu da adolescência, retoma o contacto com os seus quatro antigos amigos e desafia-os para, décadas depois, completarem a «Golden Mile», uma espécie de «rally das tascas» que faz um percurso por 12 pubs da sua cidade natal e pretende terminar, adequadamente, com uma última cerveja no The World’s End.
O que parecia para o meu incorrigível optimismo uma história de reencontros e revisitação do passado sofre a determinada altura um twist e transforma-se numa comédia de aliens, sem contudo perder a energia central: a obsessão de Gary por completar a Golden Mile. Quando poderíamos achar que as dificuldades do percurso seriam as objecções ou a menor resistência ao álcool dos amigos agora «crescidos» de Gary, eis que toda uma comunidade local já por natureza crítica de tal demanda estroina se revela possuída por seres extraterrestres com a pretensão de civilizar e higienizar a vida na Terra.
No final do filme, como tantas vezes me acontece, pus-me a pensar, não no tempo que perdi a ver aquilo, mas nas oportunidades que o filme perdeu. E talvez não tenha perdido nenhumas, mas eu teria optado, para atenuar o sentimento de culpa de o ter visto e quiçá errando clamorosamente, por um novo twist no final que devolvesse o filme à Terra, mostrando que o pandemónio alienígena tinha sido apenas a forma como a mente ébria de Gary interpretara as dificuldades e os obstáculos com que o seu projecto se tinha deparado. (Quem nunca se embriagou ao ponto de sonhar com extraterrestres puritanos não sabe do que falo. Bem, eu próprio não tenho essa experiência, mas imagino-a facilmente verosímil num epílogo cinematográfico.)
No fundo, para defender perante mim mesmo uma reputação de espectador que nunca tive, desejei que o filme tivesse tomado ares de uma comédia «séria», algo entre Os Amigos de Alex e Os Velhos Diabos. O primeiro título é para muitos o arquétipo em cinema desta ideia literária do confronto com o passado (outros preferirão, naturalmente, o não menos etílico Brideshead Revisited). O segundo título é um livro de Kingsley Amis, pai de Martin Amis.
De repente, todas estas referências e mais algumas explodiram-me na cabeça, numa teia de ligações mais emaranhada do que renda do Minho.
Quando há dez anos escrevi o meu segundo romance (Aranda, assente, precisamente, na ideia assaz original de revisitação do passado a partir do convite que um tipo embriagado faz a um grupo de amigos e amigas da adolescência), alguém me lembrou, justamente, Os Amigos de Alex, que eu, sem ter visto, confundia sobretudo com o programa da Renascença FM. Ora, acontece que tinha escrito o livro aproveitando um estado mental que me fora fornecido por A Viúva Grávida, obra passada em 1970 e vagamente autobiográfica de Martin Amis, anos antes de ler Os Velhos Diabos, onde o pai de Martin, ele mesmo o bebedor que se sabe, encena a sua própria tragicomédia de adultos a revisitarem entre copos a juventude perdida (com mais êxito do que eu: ganhou o Booker).
Talvez para aliviar definitivamente a minha consciência e acrescentar ligações maradas a tudo isto, fiquei a saber, depois de consultar a Wikipedia, que o filme Os Amigos de Alex foi escrito por Lawrence Kasdan, que, surpresa, foi também, não sei se alcoólico, mas co-autor de vários dos episódios antigos e recentes da saga Star Wars. Não há, afinal, nada de estranho ou menos válido no facto de The World’s End ter resolvido ser também um filme de aliens: aparentemente os dois géneros podem conviver com sucesso na cabeça de um mesmo autor.
Neste estado de espírito, fui revisitar o meu (e)ternamente inédito Aranda e perguntei-me se conseguiria alguma vantagem editorial (ou, quem sabe, perante a indústria cinematográfica) enfiando-lhe no elenco um par de aliens. O que acham?
O que parecia para o meu incorrigível optimismo uma história de reencontros e revisitação do passado sofre a determinada altura um twist e transforma-se numa comédia de aliens, sem contudo perder a energia central: a obsessão de Gary por completar a Golden Mile. Quando poderíamos achar que as dificuldades do percurso seriam as objecções ou a menor resistência ao álcool dos amigos agora «crescidos» de Gary, eis que toda uma comunidade local já por natureza crítica de tal demanda estroina se revela possuída por seres extraterrestres com a pretensão de civilizar e higienizar a vida na Terra.
No final do filme, como tantas vezes me acontece, pus-me a pensar, não no tempo que perdi a ver aquilo, mas nas oportunidades que o filme perdeu. E talvez não tenha perdido nenhumas, mas eu teria optado, para atenuar o sentimento de culpa de o ter visto e quiçá errando clamorosamente, por um novo twist no final que devolvesse o filme à Terra, mostrando que o pandemónio alienígena tinha sido apenas a forma como a mente ébria de Gary interpretara as dificuldades e os obstáculos com que o seu projecto se tinha deparado. (Quem nunca se embriagou ao ponto de sonhar com extraterrestres puritanos não sabe do que falo. Bem, eu próprio não tenho essa experiência, mas imagino-a facilmente verosímil num epílogo cinematográfico.)
No fundo, para defender perante mim mesmo uma reputação de espectador que nunca tive, desejei que o filme tivesse tomado ares de uma comédia «séria», algo entre Os Amigos de Alex e Os Velhos Diabos. O primeiro título é para muitos o arquétipo em cinema desta ideia literária do confronto com o passado (outros preferirão, naturalmente, o não menos etílico Brideshead Revisited). O segundo título é um livro de Kingsley Amis, pai de Martin Amis.
De repente, todas estas referências e mais algumas explodiram-me na cabeça, numa teia de ligações mais emaranhada do que renda do Minho.
