domingo, 14 de agosto de 2022

O sentimento dum acidental

Desço, como um verso de Cesário Verde, a rua em obras, tomada por vária maquinaria pesada. Observo as manobras, os trabalhadores, os outros transeuntes, ouço as ordens, as imprecações, as risadas, as conversas, vagueando neutro como um travelling ou plano-sequência. O cheiro a combustível e o arranhar das escavadoras remete-me para Álvaro de Campos, mas não me concede a euforia dele. Saio do metal e do pó e do sol com uma vaga impressão sonâmbula de ter deixado para trás a batalha de El Alamein. Quando me afundo na sombra do parque, detenho-me a olhar o céu retalhado pela trama das árvores. Fico assim um minuto, com a sensação de que cumpri nisso metade do meu dia. A outra metade cumprir-se-á no regresso, naquele mesmo local, ao crepúsculo.
Pelo meio fica a vida acidental que executo com empenho mas sem decisão, menos surfista do que despojo de naufrágio nas ondas.

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