segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O envelhecer dos perdedores

Enquanto escrutino as degenerescências da minha pele como os macacos se catam, recordo a reportagem que vi sobre um meio-maratonista de oitenta e tal anos. Começou aos sessenta.
Com cinquenta e três, não cheguei à meia-maratona e encontro cada vez mais pretextos para deixar as sapatilhas penduradas. Os joelhos talvez frágeis, as costas a dar sinais misteriosos, o coração avariado. Mas também frio a mais, calor a mais, tempo a menos. Tudo me serve para postergar.
Nos últimos dois anos tive duas quedas e nos momentos mais duros comigo mesmo acuso-me de as ter provocado só para passar um mês ou dois sem correr, sem dilemas, sem remorsos.
O paradoxo é que gosto de correr (não só de chegar ao fim da corrida). Falta-me é paciência para os rituais preparatórios e energia para vencer os incómodos (planear, equipar, sair para o frio, sair para o calor, sair da cama).
Deve ser isto o envelhecer dos perdedores: consumir a perorar sobre um assunto o tempo que daria para tratar dele. Podemos ter a sorte de não chegar a morrer de doenças cardiovasculares, mas morremos sem dúvida de remorsos.

O aranhiço

Um bizarro aranhiço passeia-se no meu braço. Já levo engatilhado o piparote quando me apercebo do seu aspecto realmente singular e não tenho reflexos para sacar do telemóvel e lhe tirar uma fotografia antes de o lançar pelos ares. Ainda o procuro no chão, mas sem sucesso. E assim, ao disparar antes de perguntar, perco a oportunidade de aparecer nos livros de entomologia como um dos raros milhares de indivíduos que descobriram uma nova espécie de insectos.

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(Um feito maior do que descobrir uma nova espécie de insectos deve ser distingui-la de entre os milhões de espécies que existem. O primeiro é um caso de sorte; o segundo, um labor de enorme paciência e acuidade visual.)

Fotonovelas

Pesquisando ociosamente imagens de fotonovelas, por vaga sugestão do post anterior, fui tomado pela ideia de que, considerando o grafismo e a estética, assim como o visual e os penteados dos protagonistas, as fotonovelas estavam ainda mais próximas das revistas pornográficas do que o erotismo está do sexo. Ou isso ou o facto de me ter tornado pubescente no final dos anos setenta contaminou toda a imagem mental que tenho da época.

domingo, 28 de agosto de 2022

Leituras de Verão

Decidido a ir à piscina, meti a toalha e um livro no bornal e pus-me a caminho. Quando desenrolei a trouxa, pousei o livro na espreguiçadeira com a capa virada para cima e tive um breve estremecimento de embaraço. O livro chama-se Os Beijos e apresenta a todo o tamanho da capa — a preto e branco para ser ainda mais evocativo — um cavalheiro a beijar o queixo de uma donzela, ambos de amorosos olhos fechados, ela com certa malícia nos lábios.
Estava já a imaginar toda a fauna em redor da minha palmeira, pelo menos a da minha idade, ao ver-me com aquele livro nas mãos a servir de pára-sol, em exibição ainda mais ostensiva do que nas estantes de destaques da Bertrand, comentar com desdém: «ora ali está um maduro a ler um tomo da Corín Tellado».
Depois, constatando que hoje não havia interferências pimba na rádio, pensei que alguém tinha que trazer para a tarde balnear uma sugestão de subcultura, para agora não desiludir quem me lê. Recuperei o domínio e mergulhei decidida e ornamentalmente no meu romance do coração.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

De pequenino é que se torce o pepino

Não faço de propósito, juro. Estas coisas vêm ter comigo. Hoje a banda sonora era o êxito estival “Nós pimba” e ouvia-se, não na piscina — onde já nos vêm habituando à grande música intemporal —, mas nos relvados que bordejam o castelo onde sirvo.

Um rebanho de crianças, dessas que, num campo de férias, envergam cedo camisolas e bonés uniformizados, era orientado por um rapazola de barba que tinha instalado um par de colunas potentes à sombra de uma árvore. Não sei se a intenção da música era lúdica ou pedagógica — e creio que o monitor não saberia distinguir a primeira da segunda.

