Magra, frágil, defende-se erguendo uma barreira de palavras. Ou, não a subestimemos, ataca como pode, com uma salva de artilharia que tenta confundir o inimigo. As molduras na parede são de súbito o motivo da conversa e ele é obrigado por momentos a abandonar a sua pose egípcia para se revelar tridimensional, mas fá-lo ainda em silêncio, aparentemente desinteressado, talvez a recapitular os últimos resultados da champions league.
À passagem para as páginas internacionais, ouve-se a voz dela, um ou dois decibéis acima do discurso ininterrupto de antes. Alta o suficiente para se sobrepor aos últimos trambolhões do euro. «Aborreces-me!», diz ela. O tipo do jornal levanta a cabeça e tenciona chamar o funcionário: alguém mexeu na decoração sem pré-aviso, ou mudaram de canal sem o consultar. Acha que tem uma palavra a dizer no que toca à escolha dos programas — mesmo que afinal não haja televisão. Mas logo esquece isso para se maravilhar com a natureza humana. O cenário que tinha dado por adquirido a três mesas de distância sublevou-se e o que pode observar agora é um gajo careca e tímido que tenta segurar nas mãos e beijar os dedos finos da amada. E uma tipa magra com ar de megera que sonega a osculice do imbecil que aceitou ter por conviva. Ela esbofeteia-o depois repetidas vezes com as pontas dos dedos. Não o quer ferir, não fisicamente. Mas não se importa de o humilhar perante o tipo que se debate ruidosamente com o jornal. E o parceiro fala, por fim, solta umas palavras em voz fina, trémula, uma voz que lhe reduz o corpanzil ao recheio de um peluche: «Môr...»
Por alturas do editorial, que no Público vem nas últimas páginas, como se sabe, o que se vê é a cabeça dela entre as mãos dele, a cabeça dele sobre a cabeça dela, tudo em cima da mesa, rebolando, mas sem semelhanças com o judo ou o sumo — uma ronronice de felinos em pré-coito. A garrafa está vazia.
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