Quando há dez anos escrevi o meu segundo romance (Aranda, assente, precisamente, na ideia assaz original de revisitação do passado a partir do convite que um tipo embriagado faz a um grupo de amigos e amigas da adolescência), alguém me lembrou, justamente, Os Amigos de Alex, que eu, sem ter visto, confundia sobretudo com o programa da Renascença FM. Ora, acontece que tinha escrito o livro aproveitando um estado mental que me fora fornecido por A Viúva Grávida, obra passada em 1970 e vagamente autobiográfica de Martin Amis, anos antes de ler Os Velhos Diabos, onde o pai de Martin, ele mesmo o bebedor que se sabe, encena a sua própria tragicomédia de adultos a revisitarem entre copos a juventude perdida (com mais êxito do que eu: ganhou o Booker).
Talvez para aliviar definitivamente a minha consciência e acrescentar ligações maradas a tudo isto, fiquei a saber, depois de consultar a Wikipedia, que o filme Os Amigos de Alex foi escrito por Lawrence Kasdan, que, surpresa, foi também, não sei se alcoólico, mas co-autor de vários dos episódios antigos e recentes da saga Star Wars. Não há, afinal, nada de estranho ou menos válido no facto de The World’s End ter resolvido ser também um filme de aliens: aparentemente os dois géneros podem conviver com sucesso na cabeça de um mesmo autor.
Neste estado de espírito, fui revisitar o meu (e)ternamente inédito Aranda e perguntei-me se conseguiria alguma vantagem editorial (ou, quem sabe, perante a indústria cinematográfica) enfiando-lhe no elenco um par de aliens. O que acham?
quinta-feira, 17 de setembro de 2020
Como experimentar na Terra a gravidade da Lua
Por estes dias descobriram hipotética vida em Vénus* e eu descobri como experimentar na Terra a fraca atracção da gravidade lunar. Aconteceu depois de pousar no lobby do hotel uma mochila de vinte quilos e uma mala de quase trinta que carregava por encomenda entre aeroportos e estações. Alijada a carga junto ao sofá de couro gretado da recepção, os passos finais que me separavam do balcão de check-in dei-os aos pulos, entre soalho e candeeiros de tecto, como Armstrong a tirar selfies na Lua em 1969, com igual involuntariedade e a mesma alegria pioneira.
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* Tirando o primeiro episódio da saga Alien, «hipotética vida» é tudo o que temos obtido da exploração espacial até à data.
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* Tirando o primeiro episódio da saga Alien, «hipotética vida» é tudo o que temos obtido da exploração espacial até à data.
terça-feira, 1 de setembro de 2020
Cavalheirismo de última geração
A zaragata juvenil da madrugada tem início quando, no seio de um grupo de pândegos, um tipo começa a bravejar com uma rapariga, insultando-a. Como ela se afasta com duas ou três pessoas mas hesita em ir embora e responde à distância e à letra, o tom dele passa a ser de ameaça e tem lugar então a habitual dança de avanços e recuos, contida por outros elementos do grupo. A certa altura da altercação, talvez querendo mostrar galhardamente que não bate em senhoras mas demasiado irado para deixar passar o caso, o vociferante recorre a uma fórmula indirecta, em que deposita as esperanças simultâneas de se vingar e ser ilibado de falta de cavalheirismo: «Eu fodo-te, pá. Vais levar nesses cornos de duas ou três gajas, podes contar com isso.»
Talvez o amigo que a seguir lhe fez uma placagem tecnicamente perfeita, quando, já livre de peias morais ou cuidados de género, o touro enraivecido resolveu investir a todo o galope contra um dos acompanhantes da sua inimiga — um tipo impávido, silencioso e com ar um pouco efeminado, que ouviu sem se mexer o anúncio «Mas tu vais levar já!» —, talvez esse amigo ágil e moderador lhe tivesse dito que o cavalheiro, ao optar para a sua vingança diferida por um número plural de instrumentos, vulgo interpostas gajas, não se livraria de uma acusação de cobardia, porque a contenda terminou por ali.
Talvez o amigo que a seguir lhe fez uma placagem tecnicamente perfeita, quando, já livre de peias morais ou cuidados de género, o touro enraivecido resolveu investir a todo o galope contra um dos acompanhantes da sua inimiga — um tipo impávido, silencioso e com ar um pouco efeminado, que ouviu sem se mexer o anúncio «Mas tu vais levar já!» —, talvez esse amigo ágil e moderador lhe tivesse dito que o cavalheiro, ao optar para a sua vingança diferida por um número plural de instrumentos, vulgo interpostas gajas, não se livraria de uma acusação de cobardia, porque a contenda terminou por ali.
sábado, 29 de agosto de 2020
Admirável mundo velho
Se o meu mural de Facebook fosse uma amostra do país, seríamos maioritariamente uma nação de leitores e, apesar de algumas divergências saudáveis para o genoma, uma nação com sensibilidade e bom gosto. Fosse eu um génio na cibernética como sou noutras áreas desconhecidas da humanidade e sabotaria o algoritmo para por um dia, por mera derrisão, partilhar urbi et orbi este admirável mundo velho que tão promissoramente viceja no meu quintal.
sexta-feira, 28 de agosto de 2020
Tosse e epifania na música clássica
As procrastinações de ontem alicerçaram-se em música sinfónica, depois de ver «os principais epidemiologistas da Alemanha» afirmarem que lotações completas em concertos de música clássica são seguras já que o público destes espectáculos é «disciplinado, não fala e geralmente segue as regras». Por mera irrisão, lembrei-me de um conto de Julian Barnes* onde o protagonista, assistindo a um concerto no Royal Festival Hall, concorda totalmente com o sugerido e aduz argumentos importantes:
A tosse na música clássica é uma piada gasta, mas continua a incomodar gerações sucessivas de músicos (da secção de cordas, particularmente) e melómanos. É que, postos perante a necessidade de silêncio e atenção durante certo tempo, muitos seres humanos são impelidos por uma biologia atávica a limpar as vias respiratórias com recurso a uma «expiração brusca com convulsão ruidosa do peito ou da garganta». Ao contrário do que seria legítimo pensar, não o fazem como libertação e preparação para a música, mas antes sucessivamente, como acompanhamento percussivo não solicitado dos andamentos e com tendência para falhar o tempo.