Já o vi noutra ocasião (ele ou um homólogo) pastorear o grupo de infantes como na universidade se conduzem os caloiros: filinha disciplinada à força de berraria viril e, nos momentos felizes, entoação colectiva da velha melodia militar que a Robbialac celebrizou.

Não se pode dizer, talvez, que havia proselitismo consciente na sua opção musical de hoje — ainda que juntar crianças e versos pimba debaixo de uma mesma sombra pareça a ilustração viva do ditado «de pequenino se torce o pepino» na sua acepção onanista. Quim Barreiros era capaz de escrever, se ainda não o fez, uma epopeia com este tema.

Mas serei benévolo. Não é justo, ainda que tentador, invocar a versão soft porn do ditado; o que testemunhei não era, enfim, uma aula de aeróbica masturbatória (seria caso para chamar os pais de Famalicão). O que está em causa é um entendimento alegórico tradicional: «tal como os pepinos, é necessário moldar as crianças o mais cedo possível». O voluntarioso rapaz-monitor limitava-se a fazer pela educação estética das crianças o que a sociedade vem fazendo há muitos anos de forma empenhada. Toda a festa de massas da família portuguesa, mesmo quando o mote ou o alvo são as crianças, decorre hoje quase sempre sob a égide e a cascata sonora da música e da poética pimba. Que crianças de tenra idade sejam entretidas com lírica brejeira e não raro misógina já só é obsceno num plano teórico em desuso. Isto não tira o sono a nenhum casal Mesquita Guimarães.

Para me confortar, mantive-me no domínio das alegorias brejeiras imaginando que o miúdo que por iniciativa pessoal saiu do grupo para baixar as calças atrás de uma árvore, mais do que a uma necessidade fisiológica, acorria a uma vontade de subversão. Pôs-se de cócoras não como o público perante os gurus do zeitgeist mas para uma declaração sobre a oferta musical do monitor.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Mudança de sistema

O movimento para substituir o capitalismo começará quando o trabalho for dessacralizado. Dois guarda-sóis ao lado, gregamente estendida na espreguiçadeira, uma teórica da mudança faz um primeiro ensaio: «Trabalho? Que palavra feia!»

Baile frustrado de Verão

Na piscina sou recebido pelas músicas “Baile de Verão” e “A Bela Portuguesa”, de José Malhoa e Marante, esses dois vultos da música nacional. Pensei: «lá sintonizaram na M80, raios!»
Uma vez que, considerada a hora, não tinha alternativa se queria dar um mergulho, dispus-me ao estoicismo: procurei dentro de mim a capacidade de conviver com tal banda sonora. As 700 e tal páginas de Fernando Aramburu seriam uma boa camada de isolamento acústico, mas nem precisava disso, não faltavam na minha memória exemplos de como era possível ser feliz apesar daquela música. Ou até com a ajuda daquela música (e de umas cervejas, é certo), presente já na segunda metade dos arraiais a que fui na vida. Tive então por instantes o meu momento “Querido mês de Agosto” e, trajado para o banho, dispus-me a experimentar uns passos de dança na plataforma da piscina. Não na modalidade que implicaria fazer a ronda das moças em biquíni para conseguir par, mas antes naquela que o dispensa — a alternativa dos bêbados de aldeia, habituados a recusas divertidas ou enojadas mas nem por isso desmobilizados.
Tinha já esticado um braço, levado a mão direita ao coração, erguido os ombros e fechado os olhos na pose apropriada, com o típico sorriso sonhador (e ébrio) nos lábios, quando a música mudou para um registo mais clássico da M80: “Johnny B. Goode”, na versão de Peter Tosh, a iniciar um set de reggae que evocava as discotecas ao domingo à tarde.
O melhoramento da sonoplastia não impediu, porém, que me sentisse como se tivessem atirado comigo à água fria. Depois disso, só me restava ler para disfarçar o despeito.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Anos 80 ultrajados

E agora os verdadeiros problemas do nosso tempo.

