quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Três quadros de Inverno

1. A árvore da vida

Altura da poda. O homem novo, talvez numa ocupação de férias natalícias, usa uma escada de metal reluzente e, por vezes, uma tesoura com uma extensão que lhe permite trabalhar a partir do solo. O idoso sobe para os galhos por uma velha escada de madeira camba e, em equilíbrio vertiginoso, apara os ramos com a clássica tesoura preta que também se lhe vê nas mãos em época de vindimas. Há a história do velho, o rapaz e o burro, mas é inadequada. A partir de certa idade, a poda é uma questão pessoal. O velho mais depressa treparia a oliveira, como quando em rapaz ia aos figos, do que usaria a escada nova e a ferramenta fashion do filho ou genro. É este que precisa dos apetrechos e das luvas do Mestre Maco. As mãos do velho estão calejadas, e subir a pulso a árvore da vida fará parte do seu quotidiano até ao último dia na terra. Vive enquanto a pode subir, morrerá de não a poder subir.


2. A vil existência

Pouco depois das quatro da tarde ocorrerá o pôr-do-sol. Embrulhados nos seus kispos e forros polares, os caminhantes cumprem apressados a prescrita hora ou hora e meia de marcha junto ao rio. Os amantes da corrida fazem desfilar calças de licra, gorros e mp3. Ela usa calções de perna comprida e justa e uma sweatshirt larga. Numa curva, a última curva antes de a sombra estender por todo o lado o seu manto irrevogável, ela tem a intuição do fim da luz e detém-se. Abre os braços, levanta o rosto ao deus-sol e sorri. É bom estar viva, apetece abraçar o astro. Cinco segundos de carícia e alheamento, e ei-la de novo num trote firme, o sorriso agora embaraçado, talvez por a vil existência ter regressado nos olhares dos transeuntes, que tentam encontrar-lhe no rosto sinais de um espírito débil ou excêntrico.


3. Encruzilhada

Vestidos com as prendas de Natal — casacos Lanidor e Massimo Dutti, calças Tiffosi ou da Salsa, peúgas e roupa interior a expensas rituais de tias idosas —, passeiam no parque o carrinho de bebé. Com uma criança dentro, deduz-se, não se vê. Eles também não a vêem: ela senta-se num banco a olhar um ponto fixo, talvez do passado, ele fica de pé a observar o trânsito de famílias e casais. Ambos com rostos graves, diferentes do cliché de uma tarde bonita no parque. Entre os dois, o carrinho. Estático porque o terreno é plano — ninguém o segura, jaz por instantes abandonado, troféu de um jogo de forças em que possivelmente fica com o prémio quem perde. Talvez numa parte dos seus espíritos apetecesse que o carrinho começasse a deslizar para fora das suas vidas, pudessem sair dali cada um por seu trilho do parque, desejando esquecer que um dia estiveram numa encruzilhada. Mas um deles há-de voltar a empurrar o carrinho, provavelmente a mãe, mesmo que seja para seguir o seu próprio caminho. Ou as catorze estações do Calvário.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

As pessoas em concreto

Há muito tempo que não lia Pacheco Pereira e já não recordo quão frequentemente ocorria a palavra «imbecis» nos seus escritos, para mais impressos. Mas é bom lê-la, sobretudo no contexto: 
«(…) Há uns imbecis nos blogues que acham que falar dos problemas concretos das pessoas que não são fils a papa, publicitários, gente de glamour, neoliteratos, assessores de várias eminências, yuppies sem mercados, consultores, advogados de sucesso, é neo-realismo. A única coisa que se lhes pode perdoar é não saberem o que a palavra significa, mas tudo o resto não e perdoável nem mesmo com muito "espírito de Natal".»*
Infelizmente, o meu problema com as coisas concretas é inverso. Salvo excepções, é quando penso em concreto nas pessoas que me torno entusiasta de Passos Coelho. E de Torquemada.

Alguns estão prontos a insinuar, por isso, que o uso da abstracção faz de mim um utópico da laia de Rosseau. Mas diferimos, o francês e eu. Ele via bons selvagens. Eu vejo selvagens — mas não acho isso bom.

Por outro lado, os liberalecos da direita e eu não estamos, de certa forma, em radical desacordo. Números, índios-de-cu-ao-leu: é indiferente como encaramos as pessoas — desde que não tenhamos de sociabilizar.