Mas pior do que um público que tosse é uma sala sem tosse porque sem público. Talvez a pensar nisto, na mesma Londres de Julian Barnes mas no final do século XIX, levaram-se os promenades, concertos em parques com público deambulante, para teatros, onde, num ambiente informal, a audiência podia comer, beber ou fumar. E tossir, supõe-se. Isto porque um empresário achou que haveria gradualmente, a partir do relaxamento popular, de criar um público para a música clássica. (A obsessão pela criação forçosa de públicos é tão antiga como a democracia, o único sistema político que concede à plebe emancipada o direito de rejeitar e desdenhar o que antes eram privilégios invejados de ricos e poderosos.)
Os proms depois de se tornarem populares fizeram-se prestigiantes, ao construírem, via BBC, uma tradição no Royal Albert Hall. Prestigiantes não no sentido de elitistas, mas porque concederam à tentação facilitista a possibilidade de invocar, sem que sempre o perceba totalmente, um precedente nobre.
O défice de público competente (por competente não se entenda um público apto a controlar a tosse — se fosse assim, os programas do Royal Festival Hall mencionados pela personagem de Julian Barnes não precisavam de incluir uma informação, «que raia vagamente a advertência, sobre telemóveis ou o uso de lenço em caso de tosse» —, mas um público capaz de estar relativamente sossegado na cadeira por um razoável período de tempo), o défice de público competente, dizia, ou apetente, inspirou outras formas de tentar criar audiências para a música clássica. Uma delas, muito comum, gerada pela mesma vocação propedêutica e não raro equívoca para descontrair o público, é a de não tocar música clássica, mas sucedâneos. Música de grandes êxitos do cinema, peças de musicais da Broadway, tudo o que possa ser interpretado por vários naipes subaproveitados. Ou, vá lá, umas zarzuelas e umas polkas. Música para animar a audiência, enfim, como pernas síncronas na ginástica aquática.
Por isso, as hipóteses de coincidirem num mesmo espaço orquestras, público e repertório clássico são frequentemente reduzidas pela perversão do próprio desejo de ter público.
E no entanto talvez valesse a pena confiar mais no potencial da música clássica para chegar ao peito dos desafinados. O meu pessimismo antropológico é neste assunto matizado pela memória de uma epifania. Não posso subestimar a capacidade de deslumbramento e enamoramento dos ignorantes, porque isso seria negar a minha própria natureza, a minha própria história. Que é uma história de convergência dos três ingredientes atrás mencionados na província distante dos anos oitenta portugueses. Ali percebi pela primeira vez o impacto que uma orquestra, com todo o seu poder de som, em toda a sua diversidade tímbrica, com toda a complexidade de uma harmonia rigorosamente disciplinada mas leve, fluida, a tocar ao vivo música clássica pode ter no espírito em formação de um adolescente. (Pude também perceber em simultâneo a sedução que fraques e vestidos, se elegantes, podem operar num olhar juvenil.)
Não calhará a todos a felicidade de ter essa experiência inaugural num casino romântico, ainda que decadente, do início do século XX, como este adolescente teve, mas suspeito que a epifania vem mais da descoberta da música, do prazer e das sensações que ela oferece a um espírito de repente aberto, do que do local onde ela se faz ouvir.
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* ”Vigilância”, em A Mesa Limão.
«Como eu disse o público era normal. Oitenta por cento saíra dos hospitais da cidade com alta temporária; a bilheteira dera prioridade às alas de pneumologia e otorrinolaringologia. Reserve agora para arranjar um lugar melhor, se tiver uma tosse de 95 decibéis.»
«O allegro da abertura correu bastante bem: dois ou três espirros, um caso sério de muco compacto a meio do balcão, que quase necessitou de intervenção cirúrgica, um relógio digital e uma quantidade razoável de virar de páginas do programa.»
A tosse na música clássica é uma piada gasta, mas continua a incomodar gerações sucessivas de músicos (da secção de cordas, particularmente) e melómanos. É que, postos perante a necessidade de silêncio e atenção durante certo tempo, muitos seres humanos são impelidos por uma biologia atávica a limpar as vias respiratórias com recurso a uma «expiração brusca com convulsão ruidosa do peito ou da garganta». Ao contrário do que seria legítimo pensar, não o fazem como libertação e preparação para a música, mas antes sucessivamente, como acompanhamento percussivo não solicitado dos andamentos e com tendência para falhar o tempo.
Mas pior do que um público que tosse é uma sala sem tosse porque sem público. Talvez a pensar nisto, na mesma Londres de Julian Barnes mas no final do século XIX, levaram-se os promenades, concertos em parques com público deambulante, para teatros, onde, num ambiente informal, a audiência podia comer, beber ou fumar. E tossir, supõe-se. Isto porque um empresário achou que haveria gradualmente, a partir do relaxamento popular, de criar um público para a música clássica. (A obsessão pela criação forçosa de públicos é tão antiga como a democracia, o único sistema político que concede à plebe emancipada o direito de rejeitar e desdenhar o que antes eram privilégios invejados de ricos e poderosos.)
Os proms depois de se tornarem populares fizeram-se prestigiantes, ao construírem, via BBC, uma tradição no Royal Albert Hall. Prestigiantes não no sentido de elitistas, mas porque concederam à tentação facilitista a possibilidade de invocar, sem que sempre o perceba totalmente, um precedente nobre.