Já uma vez aqui escrevi que as emissões da M80 se parecem com uma colectânea de hits reunidos às três pancadas numa cassete de feira. Sei que há muito quem diga que os anos 80, com a sua própria e gloriosa variação de uma estética visual barroca, foram a pior década na música pop, mas uma rádio supostamente nostálgica daquela época poderia esforçar-se um pouco mais por não dar tanta razão aos críticos. Consegui-lo-ia, se tentasse.

Ouvindo hoje as vozes dos pivots e DJs da estação, ocorreu-me que são gente que não viveu os anos 80, muitos talvez ainda nem sequer estavam vivos nos anos 80, e por isso, não sendo manifestamente praticantes de arqueologia melómana, o que conhecem daquela era são os hits das colectâneas de feira. Decerto entram no ar imediatamente após uma sessão de formação que consiste em simular uma visita à feira de Carcavelos nos anos 80. É que nem as discotecas de província na época — embora a certa altura da noite lá passassem, sob vaias, o seu single dos Modern Talking ou da Samantha Fox (mas só em Agosto, para agradar a uma facção de emigrantes de visita à terra, e é que nesse mês as discotecas tinham também de rivalizar com os arraiais populares, que, de resto, ofereciam muitas vezes um alinhamento mais interessante do que oferece hoje a M80) —, nem as discotecas, dizia eu, tinham uma selecção musical tão deplorável.

A M80 é, portanto, uma rádio sacrílega. Tenta disfarçar — mal, cada vez pior — que é uma rádio pimba. Podia tentar disfarçar com música deste século — pelo menos não blasfemava.

domingo, 14 de agosto de 2022

O sentimento dum acidental

Desço, como um verso de Cesário Verde, a rua em obras, tomada por vária maquinaria pesada. Observo as manobras, os trabalhadores, os outros transeuntes, ouço as ordens, as imprecações, as risadas, as conversas, vagueando neutro como um travelling ou plano-sequência. O cheiro a combustível e o arranhar das escavadoras remete-me para Álvaro de Campos, mas não me concede a euforia dele. Saio do metal e do pó e do sol com uma vaga impressão sonâmbula de ter deixado para trás a batalha de El Alamein. Quando me afundo na sombra do parque, detenho-me a olhar o céu retalhado pela trama das árvores. Fico assim um minuto, com a sensação de que cumpri nisso metade do meu dia. A outra metade cumprir-se-á no regresso, naquele mesmo local, ao crepúsculo.
Pelo meio fica a vida acidental que executo com empenho mas sem decisão, menos surfista do que despojo de naufrágio nas ondas.

sábado, 13 de agosto de 2022

Títulos nobiliárquicos

O livro De Ansatte, de Olga Ravn, que ensaia uma crítica da vida regida pelo trabalho e pela lógica da produtividade, foi traduzido para português sob o título Os Funcionários, e isso parece-me quase eufemístico, como se Os Empregados ou Os Trabalhadores não fossem opções de tradução convenientes. O caso seria de uma refinada meta-ironia se, dentre as hipóteses possíveis na linguagem capitalista, a escolha tivesse sido Os Colaboradores.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

The twilight zone

Há várias horas na minha vida passada de que não guardo registo. Como se tivesse sido abduzido e recambiado à Terra com uma ressaca só explicável, digamos, pelo jet lag cósmico ou pelos efeitos de viajar à velocidade da luz, em linguagem técnica speed of light, speed para os amigos.
Mas creio que me lembraria se tivesse ido no dia 16 de Julho a Viana do Castelo apresentar o «perfeito», «maravilhosamente escrito» e «fantástico» livro de Rui Couceiro, que não tive ainda o decerto inesquecível prazer de ler.
A notícia da Porto Editora, em que tropecei por acaso, deve por isso referir-se a um meu alter-ego vivendo um pesadelo numa sinistra dimensão alternativa onde o obrigam a apresentar livros. Apre!

https://www.portoeditora.pt/noticias/alberto-manguel-quer-ser-porta-voz-do-primeiro-romance-de-rui-couceiro/209466

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Malefícios do calor excessivo II

Ao sair de casa e ao levar com um bafo saudita nas trombas, transformei-me por instantes no tipo que citei dois posts atrás.
Agora alguém há-de estar a escrever sobre o gajo que atravessou a rua a praguejar e o pôr-do-sol tão longe.