— Estou a magoar?
O rapaz, com uma expressão torturada no rosto, ombros encolhidos como se
tivesse deflagrado uma granada, responde o não mais sim de que K. se lembra.
(A espreitar tão discretamente quanto pode pelo vidro da montra, K. conhece
o tormento do rapaz — também foi um dia cliente daquele salão. Houve um tempo
em que K. podia recorrer àquele género de serviços, o luxo de um corte de
cabelo a doze euros. Lembra-se de como a figura dócil, de prima carinhosa, daquela
funcionária escondia uma harpia, que se revelava no momento em que as pessoas
tinham o azar de coincidir no seu turno de trabalho. Também K. quis muitas
vezes dizer não quando dizia o seu sim educado. Até ao dia em que começou a espreitar
pela montra antes de entrar — e a retroceder nos seus passos se estava de
serviço tal instrumento da Inquisição.)
Depois o equilíbrio nas forças em conflito altera-se. Acabado o
desbaste, a cabeleireira entra nas minudências, e aí o rapaz tem uma palavra a
dizer. Há que assegurar determinada proporcionalidade entre a forma como a nuca
é rapada e os lados se penteiam para a frente. Um gesto em falso e é a vez da senhorita
experimentar a violência do rapaz, patente nos olhares que lança ao espelho e
nos monossílabos escandalizados que solta se ela avança por onde não deve.
O penteado de um adolescente é uma problemática que não deve ser abordada
de ânimo leve. Nisto, não difere muito a época actual dos tempos de K., talvez
apenas na banda sonora. K. teve o seu momento Duran Duran numa altura em que os
demais rapazes deixavam crescer cabeleiras à Iron Maiden ou permaneciam nos
seus cortes medianos e clássicos de burgueses anódinos ou sucumbiam à
escalpelização periódica das famílias mais pobres. Também nessa altura o drama
maior de uma vida se relacionava muitas vezes com uma tesoura que progredia em
terreno proibido — na adolescência, o tempo que leva a repor uma madeixa é
exasperante, tem escala cósmica.
Agora K. submete-se sempre que há uma máquina disponível à estética
militar, a clássica, a do pente zero. Há ameaças antigas que regressaram, piolhos,
lêndeas, e quando se anda na rua dispensam-se contratempos extra. Já não estão presentes
mães que nos passem com zelo pelos cabelos, acariciando agudamente o crânio,
pentes de dentes juntíssimos, que nos desenriçam e livram de parasitas e outros
males do couro cabeludo.
A
vida de K. (5)
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