quarta-feira, 29 de julho de 2020

Esperar o fim no Solar Bragançano II

No domingo fui jantar ao Solar Bragançano e como não o faço com a regularidade que gostaria lembrei-me, até pelas semelhanças de contexto, do jantar memorável e fanfarrão que ali me ofereci em Novembro de 2012*, quando nos afligia a coronotroika. Contudo, para não exagerar no paralelismo e sobretudo para levar um espírito francamente optimista para a mesa, observei, enquanto compunha a máscara depois de passar as mãos pelo álcool-gel da casa, que na altura nada nos protegia da peste e governava Passos Coelho.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

À venda na OLX

Descubro um dos meus livros à venda na OLX (não é a primeira vez). Hesito entre sentir regozijo ou frustração. Opto pelo primeiro sentimento quando vejo que a mesma pessoa está a vender, além de outras coisas, A Fogueira das Vaidades (Tom Wolfe), Com os Holandeses (Rentes de Carvalho) e uma máquina de costura Singer. Depois deprimo, ao notar que na longa lista de artigos só há duas coisas mais baratas do que o meu livro: uma máquina de barbear que «não trabalha» (5€) e uma camisa «tipo ganga» (6€).

Rebuliço na madrugada

Rebuliço na madrugada. Adolescentes bêbados e sobretudo parvos. O costume. Chamam a polícia e desta vez não são os vizinhos involuntariamente insones a fazê-lo, mas alguém do próprio grupo infecto-festivo num assomo de bom senso ou, mais provavelmente, por vingança beberrona. Um carro-patrulha, dois, três. Uma dezena de polícias, algumas cotoveladas joviais de cumprimento social para evitar conflitos e demonstrar certa compreensão perante a parvoeira — e nenhum protocolo evidente quanto a máscaras, distâncias e, sobretudo, madrugadas silenciosas.
O rebuliço, que se resolvia talvez transportando simbolicamente um ou dois patetas para curar a égua na esquadra e dispersando os restantes com vozes de pastor ou condutor de gado, é arrastado pelos agentes numa dança de ameaças entediadas, soletração lenta e por escrito da identidade de um ou outro grunho e por fim convívio geral e magnânimo. As moças riem à distância, pouco aflitas com o dispositivo cénico, gozando o panorama.
Por instantes, a galhofa é agora também policial (parte dos agentes parece saída há pouco daquela mesma adolescência).
O cidadão na varanda, farto da encenação e gozando antecipadamente o inusitado do acto que por sua vez enceta, silva um shiuuu irónico mas sonoro. Um dos adolescentes civis lá em baixo riposta: tropeçando e enrolando a língua a tentar parecer sóbrio, faz notar que tem a autoridade a seu lado, ou do seu lado. O cidadão, rindo para dentro, responde de forma a ser ouvido por toda a juventude, uniformizada ou não, que há na vizinhança, por incrível que pareça à tropa galhofeira, quem queira dormir. Instantes depois, a polícia dispersa. Menos mal.

Profissão de fé

Não costumo, senão por raros descuidos, trazer para o blogue assuntos profissionais. Não porque menospreze o que faço para ganhar a vida ou porque me dedique com ligeireza à profissão (por atavismo, não o saberia fazer mesmo que fosse açougueiro, au pair ou pintor de marinas), mas porque aprecio que não se contaminem mutuamente um emprego apesar de tudo (e dos anos) circunstancial e uma vocação mais antiga, idiossincrática e inelutável que em parte se cumpre justamente nesta plataforma online.

Esclareço já, todavia, para poupar entusiasmos e equívocos, que a vocação que se cumpre no blogue é agora sobretudo a do disparate gratuito. Uma consulta ao índice (e aos dicionários) revelará que o que se trata aqui — não por conveniência ou decisão mas como pura fatalidade — é de procrastinar, tergiversar. Escrever espontaneamente, sem fundamento (e sem honorários!) sobre qualquer coisa excepto a que importaria. Ténis é só o exemplo mais recente.