*Público de 24/12

Pacheco

Reencontrar a prosa de Pacheco Pereira (no blogue ou nos jornais) e ver nela alguma coincidência de pontos de vista reforça a convicção de que não é preciso ser-se de esquerda para perceber a intrínseca leviandade ou estupidez de certo discurso tão propalado pela gente de Passos, no Governo, nos jornais ou nos blogues.
«É particularmente irritante, e socialmente perigoso, que acrescentem à miséria uma lição moral do género "têm o que merecem porque viviam acima das suas posses", todos contentes com a purga moral do país pelo empobrecimento. O empobrecimento pode ser inevitável, mas deixem de lhe atribuir qualquer valor catártico e vender como nova propaganda que, no dia em que estivermos mesmo muito pobres, vai começar a nova aurora económica, a ascensão de uma economia de sucesso, livre do Estado, competitiva e dirigida por uma "nova geração" liberal e desempoeirada.»

Sedução do eleitorado

Proposta de estudo sociológico: averiguar que percentagem (masculina e feminina) da população convertida ao discurso da miséria se deixou seduzir literalmente pelos lindos olhos de Passos Coelho.

Agência Rangel

Se Paulo Rangel concretizar a sua agência de emigração, tem cliente. Desde que pague as passagens. (Ou a passagem, sabemos que é só de ida.) Em Vimioso diz que oferecem mil euros a casais que aumentem a população. Não ficaria mal ao Governo (e seria coerente com as suas opções políticas) pagar quantia semelhante a quem se voluntarie para desemparar a loja. Com mil euros há todo um mundo de possibilidades e destinos. O amor à Pátria aumenta na exacta proporção de quanto ela está disposta a pagar para se ver livre de nós.

Mas claro que a Agência Rangel há-de ser mais exactamente uma agência de aventuras, uma coisa que inclua o risco e o revivalismo. Os clientes farão, digamos, um investimento de risco (mas com risco mesmo), embarcando numa aventura old fashioned, como agrada aos conservadores. Rangel talvez tire do museu de cera um guia que nos acompanhe até à raia, mas a fronteira há-de ser passada a salto, os rios cruzados a vau e as distâncias percorridas a calcantes. Tudo brindado a vinho verde, que é do nosso Portugal!

domingo, 25 de dezembro de 2011

Males do couro cabeludo

O rapaz está sentado na cadeira do cabeleireiro. A funcionária, munida de pente e tesoura de dentes, vai desferindo golpes vigorosos. Com exuberância de gestos, levanta compridas repas da cabeleira e ataca-as como se disso dependesse a continuação do mundo. A determinado momento do labor, questiona o cliente:
— Estou a magoar?
O rapaz, com uma expressão torturada no rosto, ombros encolhidos como se tivesse deflagrado uma granada, responde o não mais sim de que K. se lembra.

(A espreitar tão discretamente quanto pode pelo vidro da montra, K. conhece o tormento do rapaz — também foi um dia cliente daquele salão. Houve um tempo em que K. podia recorrer àquele género de serviços, o luxo de um corte de cabelo a doze euros. Lembra-se de como a figura dócil, de prima carinhosa, daquela funcionária escondia uma harpia, que se revelava no momento em que as pessoas tinham o azar de coincidir no seu turno de trabalho. Também K. quis muitas vezes dizer não quando dizia o seu sim educado. Até ao dia em que começou a espreitar pela montra antes de entrar — e a retroceder nos seus passos se estava de serviço tal instrumento da Inquisição.)

Depois o equilíbrio nas forças em conflito altera-se. Acabado o desbaste, a cabeleireira entra nas minudências, e aí o rapaz tem uma palavra a dizer. Há que assegurar determinada proporcionalidade entre a forma como a nuca é rapada e os lados se penteiam para a frente. Um gesto em falso e é a vez da senhorita experimentar a violência do rapaz, patente nos olhares que lança ao espelho e nos monossílabos escandalizados que solta se ela avança por onde não deve.

O penteado de um adolescente é uma problemática que não deve ser abordada de ânimo leve. Nisto, não difere muito a época actual dos tempos de K., talvez apenas na banda sonora. K. teve o seu momento Duran Duran numa altura em que os demais rapazes deixavam crescer cabeleiras à Iron Maiden ou permaneciam nos seus cortes medianos e clássicos de burgueses anódinos ou sucumbiam à escalpelização periódica das famílias mais pobres. Também nessa altura o drama maior de uma vida se relacionava muitas vezes com uma tesoura que progredia em terreno proibido — na adolescência, o tempo que leva a repor uma madeixa é exasperante, tem escala cósmica.   

Agora K. submete-se sempre que há uma máquina disponível à estética militar, a clássica, a do pente zero. Há ameaças antigas que regressaram, piolhos, lêndeas, e quando se anda na rua dispensam-se contratempos extra. Já não estão presentes mães que nos passem com zelo pelos cabelos, acariciando agudamente o crânio, pentes de dentes juntíssimos, que nos desenriçam e livram de parasitas e outros males do couro cabeludo.