O défice de público competente (por competente não se entenda um público apto a controlar a tosse — se fosse assim, os programas do Royal Festival Hall mencionados pela personagem de Julian Barnes não precisavam de incluir uma informação, «que raia vagamente a advertência, sobre telemóveis ou o uso de lenço em caso de tosse» —, mas um público capaz de estar relativamente sossegado na cadeira por um razoável período de tempo), o défice de público competente, dizia, ou apetente, inspirou outras formas de tentar criar audiências para a música clássica. Uma delas, muito comum, gerada pela mesma vocação propedêutica e não raro equívoca para descontrair o público, é a de não tocar música clássica, mas sucedâneos. Música de grandes êxitos do cinema, peças de musicais da Broadway, tudo o que possa ser interpretado por vários naipes subaproveitados. Ou, vá lá, umas zarzuelas e umas polkas. Música para animar a audiência, enfim, como pernas síncronas na ginástica aquática.
Por isso, as hipóteses de coincidirem num mesmo espaço orquestras, público e repertório clássico são frequentemente reduzidas pela perversão do próprio desejo de ter público.
E no entanto talvez valesse a pena confiar mais no potencial da música clássica para chegar ao peito dos desafinados. O meu pessimismo antropológico é neste assunto matizado pela memória de uma epifania. Não posso subestimar a capacidade de deslumbramento e enamoramento dos ignorantes, porque isso seria negar a minha própria natureza, a minha própria história. Que é uma história de convergência dos três ingredientes atrás mencionados na província distante dos anos oitenta portugueses. Ali percebi pela primeira vez o impacto que uma orquestra, com todo o seu poder de som, em toda a sua diversidade tímbrica, com toda a complexidade de uma harmonia rigorosamente disciplinada mas leve, fluida, a tocar ao vivo música clássica pode ter no espírito em formação de um adolescente. (Pude também perceber em simultâneo a sedução que fraques e vestidos, se elegantes, podem operar num olhar juvenil.)
Não calhará a todos a felicidade de ter essa experiência inaugural num casino romântico, ainda que decadente, do início do século XX, como este adolescente teve, mas suspeito que a epifania vem mais da descoberta da música, do prazer e das sensações que ela oferece a um espírito de repente aberto, do que do local onde ela se faz ouvir.
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* ”Vigilância”, em A Mesa Limão.
quinta-feira, 27 de agosto de 2020
O fim da tosse
Ainda a pensar na notícia do post anterior sobre o fim da tosse, ocorreu-me que se Julian Barnes fosse alemão não teria podido escrever, sem risco de inverosimilhança ou de um desmentido pelos principais epidemiologistas do país, a (deliciosa) página 106 do seu A Mesa Limão. Deutsche husten nicht!
(clique para ampliar)
Germany’s leading epidemiologists claim full audiences at classical concerts is safe
Mas só se não tossirem durante os andamentos.Carta de motivação
Ponderando uma candidatura a uma bolsa de criação literária, detenho-me no item «carta de motivação» e concluo que uma sinceridade simples, sem nuances, me excluiria: um ano sem trabalhar. O enredo e a ficção começam, portanto, logo com o primeiro documento da candidatura.
quarta-feira, 26 de agosto de 2020
Marcos miliários
(™ A viver acima das possibilidades desde 1968)
Gostaria que a minha vida, pelo menos a da última década, fosse contada em slides da série «™ A viver acima das possibilidades desde 1968». Não tenho na verdade publicado muitas fotos dessas, mas as poucas que publiquei permitem-me preencher os vazios entre elas e (re)construir uma boa narrativa para os meus dias idos. Se me focar suficientemente naqueles momentos em que o espaço/tempo se organizou em volta de livros, paisagem e vinho poderei considerar com propriedade e alívio ter tido uma vida feliz.
O «sítio formoso» desta foto, para roubar uma expressão que o qualificou, só levemente tangeu essa condição de marco miliário araujiano, e não é local onde muito facilmente possa demorar-me horas a ler e a bebericar. Mas tem simultaneamente a estética e a veemência de um deles e não me admirarei se, com a febre que há-de tomar-me, vier a empenhar alguma coisa, seguindo a divisa da casa, para ali virar páginas e copos. Na absoluta impossibilidade disso, posso bem, não seria a primeira vez, penhorar um enredo que me permita igualmente frequentá-lo com regularidade terapêutica, ainda que por pretensa via literária.
terça-feira, 25 de agosto de 2020
Para uma semiótica do pessimismo antropológico
Há uma subtil mas significativa contradição naqueles pessimistas antropológicos que exigem governantes sem defeito. Alguns protegem-se perante si mesmos da incoerência tornando-se facciosos, especialistas em fabricar semânticas diferentes para governantes de sinal contrário.
Levada a um extremo, ou associada a uma menos subtil mas raramente admitida defesa do privilégio sobre todos os outros assuntos políticos, esta antinomia faz eleger Trumps e Bolsonaros sem dar notícia da intrínseca fractura no racionalismo do mundo. Ou, pelo contrário, considerando-a o corolário mais que perfeito da cosmogonia pessimista. Os seres desta última espécie designam-se como masoquistas ou cínicos, consoante a posição na tabela social.
Levada a um extremo, ou associada a uma menos subtil mas raramente admitida defesa do privilégio sobre todos os outros assuntos políticos, esta antinomia faz eleger Trumps e Bolsonaros sem dar notícia da intrínseca fractura no racionalismo do mundo. Ou, pelo contrário, considerando-a o corolário mais que perfeito da cosmogonia pessimista. Os seres desta última espécie designam-se como masoquistas ou cínicos, consoante a posição na tabela social.
sábado, 15 de agosto de 2020
Himmler não entra
Um misantropo é capaz de compreender que não se goste de pessoas, porque ao fim e ao cabo ele próprio não as tem em grande estima. Um pessimista antropológico (ou, se quisermos, um realista que consulte as tiragens dos jornais, as audiências das televisões, as listas de livros mais vendidos e a opinião comum nas redes sociais) receia com bons motivos o advento da democracia directa e pergunta-se, como o misantropo, para quando as viagens a Marte.