Invocar Bartleby é coisa pedante, mas algures dentro de mim habita um tipo que, perante as inquietações e as grandes questões do nosso tempo, que deveriam ser assunto neste blogue, e perante a tentativa do novo grande romance português, está permanentemente a dizer: «I would prefer not to». E lá sai, ao invés de reflexões ponderosas ou literatura original, mais um disparate sobre homens em calções e mulheres em minissaia atrás de bolas amarelas.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Ténis em Tempelhof

Depois do Adria Tour, que consagrou (e internou) Djokovid, também a Alemanha teve o seu torneio de exibição, jogado em duas partes e dois pisos: relva e asfalto. A primeira parte decorreu previsivelmente no relvado de Frau Steffi Graf e a segunda, após um mal entendido que ninguém quis desfazer, teve lugar num aeroporto. Poderia ter sido nos autódromos de Nürburgring ou Hockenheimring, mas alguém interpretou de forma ainda mais particular o conceito de «piso rápido» e a escolha acabou por ser Tempelhof (Tegel e Schönefeld não estavam disponíveis).
Os jogos decorreram num hangar, é certo, porque a Alemanha é bastante chuvosa mas não tão eficiente ou perdulária que pudesse cobrir um court na pista central (mesmo que desactivada) num prazo tão curto e por motivo tão efémero.
Tratando-se de um torneio em tempo de pandemia, condicionou-se o número de espectadores e o número de juízes de linha. Dos primeiros permitiram-se duas centenas no «estádio»; dos segundos, nenhum. O árbitro de cadeira foi coadjuvado por um sistema de karaoke ou de video game, não deu para perceber bem. Talvez houvesse nos bastidores juízes de linha sentados em frente a ecrãs, com camisas e chinelas havaianas, a gritar em off para o roufenho sistema de som do hangar, mas o mais provável, num tempo de distância social e inteligência artificial, é terem encarregado um computador desse serviço, deixando-o seleccionar vozes irritantes da Play Station para os brados de «out» e «fault».
O resultado foi que se criou num hangar de Berlim o ambiente tropical do Open da Austrália, com as vocalises técnicas a lembrarem a ruidosa fauna avícola de Melbourne (como se Hitchcock estivesse responsável por assinalar cada erro, forçado ou não forçado).
Se Nadal tivesse ido a Berlim, ficaria decerto incomodado com a banda sonora (evocativa do último Grand Slam perdido) e sobretudo com a provocante ideia de dispensarem os apanha-bolas de tratar das tolhas dos tenistas. Teria, em todo o caso, um avião à porta para sair sem dar satisfações a ninguém.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Põe mais erva nisso

Nos últimos dias transmitiram-se pela primeira vez na temporada jogos em relva, ficando assim a Eurosport livre da acusação de preconceito anti-vegan. Contudo, o piso estava tão gasto, com tão pouca relva e tanta terra à vista na zona dos serviços, junto à linha, que, num leve despertar entre sets, suspeitei por instantes estar a ver futebol e estranhei, a bola, em primeiro lugar, mas sobretudo não se lançar o guarda-redes com as mãos ambas para a apanhar.

terça-feira, 14 de julho de 2020

O último baile de máscaras

Este mundo disfuncional e ameaçador da Covid-19 sugere-me, na brisa nocturna que mal perturba o calor e o avançar das horas, Melancholia, o maravilhoso filme de Lars Von Trier. E por instantes penso, olhando o céu estrelado pré-alvorada e lastimando solares que não tive, que, se vamos chocar com o nosso fatal destino, talvez pudéssemos aproveitar as contingências para um último acto elegante. Já temos as máscaras, só nos falta o espírito.

Verão perdido

Neste estranho desfile de máscaras em que nos vemos arrolados, lamento sobretudo algo que lhe é anterior e alheio: a impotência para travar o Verão. Nasci no último dia da estação, num Setembro de que não guardo registo, e não sei se e como isso explica a minha nostalgia ou a minha obsessão, concedendo aos astrologistas que explica alguma coisa.

No dia em que oficialmente se inicia o Verão, ou no dia em que ele se manifesta pela primeira vez como conjunto esperado de fenómenos atmosféricos, começo eu, que o ansiei em cada dia dos meses anteriores, a lamentar que se acabe tão depressa. Hoje, 13 de Julho, levo já umas semanas a chorar o Verão perdido de 2020. E aconteceria o mesmo se não estivesse a cismar ataviado de máscara cirúrgica.

Parte desta sensação de Verão perdido é explicada por não ter como me retirar por três meses para reaver, num solar de família ou num monte alentejano, um Verão eterno como os da primeira adolescência (na segunda, fui trabalhar de ajudante de electricista e julgo que se iniciou aí o fim de Verão, como se acabou a civilização com o fim do ócio grego).