A vida de K. (5)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Onde está a piada

Exercício interessante: decifrar o tipo de riso que deflagra em cada indivíduo que se confronta com o cartoon anterior. A forma como rimos e as coisas de que nos rimos, o ponto da narrativa onde encontramos a piada — se a encontramos ou consideramos —, também nos definem.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Tirado daqui.

Palcos

K. passou a adolescência a querer pertencer a uma banda rock. Hoje suspeita que passará a meia-idade a lastimar não ser um velho rocker. Pelo meio subiu a uns palcos, mas nada que possa ser visto no Youtube e de que as pessoas possam agora rir-se ou sentir saudades.

A vida de K. (4) 

Fim-de-ano-mundo

São dez a jantar, o quadro de pessoal de uma empresa. Natal, sabem como é. Na televisão há futebol e são elas que anunciam os golos. Também são elas que falam de traições ao matrimónio. São ainda elas que discutem aspectos do fim-do-mundo em 2012. Não o que resulta da crise económica. O outro, o da profecia Maia, o que se pode realmente discutir. Parece que há discórdia quanto à data específica. Haverá quem afiance ser a 12/12/12, outros colam-no ao fim-de-ano. Mas estes serão empresários oportunistas, a planearem uma passagem-de-ano de arromba. Não está cientificamente provado (enunciaram-no mesmo assim) que o Armagedão coincida com o reveillon, mas não é exagerado dizer que naquela mesa se tratou do fim-do-mundo como se trataria do fim-de-ano (opções de vestuário incluídas).
E talvez venham a dar no mesmo. Não são as melhores festas aquelas em que gozamos como se não houvesse dia seguinte? Em 2011 será talvez precoce, mas em 2012 esse espírito é garantido.

Feia

A certa altura, os homens também falaram, um em particular, o patrão, não poupando nos decibéis, depois das libações. E o que disse? Eis a transcrição, textual:
— Não consigo gostar daquela filha da puta. Penso que não passa de uma cabra de merda. Olho para a cara dela e apetece-me espancá-la.
Os outros machos da mesa estranharam ou quiseram ser irónicos:
— Não há lá nenhuma rapariga que não seja uma querida!
Ele não se comoveu:
— Para mim é mais uma filha da puta que não faz a ponta dum corno. Olho-lhe para a cara e é isto que penso.
— É feia? — perguntou uma das mulheres, mas não há certeza que estivesse a ser sarcástica, que se tivesse servido da palavra para denunciar o interlocutor.

Emigrar

O problema não está na emigração, rapazes. Emigrar é, consoante os casos, uma saída, uma alegria, uma revelação, uma necessidade, um percalço, uma tragédia. O melhor de uma vida ou o fim de uma vida. Uma oportunidade ou o fim do mundo. Cada um sabe de si.

Emigrar era, como sempre, um receio ou um desejo, um pesadelo ou um sonho. Agora é talvez uma premência. Não só porque há uma crise. 

Ridículos

O Governo está a fazer, digamos, o que pode? Aceitemos que sim. Mas não se está a transcender, isso é certo. Como tal, é um manifesto exagero incensá-lo, lamber-lhe as botas. Vocês parecem os indefectíveis de Sócrates, rapazes. Tão ridículos quanto eles foram.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Graffiti

Ainda estava longe a ameaça quando K. declarou que prescindiria do subsídio de férias ou do de Natal, ou de parte do salário, se essa fosse uma forma eficaz de aliviar problemas, prevenir males maiores. Não porque tivesse um particular peso na consciência. No que dependeu dele, não houve delírios despesistas, e pessoalmente K. não contraiu dívidas insensatas (embora não tivesse poupado). Foi sempre crítico da paixão nacional pelo betão e pelos investimentos frívolos. Não percebia porque, para o país, os melhores presidentes de câmara ou primeiros-ministros eram os que deixavam “obra”, no sentido que os empreiteiros davam ao termo. Atribuía isso a uma etimologia limitada: o povo não tinha sido familiarizado com a amplitude semântica das palavras e o erro trazia consequências à praxis dos eleitos, condicionava-lhes o desempenho (embora K. soubesse que os eleitos, iguais entre iguais, não faziam o que faziam por se sentirem constrangidos).
Porque não tinha passado de pobre a arrivista, K. abominara o espírito novo-rico da época, o consumismo exibicionista, o materialismo dominante. Quando um dia teve de trocar de carro, escolheu o segundo mais barato do mercado (por uma questão cromática, confessava esse capricho) e desagradou-lhe que não estivessem disponíveis unidades sem ar condicionado. K. não era ascético, mas de Inverno chegava-lhe a chauffage e de Verão gostava de circular de vidros abertos, cabelos ao vento.
O seu desprendimento do dinheiro não era revelação de um espírito luterano, nem era sintoma de masoquismo. Resultava da consciência de que havia pessoas em piores condições, pessoas para quem qualquer corte nos rendimentos seria literalmente (e não literariamente) um drama. E resultava também da consciência de que algumas coisas boas no país seriam postas em causa se a crise se abatesse com a máxima fúria.
Não foi por isso para K. um choque quando o Governo anunciou aquelas medidas de austeridade. O futuro, o seu futuro, preocupava-o, claro que sim, mas ele estava psicologicamente confortável com os sacrifícios. Pelo menos enquanto pensou que eles eram por uma boa causa. Ou inevitáveis. O desconforto veio quando K. percebeu que se ia atravessar a longa crise sem que fosse aproveitada a oportunidade para tomar medidas que moderassem os rendimentos dos mais ricos em favor dos mais desfavorecidos: os relatórios continuavam a indicar o crescimento descarado do fosso.