Mas um pessimista antropológico apenas advoga formas de governo que não caiam na ilusão de Rousseau, que tenham em conta o egoísmo e a intrínseca ruindade humana. E um misantropo, a não ser que tenha perdido qualquer réstia de empatia, foge da sociedade, não integra einsatzgruppen.
Quem reúna as qualidades acima e um módico de inteligência jamais compreenderá a perversão que é alguém antipatizar com um grupo específico de pessoas; jamais entenderá que se deteste pessoas, não por atacado, mas com base em características étnicas, sexuais ou simpatias políticas.
Para se chegar ao desvio psicológico da aversão selectiva não basta ser misantropo ou pessimista antropológico. É preciso ter enveredado pelos caminhos do preconceito, do sectarismo, da xenofobia e do racismo. Que implicam interacção, e de um tipo ainda mais desprezível.
Como não estou aqui para aliviar consciências, devo dizer àqueles dos meus amigos que se estão a deixar dominar por este páthos, confundidos na década e no século, que façam o favor de fechar a porta à saída. No exclusivo clube dos misantropos e pessimistas antropológicos não aceitamos transtornos de personalidade. Isso é lá no Observador e parece que no PSD.
Mas um pessimista antropológico apenas advoga formas de governo que não caiam na ilusão de Rousseau, que tenham em conta o egoísmo e a intrínseca ruindade humana. E um misantropo, a não ser que tenha perdido qualquer réstia de empatia, foge da sociedade, não integra einsatzgruppen.
Quem reúna as qualidades acima e um módico de inteligência jamais compreenderá a perversão que é alguém antipatizar com um grupo específico de pessoas; jamais entenderá que se deteste pessoas, não por atacado, mas com base em características étnicas, sexuais ou simpatias políticas.
Para se chegar ao desvio psicológico da aversão selectiva não basta ser misantropo ou pessimista antropológico. É preciso ter enveredado pelos caminhos do preconceito, do sectarismo, da xenofobia e do racismo. Que implicam interacção, e de um tipo ainda mais desprezível.
Como não estou aqui para aliviar consciências, devo dizer àqueles dos meus amigos que se estão a deixar dominar por este páthos, confundidos na década e no século, que façam o favor de fechar a porta à saída. No exclusivo clube dos misantropos e pessimistas antropológicos não aceitamos transtornos de personalidade. Isso é lá no Observador e parece que no PSD.
quarta-feira, 12 de agosto de 2020
Nos fundilhos de um negrilho
O fácies severo de Torga foi por estes dias esculpido na raiz sobrante do negrilho que ele amava. A ideia, decerto bem-intencionada como tantas no Inferno, é desajustada, caricatural, kitsch, até cruel, mas cheia de zeitgeist. Nenhuma iniciativa que procurasse laboriosa mas ingenuamente seduzir leitores para a obra do escritor teria maior atenção dos media do que este coelho sacado da cartola. Não há uma alma que vá ler uma linha de Torga à conta disto, mas os quinze minutos (segundos, na verdade, e bem efémeros) de fama televisiva, registados pelas equipas de reportagem com a mesma sagacidade jornalística com que antes se registavam os fenómenos do Entroncamento, já ninguém os rouba. A arte pode desprezar a ideia, mas o espírito da época promulgou-a.
Torga não é um dos meus autores de eleição (operou sobre um mundo que conheço uma mitificação que por mim dispensava), mas tendo a gostar daqueles que mantêm relações empáticas com árvores e teria apreciado, por razões literárias e botânicas, mesmo que póstumas, que quem pensou em fundir o autor com a árvore amada tivesse sabido manter a coisa no domínio da ars poetica, ao invés de enveredar por uma literalidade de moto-serra.
Custa-me, de resto, esta referência pejorativa à ferramenta do escultor, porque, sendo testemunha antiga do seu talento, temo que ele seja a terceira vítima neste caso. Não há-de ser fácil sobreviver num país onde as encomendas de arte pública se limitam geralmente a pedir abóboras gigantes fotogénicas para o imaginário pueril colectivo e a imprensa da especialidade fenomenológica.
Torga não é um dos meus autores de eleição (operou sobre um mundo que conheço uma mitificação que por mim dispensava), mas tendo a gostar daqueles que mantêm relações empáticas com árvores e teria apreciado, por razões literárias e botânicas, mesmo que póstumas, que quem pensou em fundir o autor com a árvore amada tivesse sabido manter a coisa no domínio da ars poetica, ao invés de enveredar por uma literalidade de moto-serra.
Custa-me, de resto, esta referência pejorativa à ferramenta do escultor, porque, sendo testemunha antiga do seu talento, temo que ele seja a terceira vítima neste caso. Não há-de ser fácil sobreviver num país onde as encomendas de arte pública se limitam geralmente a pedir abóboras gigantes fotogénicas para o imaginário pueril colectivo e a imprensa da especialidade fenomenológica.
Bem-aventurados os pobres de espírito
Quando pensamos que Hollywood toma o seu público por néscio, temos de nos lembrar da sofisticação das legendagens em português:
— Did she knew him?
— Probably biblically.
Tradução:
— Ela conheceu-o?
— Provavelmente na horizontal.
— Did she knew him?
— Probably biblically.
Tradução:
— Ela conheceu-o?
— Provavelmente na horizontal.
A banda sonora das vidas deles
1) Mais irritante do que uma festa de adolescentes a perturbar a noite é a música que se ouve nessa festa. Quer dizer, há toda uma multidão de compositores decentes na actualidade, mas apontem-me uma festa de teenagers com boa música e eu próprio visto alguma roupa nestas noites de ananases e vou até lá.
2) Antigamente transportar música pelas ruas era uma coisa um pouco tropical: os tugas eram muito nórdicos, há trinta anos, ou demasiado preguiçosos para andarem com um leitor de cassetes às costas. Hoje os telemóveis são leves e espaçosos e a juventude perdeu infelizmente a timidez: é comum cruzarmo-nos com grupos ou casalitos e o lastro indesejado da sua banda sonora. Não é um espectáculo agradável de ouvir, menos pelos decibéis do que pelo que a música nos diz do gosto daquelas vidas.
