A pouco mais de um terço do sétimo volume da Recherche deu-me para questionar a imagem da capa. Sem pensar muito no assunto, tinha achado as capas dos volumes anteriores bonitas e adequadas, com as suas reproduções de pinturas oitocentistas como ilustrações dos livros. Agora que uma boa parte do faubourg Saint Germain frequenta em plena Primeira Grande Guerra um hotel transformado em casa de prazeres homossexuais e sadomasoquistas, com pregos na ponta do chicote e peles esfaceladas e padres devassos e tudo, pensei que a escolha de uma imagem de um sarau elegante e decoroso foi afinal, não necessariamente de uma cumplicidade metaliterária com a hipocrisia do faubourg, mas talvez um pouquinho fofa demais.
A imagem, ao contrário das seis anteriores, apresenta-se monocromática, sépia, mas desconfio que isso se deve mais à tentativa de representar impressivamente a guerra e o fim de um tempo do que de indiciar o deboche. Percebo o interesse de evitar uma capa spoiler, só que em contrapartida a editora perdeu a oportunidade de captar nas prateleiras algum do leitorado fetiche das sombras de Grey.
P.S.: É incrível, e ao mesmo tempo gratificante, que tenha lido nesta idade tardia a obra de Proust não sabendo a priori mais do seu conteúdo do que a história mal contada da madalena. É certo que ameacei de porrada, década após década, todos os amigos e conhecidos que, leitores aviados da coisa, se pelavam por partilhar o enredo, e isso há-de ter tido o seu efeito dissuasor (mas só porque nenhum dos meus amigos era o barão de Charlus…).
P.S.2: A partir de certa altura, quando dizia que estava a guardar a Recherche para quando tivesse mais tempo, confesso que já nem eu acreditava muito nisso. Há uns anos, comprei esta edição da Relógio d’Água e senti-me, mais do que esbanjador, com os remorsos de um frugalista a comprar bibelôs. Anunciei que era para a reforma, acreditando tanto nesse projecto como em que chegava à reforma. E, no entanto, aqui estou eu, não com a reforma, mas avançado no último volume — e desejando altruisticamente terminar depressa a leitura porque a comecei com a pandemia e sabe-se lá se as duas coisas não estão ligadas.