Quando caiu na rua, K. teve mais tempo para ver os grafitti, as palavras-de-ordem inscritas nas paredes. Lamentou que entre os seus talentos não estivesse o do desenho. Não gostava de pichagens abjectas ou esteticamente irrelevantes, medíocres, não gostava de borrões idiotas, palavras ocas, mas apreciava quando os autores sabiam transformar uma parede arruinada numa obra de arte, mesmo que subversiva, ou quando o humor ou a inspiração dos slogans se sobrepunham ao eventual prejuízo urbano. Ao contrário de palavras-de-ordem irónicas como «o último a sair apague a luz e feche a porta», não o costumavam entusiasmar slogans como «os ricos que paguem a crise». Mas agora, enquanto aquecia as mãos na fogueira improvisada, perguntava-se se ainda tinha razões para permanecer fiel ao seu pensamento razoável, se aquele não era o tipo de “demagogia” a que um sem-abrigo como ele estava moralmente autorizado a recorrer.


A vida de K. (3)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Naufrágio

Há algo de naufrágio declarado quando o governo e os blogues que o formataram e lhe abanam as folhas de palmeira nas faces se obstinam tanto em mandar bugiar emigrar os conterrâneos. O barco está a ir ao fundo, é notório, tanta água mete. E a culpa há-de ser em grande parte dos que estão dentro do barco, todos nós. Mas desconfio que o capitão não vai ser o último a abandoná-lo. Por enquanto, ainda é jovens e professores primeiro, mas mais para a frente há-de ser o salve-se quem puder — na esteira, aliás, de um passado exemplar.
Ainda um dia havemos de ser elucidados sobre como é que esta aposta na emigração de jovens e quadros se coaduna com aquela mágoa tão típica da direita com a infertilidade do país, o envelhecimento da população. Afinal, a juventude faz ou não falta para viabilizar economicamente a pátria?
Posso adiantar-me e esclarecer o paradoxo. A preocupação com a natalidade existia no tempo em que era preciso defender com estatísticas a falência iminente do Estado Social, agora que ele está em processo de desmantelamento já não são precisas muletas dessas.
Não tenho ilusões quanto ao que é possível o governo fazer nas condições actuais. E há uma boa dose de pragmatismo na exortação à debandada, claro que sim. Só que não precisamos de um Governo para nos dizer o que fazer quando a coisa fica preta, não é exactamente para isso que o elegemos. Seria insensato (é insensato) pedir-lhe que nos assegure o nível de vida anterior, como pedem as diferentes corporações no seu habitual egoísmo. Sempre foi insensato exigir ao Estado que garantisse emprego para todos nas profissões escolhidas, saídas automáticas da universidade para o mercado de trabalho. É estultícia conceber-se um Estado assim. Mas, por outro lado, o mínimo que pedimos a um governo é que lute pela diminuição do desemprego e estimule algo de patriotismo, ou melhor, de participação colectiva no bem comum. As pessoas sentir-se-ão mais confortáveis a pagar impostos e aumentarão mais facilmente a produtividade se o fizerem em nome de um país que se entristece com a saída dos nativos, não de um que os menospreza ou dispensa jactando-se de “frontalidade” e “pragmatismo”.
Não me repugna, porém, que o Governo exorte os conterrâneos a mudar de área profissional (como aliás também fez, diga-se em abono da verdade). Mas para que este apelo fosse mais do que mera hipocrisia, seria preciso que a economia estivesse a ser estimulada para criar emprego. Seria preciso que passássemos da fase do castigo moral (a “solução” exclusiva e beatífica da austeridade) à do vamos lá tentar resolver esta merda, nem que fosse com campanhas de repovoamento do interior, regresso ao sector primário. Está o Governo a fazer algo mais do que gerir a insolvência? Tem planos neste âmbito? Tenciona mostrar na União Europeia que assim não vamos lá e que eles também têm culpa no que nos aconteceu, que os juros que pagamos são inibidores? Não, claro que não. Por isso, quando o Governo indica a porta de saída aos seus cidadãos, não está a ser frontal — está a confessar a derrota, a anunciar que desistiu. Provavelmente antes mesmo de ter tentado.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Nem tudo está perdido

«Hello, I am 15 years old. I would like to apologize for what my generation has done to music. That is all.»