3) Nos anos oitenta e noventa invejávamos por vezes, mas negávamo-lo sempre, a descontracção (chamávamos-lhe só exibicionismo) com que a primeira geração de portugueses nascidos na França circulava nas ruas de Agosto a ouvir música foleira nos seus auto-rádios. Éramos um país de tribos estético-musicais e se alguma coisa unia as tribos (dos góticos aos betos) não eram os romanos (não foi assim há tanto tempo) mas o desprezo pela banda sonora dos emigrantes. Talvez houvesse um certo chauvinismo nisso, mas não se pode dizer que havia mau gosto.
Entretanto, talvez imbuídas de um sentido de missão ou justiça histórica, as cassetes daqueles auto-rádios parisienses tomaram conta da pátria, transmudadas no hip hop da baixa da banheira e no funk da rocinha que se ouve nos carros e nos smartphones da tribo única em que aparentemente o Portugal sub-20 de hoje se transformou, a julgar pelo que chega à minha varanda.
4) Pior experiência estética do que ver adolescentes passear a sua música pelas ruas é imaginá-los daqui a trinta anos a ouvi-la emocionados, saudosistas, em noites solitárias e nostálgicas. Grossy!
5) Diz-se que todas as épocas tendem a desprezar o gosto da anterior e sobretudo o da seguinte e que isso faz parte de um «conflito de gerações». Mas nós amávamos os hippies e não quisemos mal aos Linkin Park. De resto, não há um conflito quando só uma das partes agride os ouvidos da outra.
(Imaginem a cacofonia se houvesse de facto um conflito, com todas as gerações a dispensarem a civilidade dos phones ou o Youtube em recato e a martelarem furiosamente a céu aberto a banda sonora das suas vidas. O Inferno é a audição ao vivo e simultânea da lista da Rolling Stone com os 500 melhores álbuns de todos os tempos. E o último círculo desse Inferno é aquele em que a lista da Rolling Stone inclui, por condescendência, a playlist dos putos meus vizinhos.
2) Antigamente transportar música pelas ruas era uma coisa um pouco tropical: os tugas eram muito nórdicos, há trinta anos, ou demasiado preguiçosos para andarem com um leitor de cassetes às costas. Hoje os telemóveis são leves e espaçosos e a juventude perdeu infelizmente a timidez: é comum cruzarmo-nos com grupos ou casalitos e o lastro indesejado da sua banda sonora. Não é um espectáculo agradável de ouvir, menos pelos decibéis do que pelo que a música nos diz do gosto daquelas vidas.
3) Nos anos oitenta e noventa invejávamos por vezes, mas negávamo-lo sempre, a descontracção (chamávamos-lhe só exibicionismo) com que a primeira geração de portugueses nascidos na França circulava nas ruas de Agosto a ouvir música foleira nos seus auto-rádios. Éramos um país de tribos estético-musicais e se alguma coisa unia as tribos (dos góticos aos betos) não eram os romanos (não foi assim há tanto tempo) mas o desprezo pela banda sonora dos emigrantes. Talvez houvesse um certo chauvinismo nisso, mas não se pode dizer que havia mau gosto.
Entretanto, talvez imbuídas de um sentido de missão ou justiça histórica, as cassetes daqueles auto-rádios parisienses tomaram conta da pátria, transmudadas no hip hop da baixa da banheira e no funk da rocinha que se ouve nos carros e nos smartphones da tribo única em que aparentemente o Portugal sub-20 de hoje se transformou, a julgar pelo que chega à minha varanda.
4) Pior experiência estética do que ver adolescentes passear a sua música pelas ruas é imaginá-los daqui a trinta anos a ouvi-la emocionados, saudosistas, em noites solitárias e nostálgicas. Grossy!
5) Diz-se que todas as épocas tendem a desprezar o gosto da anterior e sobretudo o da seguinte e que isso faz parte de um «conflito de gerações». Mas nós amávamos os hippies e não quisemos mal aos Linkin Park. De resto, não há um conflito quando só uma das partes agride os ouvidos da outra.
(Imaginem a cacofonia se houvesse de facto um conflito, com todas as gerações a dispensarem a civilidade dos phones ou o Youtube em recato e a martelarem furiosamente a céu aberto a banda sonora das suas vidas. O Inferno é a audição ao vivo e simultânea da lista da Rolling Stone com os 500 melhores álbuns de todos os tempos. E o último círculo desse Inferno é aquele em que a lista da Rolling Stone inclui, por condescendência, a playlist dos putos meus vizinhos.
sábado, 8 de agosto de 2020
A marmota no feitiço do tempo
O meu Proust vai lento (deve ser para ai a terceira vez que escrevo isto e cada vez me sabe melhor fazê-lo) e se isso me traz um pouquinho de frustração quando reparo nos livros que tenho em espera não é, ainda assim, coisa que me apoquente.
Este Verão não ficará famoso por belas viagens, mergulhos inesperados ou de aspiração infantil, copos com vista e sombra, bolas acidentalmente roubadas no green do buraco 17. Mas está a deixar a sua marca na memória, por cortesia de uma rotina que só uma época anormal, sem pressa de projectos ou destinos, permite cumprir-se todos os dias com dedicação e método.
Não são muitas as páginas que viro do meu Proust a cada jornada, é verdade, e a maioria acontece ao pequeno-almoço (as noites de folga têm sido, como sabem, de rendição perante um fascínio desportivo insuspeitado, outra anomalia deste ano incomum, como o planeta Melancholia). E é justamente nessa pequena quantidade de páginas lidas por cada rotação terrestre, nesse lento avançar para o volume seguinte, que se vai construindo uma ideia ou um significado, talvez uma esperança: deixar durar a leitura para prolongar o prazer ou para deter o tempo, para o reorganizar numa sucessão que não avança, antes repete cada dia com o mesmo interesse aparentemente diminuto do anterior. Como no filme O Feitiço do Tempo, mas sem necessidade de desenvolvimentos ou correcções.