Todos os meus sonhos felizes — e por isso quase todos os meus livros (o que poderia interessar à Chiado ou a algum discípulo de Freud) — têm em algum momento luz estival coada por ramadas, ou por copas de plátanos em fileiras, ou por pinhais densos de piquenique, ou por choupos à beira-rio, mesmo que sob outras descrições e classificações botânicas. Fui à Internet procurar um quadro de Malhoa onde esta luz e esta sombra ficaram gravadas, mas não o encontrei, embora tenha a certeza de que ele as conhecia, há disso indícios noutras obras. José Malhoa era decerto, como naturalista ou impressionista, um atlante do mesmo continente estival que perdi.

Nas propriedades da minha família, triste zeitgeist, as ramadas foram sendo cortadas, desapareceram dos locais onde antes podíamos contar com elas. De pátios e terraços, saíram para dar lugar a novos compartimentos da casa. O último abate foi recente e não deu lugar a nada. Como metáfora, não podia haver melhor. Ou pior.

Malhoa

Uma nação revela-se quando uma pesquisa no Google por José Malhoa tem como primeiro resultado o autor de Ana Malhoa e outras obras escusadas.

domingo, 12 de julho de 2020

A contagem do tempo

Como melancia e leio sobre Gomorra em Balbec. É Verão e os prazeres conjugados dão por momentos uma impressão de plenitude e de suspensão do tempo. Depois as grainhas da melancia obrigam-me a desviar por instantes os olhos da página. Experimento ignorá-las e engolir tudo junto, mas o mal está feito. O tempo foi retomado.

Osga

Em toda a minha longa vida apenas vi osgas* no Vietname e no Alentejo. Ontem estava uma cá em casa na varanda bafejada pelo Alvão. Se isto não prova as alterações climáticas, demonstra pelo menos, depois do furão de há uns anos, as estranhas opções dos vizinhos na hora de escolher animais de estimação.

(Para outras aparições, consultar: https://canhoes.blogspot.com/2020/02/corvos-marinhos.html)


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* Refiro-me ao réptil.

sábado, 11 de julho de 2020

Análise da final de 2019 do Open dos Estados Unidos

Ontem repetiram a final épica do Open dos Estados Unidos entre Nadal e Medvedev. Espreitei outra vez os pontos finais só para ver a raiva e o olhar maníaco de Nadal perante a possibilidade de perder o jogo, frente a um Medvedev quase zen, por comparação.

Quando vi pela primeira vez esta final já sabia o suficiente de ténis para perceber que não tinha um favorito. O que é raro. Geralmente torço pelo mais fraco, desde que mostre talento, empenho e seja gentil. (Quando joga Federer é por ele que torço sem hesitar, ainda mais nesta fase da carreira, em que já soma frequentemente aquela primeira condição às três habituais virtudes.)

Nadal é a opção óbvia dos comentadores e dos fãs quando se perguntam entre si quem é o favorito — logo, não é a minha. Também porque me incomoda o seu ar caprichoso, de vítima, de injustiçado quando as coisas não lhe correm bem, perplexo por a realidade nem sempre obedecer ao seu reinado, para o qual o treinaram como príncipe predestinado.
Medvedev é frequentemente ainda mais parvo, talvez porque não há muito que deixou de ser adolescente, mas naquela final de 2019, durante o tempo a que assisti, estava a portar-se com uma nobreza e um estoicismo comoventes. Juro que na primeira vez em que vi o jogo quase lhe dei o meu apoio.

Federer — que foi apanha-bolas, dizem-me, e talvez por isso —, é o mais aristocrata dos jogadores, não no sentido snob e glamoroso, mas na consciência serena da sua superioridade, que lhe permite distinguir-se pela cortesia e não se deixar perturbar por ocasionais infortúnios. Se fosse personagem de Proust, era um Guermantes, pelo lado da duquesa.

Ora, neste déjà vu, os meus olhos, não por tédio, focaram-se de novo nos apanha-bolas, na sua postura à beira do court. Lembraram-me os pedintes que vi pela primeira vez em Praga há mais de uma década, ajoelhados e inclinados para a frente, apoiando-se nos cotovelos com as mãos em prece ou estendidas no solo. Uma postura de desespero ou fervor religioso que visa comover ainda mais os transeuntes, tocá-los pela mostra de abnegação, pela dimensão espiritual.
Talvez os apanha-bolas nos Estados Unidos queiram demonstrar igual fervor no exercício da suas tarefas, dar provas de total entrega. Ou talvez tenha sido só uma ideia palerma da organização, assente numa qualquer noção errada de motricidade e aerodinâmica. Se o objectivo fosse ter os apanha-bolas prontos a saltar para o court como se impulsionados por mola que se solta, talvez pudessem ter-lhes dito que bastava ou melhor se adequava um só joelho no chão e lhes pudessem instalar uns blocos de partida como os que se colocam nas pistas dos sprinters. Assim, sem rigor técnico e com alusões místicas, sugerem, mesmo que apenas por nescidade, a subalternização, a servidão a que os moços e as moças devem sujeitar-se, quais criados de quarto, como referi no primeiro post desta série.