[Comentário no Youtube a um vídeo dos Beatles]

Still my guitar gently weeps

Há muito que K. não acompanhava a sua vida à guitarra. Quando se tornou feliz não soube que utilidade dar à velha Ibañez e encostou-a a um canto, a acumular pó. Não era de acordes festivos; se tinha de tocar, dedilhados e gemidos era o que tirava das cordas. A sua vocação perdeu por isso sentido, era um ofício de tempos cinzentos, desactualizou-se. Nos últimos anos, sempre que lhe pediam para tocar, K. recusava, preferia desiludir os convidados a dar o tom errado aos convívios. Se se pusesse a tocar sair-lhe-iam melodias pungentes, lamentosas, boas para embalar a melancolia. Estava totalmente fora de questão cometer essa indelicadeza, estragar as festas, deprimir a audiência. Os amigos recordavam-lhe o talento e sentiam-se vagamente saudosos de o ouvir, mas K. resistia a avivar-lhes a memória quanto ao carácter específico do seu talento — era quase tão perigoso referi-lo como exemplifica-lo. K. estava feliz, os convidados estavam felizes, se havia necessidade de música, o repertório teria de ser alegre. Entregava a guitarra a um dos outros sem sequer a afinar (mesmo essa tarefa seria plangente, nas suas mãos) e em poucos minutos a música era como devia ser.
Por mais de uma vez esteve para se desfazer da guitarra. Que interesse tinha mantê-la? Não era pessoa de acumular tralha, memorabilia. Desconfiava até que havia qualquer coisa de mórbido em conservar aquele instrumento de uma vida anterior, quase como guardar as relíquias de um morto. Censurava-se a inércia, a falta de coragem, perguntava-se se não devia temer a possibilidade de um objecto assim trazer má-sorte.
Depois os mercados entraram em pânico ou ficaram de mau humor, uma destas coisas, e K. deu consigo a pegar na guitarra. Inicialmente apenas a encostou ao peito, transmitindo os seus batimentos cardíacos à madeira. Chegava a casa, sentava-se e punha-a sobre as pernas, apoiando o tórax nela. Mais tarde, fez soar as primeiras notas. Quando deu por si, tinha deixado crescer as unhas da mão direita, voltaram os harpejos, os dedilhados, as melodias comoventes e lúgubres que saíam do nada.

K. nunca tinha tocado no metro. Agora que o fazia, perguntava-se se devia estar contente por ainda ter a guitarra ou se devia amaldiçoar-se por a ter conservado. Talvez a velha Ibañez se tivesse cansado do silêncio ou do uso indevido e tivesse exigido de volta a vida poética de antigamente. Talvez tivesse simplesmente atraído azar — mais do que atraía moedas para o chapéu.

A vida de K. (2)

sábado, 17 de dezembro de 2011

A relíquia

O Público tem na sua última página dois colunistas e uma relíquia. Infelizmente, não segue a política dos museus nacionais de fechar a página ao fim-de-semana. Mas devia. Se a ideia é ter naquele espaço representantes da direita e da esquerda, o Pedro Lomba e o Rui Tavares cumprem-na com distinção. O tipo que que entra de serviço à sexta desequilibra o arranjo. Mas não exactamente por favorecer um dos pratos da balança: antes porque acrescenta uma dimensão bizarra às coisas. No Público, há a realidade, há as interpretações da esquerda e da direita e há a visão do Vasco. É um pouco como se diz dos ingleses: bem comportadinhos nos dias úteis e bêbados ao fim-de-semana. É divertido, claro, ler-se a última página do Público de sexta a domingo, mas, como a cerveja, não traz proveito à vidinha que nos espera na segunda. Só que, instituído como está o Vasquito ao fim-de-semana, prescindir agora o Público da sua prosa seria como a New Yorker abdicar do flâneur e da borboleta. (Ou só da borboleta, pronto.)