Uma rotina para não perder o tempo.
Levantar, constatar que é Verão e o sol brilha e as sombras das árvores, onde as há, são a dádiva que equilibra tudo; desempenhar as tarefas matinais como quem progride na floresta tropical, afastando com indiferença um pouco impaciente a vegetação à esquerda e à direita, ou como quem avança em slalom entre a multidão, apartando caminho com os ombros, para chegar à clareira ou à praia ou à pequena praça esquecidas, perdidas, ignoradas, desertas, solitárias e maravilhosas. Livro sobre a mesa, em frente aos utensílios e aos víveres, tudo disposto com rigor maníaco obsessivo-compulsivo. E então, o tempo pára durante vinte minutos…
Depois é descer em estado de graça, com ar de heroinómano satisfeito, aproveitando o privilégio de ir a pé para o emprego, resistindo beatificado às ruas inclementes de sol e humanidade que antecedem a chegada ao parque, onde, sob um céu sabiamente entretecido de ramos e folhas, tem lugar uma segunda pausa de contemplação e de puro prazer de estar vivo.
No dia seguinte tudo se repete e se há alguma preocupação é a de não alterar os gestos, os movimentos, os passos, procurar que nada inflicta o rumo dos acontecimentos, na esperança vã mas feliz de que o Verão não acabe, o sol perdure (para que haja o prazer de chegar à sombra), o Proust tenha escrito setenta volumes em vez de sete, trinta dos quais dedicados às viagenzinhas de comboio de ida e volta entre Balbec e a Raspelière, passando por Doncières.
A felicidade é menos ser um Bill Murray paulatinamente apaixonado do que a marmota que repete cada dia com ambição modesta contudo sapiente e hiberna nos meses que não são Verão.
Este Verão não ficará famoso por belas viagens, mergulhos inesperados ou de aspiração infantil, copos com vista e sombra, bolas acidentalmente roubadas no green do buraco 17. Mas está a deixar a sua marca na memória, por cortesia de uma rotina que só uma época anormal, sem pressa de projectos ou destinos, permite cumprir-se todos os dias com dedicação e método.
Não são muitas as páginas que viro do meu Proust a cada jornada, é verdade, e a maioria acontece ao pequeno-almoço (as noites de folga têm sido, como sabem, de rendição perante um fascínio desportivo insuspeitado, outra anomalia deste ano incomum, como o planeta Melancholia). E é justamente nessa pequena quantidade de páginas lidas por cada rotação terrestre, nesse lento avançar para o volume seguinte, que se vai construindo uma ideia ou um significado, talvez uma esperança: deixar durar a leitura para prolongar o prazer ou para deter o tempo, para o reorganizar numa sucessão que não avança, antes repete cada dia com o mesmo interesse aparentemente diminuto do anterior. Como no filme O Feitiço do Tempo, mas sem necessidade de desenvolvimentos ou correcções.
Uma rotina para não perder o tempo.
Levantar, constatar que é Verão e o sol brilha e as sombras das árvores, onde as há, são a dádiva que equilibra tudo; desempenhar as tarefas matinais como quem progride na floresta tropical, afastando com indiferença um pouco impaciente a vegetação à esquerda e à direita, ou como quem avança em slalom entre a multidão, apartando caminho com os ombros, para chegar à clareira ou à praia ou à pequena praça esquecidas, perdidas, ignoradas, desertas, solitárias e maravilhosas. Livro sobre a mesa, em frente aos utensílios e aos víveres, tudo disposto com rigor maníaco obsessivo-compulsivo. E então, o tempo pára durante vinte minutos…
Depois é descer em estado de graça, com ar de heroinómano satisfeito, aproveitando o privilégio de ir a pé para o emprego, resistindo beatificado às ruas inclementes de sol e humanidade que antecedem a chegada ao parque, onde, sob um céu sabiamente entretecido de ramos e folhas, tem lugar uma segunda pausa de contemplação e de puro prazer de estar vivo.
No dia seguinte tudo se repete e se há alguma preocupação é a de não alterar os gestos, os movimentos, os passos, procurar que nada inflicta o rumo dos acontecimentos, na esperança vã mas feliz de que o Verão não acabe, o sol perdure (para que haja o prazer de chegar à sombra), o Proust tenha escrito setenta volumes em vez de sete, trinta dos quais dedicados às viagenzinhas de comboio de ida e volta entre Balbec e a Raspelière, passando por Doncières.
A felicidade é menos ser um Bill Murray paulatinamente apaixonado do que a marmota que repete cada dia com ambição modesta contudo sapiente e hiberna nos meses que não são Verão.
terça-feira, 4 de agosto de 2020
Ironia
Na minha vida de plumitivo, quando possuía carteira de jornalista, hesitava involuntariamente entre dois estilos: o editorialista e o ironista. Ambas as formas derivavam da indignação, mas enquanto a primeira me expunha como ser moral e senciente a segunda desvendava as escadas que conduzem ao Olimpo da fleuma (e que nunca consegui verdadeiramente subir até ao fim).
Se me tornei um admirador da ironia não foi porque via nela utilidade directa para o mundo, mas porque adivinhei benefícios para o praticante. Não podendo espadeirar a comarca como ela precisa, mais vale rirmo-nos dela salvaguardando distâncias profilácticas.
Convém todavia lembrar que a ironia anda de mãos dadas com a liberdade e a democracia. Só quando não nos levamos suficientemente a sério e sentimos um necessário desprezo pelos que o fazem estamos capazes de resistir à bestialidade.
A Inglaterra não resistiu ao nazismo por ser uma ilha, mas pela sua capacidade de escárnio. Que nas décadas seguintes cultivou, como antes, na literatura, na política e na música, até optar, em degradée, pelo género menor da caricatura, com Cameron, May e Johnson.
