Há no parque termal das Pedras Salgadas uma
mina cuja entrada é protegida por um portão com barras de ferro. Na minha
adolescência, o portão estava geralmente arrombado e, numa ocasião ou noutra, a
solo ou em banda, íamos ali espreitar, alternadamente estimulados por
curiosidade espeleológica ou excitação viciosa, dependendo se tínhamos visto
filmes de aventuras ou se ouvíramos comentários sobre actividades clandestinas.
Logo a seguir ao portão, a mina divide-se
em dois túneis. Um, muito curto, à direita, por onde se pode caminhar de tronco
erecto, culmina numa pequena câmara, à época decorada com obscenidades, erros
gramaticais e desenhos de genitália, a giz ou a carvão. A luz do dia não chega
lá ao fundo, pelo que a arte rupestre então praticada precisou de iluminação artificial
para se consumar. Isqueiros, presumo. Pelos vestígios acumulados no chão,
também se consumavam ali outras actividades, relacionadas com cigarros e
álcool, drogas e sexo. Não tenho, curiosamente, memória de ter visto nunca alguém
entrar ou sair dali, pelo que no meu imaginário os sinais de actividade humana
naquela mina ficaram sempre catalogados como vestígios arqueológicos,
contributos para a antropologia mas de uma perspectiva histórica, diacrónica.
Sobre o outro túnel, o da esquerda, não
havia mitos ou lendas disponíveis, suspeitas lúbricas ou de traficância, nem informação
histórica ou geológica que fosse partilhada connosco. A poucos metros da
entrada, o túnel estrangulava-se como uma artéria entupida, deixando apenas um
buraco com uns cinquenta centímetros de diâmetro, suficientemente estreito para
demover mesmo os que, para a satisfação dos seus vícios, tremiam de timidez agorafóbica ou eram fanáticos da privacidade.
De Inverno, o terreno baixo por onde se
acede à mina, estava quase sempre inundado, mas o nosso espírito exploratório
estava também em hibernação, à espera de melhores dias, pelo que não havia
perigo de incursões. Já no Verão, quando tínhamos mais tempo e ânsias, o acesso
era seco, franco, e a penumbra fresca convidativa. Muitas vezes íamos ali meter
o bedelho, até que chegou o dia, como inevitavelmente tinha de chegar, em que a
curiosidade foi maior do que o medo do escuro ou das consequências. Éramos
quatro e talvez duas lanternas, subtraídas às escondidas das oficinas
familiares. O terreno barrento estava suficientemente seco, no primeiro troço
do túnel, para nos deixar algo descansados quanto à roupa e às mães. Depois de
várias arremetidas e recuos, a testar com paus e pedras a consistência das
paredes e tectos da mina, cruzámos finalmente, rastejando, o pórtico que
separava a zona conhecida das entranhas insondáveis, munidos de varas curtas e
fantasias longas. Do outro lado, o túnel apresentava-se mais transitável, e o
tecto em arco, baixo, esculpido na rocha, revelava mão humana. Continuo a
ignorar se a mina foi construída para chegar a algum aquífero subterrâneo, se
estava relacionada com ancestral exploração de metais, mas na altura estávamos
seguros de que era tão antiga e misteriosa quanto a presença dos romanos na
península. Prosseguimos de cabeça baixa e olhar expectante, não necessariamente
à espera de encontrar ouro, mas atentos a tudo o que ali brilhasse e se nos
oferecesse. Havia algumas curvas suaves, algumas rectas curtas, crescente
humidade a escorrer de paredes e tecto, uma distância que hoje calculo ser um
quarto da que estimávamos na altura, até que surgiu uma câmara bastante mais
ampla e alta do que o lupanar ou sala de fumo do túnel da direita e sem
qualquer vestígio humano ou erro ortográfico visível. Éramos, notoriamente, os
primeiros contemporâneos a chegar ali. Nunca tínhamos ouvido falar de
expedições ao túnel da esquerda e agora comprovávamos o nosso pioneirismo. Não
havia graffitis, beatas, garrafas,
camisas-de-vénus, pénis ou vaginas. Nem sequer havia esqueletos humanos, o que
era outra boa notícia: não se morria ali enclausurado.
Houve fascínio e regozijo, naturalmente,
como se tivéssemos feito o percurso de Angola à contracosta antes de Roberto
Ivens e Hermenegildo Capelo. E frustração, logo depois. A câmara não era o fim
do túnel, mas este, no seu troço seguinte, descrevia uma curva tão apertada
para o desconhecido e estava tão inundado que nos fez hesitar longamente e por
fim adiar sine die a segunda fase da
expedição.
Havia, contudo, motivos de interesse
naquela câmara. Desde logo uma entrada de luz no centro da abóboda que nos dava
algum alívio, se pensávamos no perigo de ficar ali retidos por desabamento do
túnel, e nos fornecia um novo plano: detectar pelo exterior aquela entrada de
luz e medir assim o comprimento do túnel.
Dois de nós voltámos atrás com essa nova
missão. Um dos dois que ficaram, o mais ágil e destemido, propôs-se escalar a
parede da câmara para acenar dali com a sua vara e nos auxiliar na localização
do buraco.
Demos com o buraco, depois de saltar o muro
para o terreno contíguo ao parque, e, a passo, medimos uma assombrosa centena
de metros da entrada até ali — o que significa que o glorioso túnel da minha
adolescência, a aventura-mor daqueles anos, que tanta gabarolice nos permitiu e
tanta censura nos trouxe pela inconsciência e insensatez, se resumia,
certamente, a uns míseros vinte ou trinta metros.
Não consta que tenha havido outras
expedições nem há relatos de crianças desaparecidas, mas as últimas vezes que
passei ali o portão estava rigidamente fechado. O que se calhar se deve apenas
à liberalização dos costumes que tornou desnecessária a visita ao túnel da
direita.