Tendo em conta a crise da imprensa, talvez o Público pudesse proletarizar-se um pouco e ir buscar ao JN o Manuel António Pina. Ganhava-se a classe média e ganhava-se em pontaria, é certo, mas prejudicava-se a decoração da casa. Os dois são escribas sucintos, mas têm utilidades diferentes: Manuel António escreve pouco e acerta muito; os textitos do Vasco vão bem com o grafismo e as cortinas da Redacção. No dia em que acabem com ele (salvo seja) repetir-se-á o avassalador drama ocorrido quando o Público mudou de logótipo: lágrimas e ranho por uma ou duas infindáveis semanas.

Claro que se o Público dispensasse o Vasco a ERC poderia intervir. Quer dizer, talvez não a ERC — o Instituto dos Museus e da Conservação. Ou o Instituto de Arqueologia*. Uma dessas entidades tão absolutamente caras ao novo poder decerto sairia em defesa da sua relíquia queirosiana.


* Como é evidente, o Governo decidiu fundir o IMC e o IGESPAR apenas para estragar a piada.


[Nota: texto revisto e com pequenos acrescentos.]

Rosso

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Planos de vida

K. tem um objectivo de vida: acumular suficientes livros para a meia-idade (não conta ter velhice, diz que a vida não está para luxos desses). K. acredita que, nas noites ao relento, os livros dão melhor forragem do que os jornais, é preciso saber escolhê-los volumosos e de capas maleáveis. Há um livro que K. procura mais do que todos: A Guerra do Fogo. É uma demanda com razões afectivas, mas com um sentido prático, se se podem colocar as coisas assim. Em novo, K. leu grande parte do livro de J.-H. Rosny numa noite de tempestade à luz da vela e o que recorda são camadas sobrepostas de prazer: a leitura saborosa, a luz intimista, o calor aconchegante do fogão a lenha, o frio e a chuva e o vento na rua a lembrarem como é bom (e suficiente) ter abrigo e lume. Não lhe serve qualquer edição. K. precisa de uma antiga, com páginas amarelas e o cheiro certo, aquele que possa só por si evocar a história de uma infância feliz. K. acha que vai precisar desse género de sortilégios quando as noites forem mesmo frias e não houver luz para ler, ou ele não esteja com disposição para isso — K. imagina que não há muita disposição para ler quando se é um sem-abrigo. É esta a vantagem do livro impresso, pensa ironicamente, se não o podemos ler, continuamos a poder cheirá-lo e ter assim o nosso lume e a nossa noite aconchegada. (Façam isso com o kindle e o seu cheiro neo-liberal a máquina de calcular made in China, diz K., um pouco agastado.)

A vida de K. (1)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Homo Sapiens Sapiens

Aos escritores, aos editores e aos jornais pede-se-lhes que se reinventem. Aos artistas de palco pede-se-lhes pouco, talvez que se deixem extinguir sem demasiado ruído. Ao público nada se lhe pede. O público é soberano. Um dia o público vai determinar que só os urros são literatura ou música ou notícia e aos escritores ser-lhes-á pedido que grafem onomatopeias, aos músicos que sejam minimais e repetitivos, aos editores que descubram formas de embalar e vender grunhidos e aos jornalistas que nada perguntem, apenas segurem no microfone.

Como as artes, os livros e os jornais estão condenados à irrelevância ou à imbecilidade. Parece não haver público para as produções do intelecto. Não é certo, por isso, que haja um estádio para a humanidade acima do Homo Sapiens Sapiens. Mesmo que o mundo continue, a probabilidade é que os deuses nos retirem a dupla adjectivação, como as agências de rating retiram AA aos países e às empresas.

*A direita achará tudo isto inevitável e acusará a esquerda e os keynesianos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O espantalho

Fez a sua aparição numa curva da A24, na zona de Viseu. Empoleirou-se na laje de betão que serve de telhado a um barraco de apoio à agricultura — o terreno à margem da estrada é produtivo e é cultivado. O espantalho alçou-se ali, presume-se, para afastar a passarada. No entanto, há dois anos que ele fita é o trânsito, saúda-o. Na primeira passagem, a sua antropomorfia talvez assustasse o condutor desprevenido, mas com a repetição da viagem criava-se uma empatia. O espantalho era simpático, talvez até para os irmãos pássaros, um seguidor de Francisco de Assis. Provavelmente não era um espantalho, mas um totem místico, o padroeiro dos motoristas — não se vêem marcas de acidentes naquela curva.
Há meia dúzia de meses, arranjou companhia. Foi agradável vê-lo partilhar o horizonte com alguém da sua espécie, o mesmo ar négligé, a mesma forma original de combinar peças de roupa, a mesma barriguita de palha. Talvez o novo indivíduo seja uma senhora-espantalho, e, nesse caso, podemos imaginá-los por vezes a fazerem gazeta à função protectora e a olharem o pôr-do-sol nos montes (ou no mar, a imaginação não tem limites). Alguém deveria subir ali e colocar o braço de um sobre o ombro de outro.
Na verdade, talvez o tenham feito já, num fim de tarde auspicioso ou numa noite de lua cheia: na passada quinta-feira foi detectado um terceiro espantalho no mesmo telhado. A condução atenta não permitiu discernir pormenores, mas não custa aventar que se trata de descendência; o período de gestação de um espantalhinho não tem necessariamente de ser de nove meses.
Em pouco tempo, a curva da A24 ganhou uma tríade protectora, como dita o Livro. Passa-se ali e adquire-se um sorriso instantâneo — o sorriso que nos tinha sido tirado ao cruzar o pórtico das portagens, instituídas na mesma quinta-feira.
Viajar no interior do país pode ter ficado mais caro, mas há felizmente alguém que zela pelo bom humor dos viajantes, se o Governo não tem vocação para isso. 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Sofisma (Requiem)