Em Portugal conheço dois focos historicamente activos de ironia: o Rui Reininho dos GNR (Q.E.D.) e Vilarelho de Jales, onde pela mão dos irmãos Chaves, eles próprios capazes de fina ironia, conheci uma tribo cujo lugar de pontífice era disputado por Mó, irmão de Salu. Se a imbecilidade nacional continuar a dar crédito ao rapaz do Chega, é ali que me encontram, naquela aldeia mais britânica do que gaulesa, a bebericar copinhos de poção irónica e a entronizar Reininho como monarca de direito para liderar a reconquista.
Se me tornei um admirador da ironia não foi porque via nela utilidade directa para o mundo, mas porque adivinhei benefícios para o praticante. Não podendo espadeirar a comarca como ela precisa, mais vale rirmo-nos dela salvaguardando distâncias profilácticas.
Convém todavia lembrar que a ironia anda de mãos dadas com a liberdade e a democracia. Só quando não nos levamos suficientemente a sério e sentimos um necessário desprezo pelos que o fazem estamos capazes de resistir à bestialidade.
A Inglaterra não resistiu ao nazismo por ser uma ilha, mas pela sua capacidade de escárnio. Que nas décadas seguintes cultivou, como antes, na literatura, na política e na música, até optar, em degradée, pelo género menor da caricatura, com Cameron, May e Johnson.
Em Portugal conheço dois focos historicamente activos de ironia: o Rui Reininho dos GNR (Q.E.D.) e Vilarelho de Jales, onde pela mão dos irmãos Chaves, eles próprios capazes de fina ironia, conheci uma tribo cujo lugar de pontífice era disputado por Mó, irmão de Salu. Se a imbecilidade nacional continuar a dar crédito ao rapaz do Chega, é ali que me encontram, naquela aldeia mais britânica do que gaulesa, a bebericar copinhos de poção irónica e a entronizar Reininho como monarca de direito para liderar a reconquista.
Marvel
Enquanto escrevia «Bruce Banner» no post anterior fui invadido por memórias e sensações que abalaram terramotamente o prédio inteiro. Só recuperei quando os vizinhos de baixo, octogenários que não via desde Março, me bateram à porta em camisa de noite e gorro com pompom a recomendar que descrevesse o fenómeno em sete volumes mas que entretanto me abrigasse debaixo de uma mesa ou de uma padieira, até cessarem as réplicas.
Estou, portanto, aqui debaixo da secretária de mogno que herdei do morgado de quem sou descendente bastardo, a lembrar, não em sete volumes, mas em sete linhas ou menos, o tempo em que a minha vida era excitada periodicamente pelas revistas da Marvel a que conseguia deitar a mão.
Conheci basto mundo depois dessa era, deixando uma pegada ecológica que não precisa de nenhum Sherlock Holmes para dela inferir incriminações. Mas, e suponho que isto seja proustiano, não houve destino ou ocasião que me devolvessem a expectativa e a felicidade iminente que ressumavam daquelas páginas — mesmo quando nelas o nosso mundo explodia.
Estou, portanto, aqui debaixo da secretária de mogno que herdei do morgado de quem sou descendente bastardo, a lembrar, não em sete volumes, mas em sete linhas ou menos, o tempo em que a minha vida era excitada periodicamente pelas revistas da Marvel a que conseguia deitar a mão.
Conheci basto mundo depois dessa era, deixando uma pegada ecológica que não precisa de nenhum Sherlock Holmes para dela inferir incriminações. Mas, e suponho que isto seja proustiano, não houve destino ou ocasião que me devolvessem a expectativa e a felicidade iminente que ressumavam daquelas páginas — mesmo quando nelas o nosso mundo explodia.
Cólera
Venho de uma linhagem de coléricos. Pessoas boas, capazes, honestas e humildes, mas coléricas. Não sou, julgo, o praticante vivo mais destacado da estirpe, mas não me livrei da maldição, que, no meu caso, afecta por vezes mais o perpetrador do que o alvo. É que para se ser um colérico feliz tem de se reunir pelo menos uma de duas condições: a inconsciência dos brutos ou o cinismo dos poderosos. Por decisão do destino livrei-me da primeira e a segunda nunca esteve verdadeiramente no meu radar. Por isso, sofro de tremendos remorsos sempre que expludo em fúria, e nas últimas décadas evitei expor-me a ela.
Todavia, não entrei numa ordem cisterciense com voto de silêncio e, como Bruce Banner, não posso responder sempre pelos meus actos.
Todavia, não entrei numa ordem cisterciense com voto de silêncio e, como Bruce Banner, não posso responder sempre pelos meus actos.
quarta-feira, 29 de julho de 2020
Esperar o fim no Solar Bragançano II
No domingo fui jantar ao Solar Bragançano e como não o faço com a regularidade que gostaria lembrei-me, até pelas semelhanças de contexto, do jantar memorável e fanfarrão que ali me ofereci em Novembro de 2012*, quando nos afligia a coronotroika. Contudo, para não exagerar no paralelismo e sobretudo para levar um espírito francamente optimista para a mesa, observei, enquanto compunha a máscara depois de passar as mãos pelo álcool-gel da casa, que na altura nada nos protegia da peste e governava Passos Coelho.
sexta-feira, 24 de julho de 2020
À venda na OLX
Descubro um dos meus livros à venda na OLX (não é a primeira vez). Hesito entre sentir regozijo ou frustração. Opto pelo primeiro sentimento quando vejo que a mesma pessoa está a vender, além de outras coisas, A Fogueira das Vaidades (Tom Wolfe), Com os Holandeses (Rentes de Carvalho) e uma máquina de costura Singer. Depois deprimo, ao notar que na longa lista de artigos só há duas coisas mais baratas do que o meu livro: uma máquina de barbear que «não trabalha» (5€) e uma camisa «tipo ganga» (6€).
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