Na casa onde nasci e cresci morava uma família feliz, mesmo se o tecto pingava de Inverno — e pingava sempre. (Não é certo que na altura todos partilhássemos esta opinião de que éramos uma família feliz, mas aos cinquenta encontramos sempre forma de acreditar que sim, quando tudo o que temos de seguro é o passado antigo.) Pingava sobretudo na cozinha, que era o sítio onde mais tempo estávamos, espécie de living room à transmontana mas com uma cobertura mais permeável do que se fosse de telha-vã. Em dias de depressão atmosférica inominada tinha lugar o ritual castrense de dispor a bateria de bacias e alguidares de acordo com as linhas de infiltração e de, a intervalos que variavam com a intensidade da chuva, esvaziar e recolocar os recipientes como na Guerra de 14 se repunham efectivos nas trincheiras: mecanicamente, sem considerações ou estados de espírito.
Vivi sempre com este trauma das infiltrações e a vida foi-me renovando as razões (e as infiltrações) para isso. As pingas perseguem-me, em casa ou no trabalho, década após década. Talvez apenas para me lembrar de que faça o que fizer serei sempre o rapazinho que ficava encolhido entre as pingas a ler à luz das velas. Talvez para me lembrar de que deveria continuar a ser sempre e só o rapazinho que acima de tudo queria ficar a ler entre as pingas à luz das velas.
E se a leitura fosse empolgante nem reparava no ping-ping das pingas: o importante era mesmo ler, não era?
ResponderEliminarSaudações Periféricas.
🌿🌼
As pingas deprimiam-me ou pelo menos deixavam-me melancólico; a leitura tirava-me dali.
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