Os amigos andavam-lhe a dizer que estava a compor melhor do que nunca. Tinha uma página no Myspace e fazia para ali upload das peças que criava ao piano no estúdio caseiro. No entanto, a crise acabara com os concertos, e os discos há muito não se vendiam. Gostava de compor, mas gostava mais que o ouvissem, de preferência em directo, em clubes de jazz. E os clubes de jazz também fechavam as portas, falta de clientela. Estava a compor melhor que nunca, mas estava também mais deprimido do que nunca. Estar deprimido era importante, crucial — a música saía-lhe do sofrimento, da melancolia, do desespero. Mas isso costumava ser suportável, porque a ideia de tocar ao vivo num ambiente de penumbra e fumo (também tinham acabado com o fumo) mantinha-o vivo, a expectativa de umas horas de felicidade relegava os dias de chumbo.
Numa primeira fase, pediram-lhe sem subtilezas que encurtasse as actuações, a maior parte da gente já não ia pela música, as despesas de funcionamento tinham aumentado, era preciso estimular o consumo dos clientes, facilitar o trabalho dos empregados que sobraram. Quer dizer, a música ainda era importante, fazia a diferença, mas três quartos de hora bastavam para cumprir o ritual, não era? Meia hora. Decerto não lhe interessava tocar se não o ouviam, e nos últimos tempos era notório que as pessoas se davam menos conta do que acontecia no palco. Não era também verdade que já nem os melómanos estavam para as quatro horas da ópera? Riam-se. Mais tarde decretaram em cartel regras que proibiam encores (a sua desculpa para prolongar as actuações), mesmo se algumas mesas esquecidas da linha da frente ainda os pediam.
O circuito de clubes, que em tempos fora a espinha dorsal da noite, estava agora reduzido a meia dúzia de apêndices obsoletos, em processo de reorientação, onde pernoitavam os saudosistas e os neuróticos. Bons consumidores, mas com dívidas e em número decrescente ano após ano. Morriam sem que fossem substituídos. Pertenciam a um povo que não se renovava. O circuito era agora um bas-fond sem charme.
De modo que estava a compor melhor que nunca, mas na verdade havia meses que não compunha, salvo uns adágios, uns esboços de tema, talvez promissores, inspirados, mas sem aprofundamento, continuidade. Sentia-se derreado de tristeza e frustração — o que normalmente o fazia correr para o piano —, mas sem um palco no horizonte achava supérfluo o exercício. Morria aos poucos do esforço. Recentemente eram mais as vezes que ficava na audiência a assistir ao afundamento do meio do que aquelas em que se sentava ele mesmo ao piano. Já nem tamborilava na mesa.

Quando na última noite consultou as estatísticas no contador de acessos da sua página, ficou a olhar para o gráfico de uma empresa em bancarrota. Descobriu que em dois meses, os últimos, ninguém sequer visitara o site, as mais recentes composições não tinham sido postas a tocar nem uma vez. A não ser que houvesse avaria no servidor, tinha de concluir que os próprios elogios dos amigos eram só uma tentativa educada, instintiva, de o animar.
Antes de pendurar a corda, ainda teve um pensamento optimista: o divórcio do público libertava-o do seu compromisso com a música — e, sem razões para compor, não tinha afinal necessidade de ficar deprimido.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O povo, pois, o povo

Envelhecer traz problemas, não só aos ossos e à tripalhada. De repente damos por nós a transbordar de bons sentimentos, a mancar para a esquerda. Havendo barricadas, saltamos para o lado do povo. Infelizmente, certos acontecimentos obrigam-nos a reconhecer o erro. Não há em Portugal um povo que mereça ser salvo. No dilúvio talvez se enchesse um bote, não mais do que isso. Os nossos bons sentimentos carecem de um objecto que os justifique. Podemos criticar com razão a direita por fazer pagar o justo pelo pecador, mas talvez seja também verdade que as nossas medidas para poupar os justos salvam uma quantidade insuportável de pecadores.
Isto, contudo, não absolve Passos Coelho — obriga-o a consultar-me caso a caso.

Domingo desportivo II

Tord Gustavsen Ensemble + Kristin Asbjornsen.
Veja também Kristin Asbjornsen + Pedro Mexia (4:53)

Domingo desportivo I


O terceiro tabuleiro*

«Seria revoltante, sendo Portugal o segundo país mais desigual da Europa, não ir concertando as coisas de modo a tornar o país mais justo.»
Perante uma evidência que ele próprio enuncia e reconhece, Passos Coelho promete ser mais rigoroso com… a atribuição do rendimento social de inserção. A julgar pela sua entrevista ao Público, é assim que ele pretende, digamos, tornar o país mais justo.
Rimos ou choramos?

* Os três tabuleiros de Passos Coelho: «contas públicas em ordem»; «tornar o país mais competitivo» e, digamos, «tornar o país mais justo». Riam, riam.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Pré-coito

Ela faz as despesas da conversa. Ele solta uns monossílabos, muito de vez em quando, como o ajudante de maquinista punha carvão na fornalha da locomotiva quando ela circulava sem pressas em terreno plano — displicente e sem encher a pá, o grosso do tempo encostado ao cabo. No caso, é o garfo que fica frequentemente na vertical sobre o prato, ao jeito das crianças em luta com as couves, embora ele não recoste a cabeça rapada na mão. A aposta fácil é a de que o tipo, grandalhudo, se aborrece, escolheram a sala sem TV. Para beber, uma garrafa de tinto. Na frente dele, uma parede cujo branco já viu melhores dias; na dela, a três mesas de distância, alguém lê o jornal e na mudança de página espreita os comensais.

Magra, frágil, defende-se erguendo uma barreira de palavras. Ou, não a subestimemos, ataca como pode, com uma salva de artilharia que tenta confundir o inimigo. As molduras na parede são de súbito o motivo da conversa e ele é obrigado por momentos a abandonar a sua pose egípcia para se revelar tridimensional, mas fá-lo ainda em silêncio, aparentemente desinteressado, talvez a recapitular os últimos resultados da champions league.

À passagem para as páginas internacionais, ouve-se a voz dela, um ou dois decibéis acima do discurso ininterrupto de antes. Alta o suficiente para se sobrepor aos últimos trambolhões do euro. «Aborreces-me!», diz ela. O tipo do jornal levanta a cabeça e tenciona chamar o funcionário: alguém mexeu na decoração sem pré-aviso, ou mudaram de canal sem o consultar. Acha que tem uma palavra a dizer no que toca à escolha dos programas — mesmo que afinal não haja televisão. Mas logo esquece isso para se maravilhar com a natureza humana. O cenário que tinha dado por adquirido a três mesas de distância sublevou-se e o que pode observar agora é um gajo careca e tímido que tenta segurar nas mãos e beijar os dedos finos da amada. E uma tipa magra com ar de megera que sonega a osculice do imbecil que aceitou ter por conviva. Ela esbofeteia-o depois repetidas vezes com as pontas dos dedos. Não o quer ferir, não fisicamente. Mas não se importa de o humilhar perante o tipo que se debate ruidosamente com o jornal. E o parceiro fala, por fim, solta umas palavras em voz fina, trémula, uma voz que lhe reduz o corpanzil ao recheio de um peluche: «Môr...»

Por alturas do editorial, que no Público vem nas últimas páginas, como se sabe, o que se vê é a cabeça dela entre as mãos dele, a cabeça dele sobre a cabeça dela, tudo em cima da mesa, rebolando, mas sem semelhanças com o judo ou o sumo — uma ronronice de felinos em pré-coito. A garrafa está vazia.

Osso Vaidoso


A crise e a naftalina de turno devolverão a província à sua condição subalterna e atávica — é esse o plano. A que a província aliás não se opõe. No entanto, por um hiato a província foi um local decente para habitar. Um post do Luís no Rebuçado de Mentol fez-me recordá-lo. Dezembro do ano passado. Osso Vaidoso: Ana Deus e Alexandre Soares em concerto. Um de tantos momentos inesperados. Os textos de Regina Guimarães. Também para o Teatro de Ferro. Que já agora me recorda a Circolando. E o Teatro de Marionetas do Porto. E… As harpias e os assessores de serviço farão o seu serviço obliterador, claro que sim, mas talvez a memória seja um osso duro de roer. Um osso vaidoso.

Momento Asimov II


















Roubada aqui.