A rapidez dos apanha-bolas é importante para não interromper o ritmo do jogo, defende-se. Mas talvez, nesse caso, e para evitar más interpretações, devessem contratar galgos, e juntarem aos habituais gritos dos juízes de linha a vocalização «busca, busca». Havia mais vezes bolas novas, é provável, mas isso os jogadores se calhar até agradeciam.

De resto, a excessiva disponibilidade sugerida pela forma como se apresentam ou são apresentados os apanha-bolas pode levar à rudeza dos jogadores, como no célebre episódio de Fernando Verdasco, que pôs em debate a continuação dos apanha-bolas também como porta-toalhas (toalheiros vitesse, charriots de competição).

Aqui convém esclarecer que, quando Federer se manifestou contra a proposta de os apanha-bolas deixarem de entregar toalhas aos jogadores, não estava a ser snob ou desleal, mas a ser cortês — com Nadal. «A ideia de os apanha-bolas nos ajudarem com essa função da toalha», disse Federer, «é tornar o jogo mais rápido. Se eles deixarem de nos dar as toalhas vai perder-se muito tempo. Há jogadores que suam mais e assim vão perder mais tempo.» Ou seja, há jogadores que vão ter ainda mais penalizações nos serviços, não é Nadal?

Proust: 10/07/1871


Se a pneumonia não tivesse dado cabo dele, Marcel Proust seria hoje uma curiosidade de feira com 149 anos. Tendo morrido quando lhe competia, ficou apenas como uma curiosidade literária: o tipo que escreveu 3.500 desnecessárias páginas. (Noto que teria garantido um lugar no Guiness em qualquer dos casos.)

Só reparei na data, atrasado, porque o excelente António Gregório a referiu no Coração Acordeão*. O mesmo António, autor de duas obras imperdíveis (O Condómino e Documentário), forneceu-me também uma capa para a temporada. As leitoras e os leitores entenderão que sob esta imagem se reúnem os três tópicos que mais me ocupam desde Março, mais casaco, menos casaco.

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*https://antonio-gregorio.tumblr.com/

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Da nostalgia à alienação

Devo considerar uma feliz coincidência ter-me atirado à obra magna de Marcel Proust na mesma altura em que comecei a ver com regularidade jogos de ténis?
O termo «feliz» soa-me no contexto em que vivemos inconveniente, impróprio. Como se perante as dificuldades de tantos e um futuro que se anuncia deprimente eu alardeasse uma isenção ou privilégio burgueses.
Já aqui expliquei que o ténis me surgiu como uma terapia e o Proust como uma oportunidade. O primeiro porque, precisamente, os tempos difíceis e deprimentes pediam narcóticos; o segundo porque o enclausuramento e a inactividade sugerem leituras longas.
Há porém, de facto, uma relação feliz entre o ténis e Em Busca do Tempo Perdido. Ela assenta, não nas referências (meramente circunstancias) ao desporto na obra, nem numa inexistente sugestão literária no jogo*, mas na elegância e na jovialidade que partilham, misto de Arcádia e Olimpo, infelizmente acessíveis apenas a uns poucos.
Mas o que encontro de verdadeiramente feliz na conjugação astral destes dois itens, ténis e Recherche, nem é a mera evocação permanente desse território quase mítico das Pedras Salgadas (que muitos outros assuntos também operam em mim), onde alguns jogavam ténis e tinham uma existência inefável de aristocrata, e sim a oportunidade que me fornecem de sintetizar, com verosimilhança, um mundo alternativo em que na verdade não vivi.
Se viram a série Dark, sabem que um acontecimento pode criar mundos paralelos ou simultâneos, de resto preconizados pela física quântica em geral e pela zoologia de Schrödinger em particular.
Avançar de madrugada para mais uma prova de Roland Garros ainda a digerir umas páginas de Proust é esse acontecimento que faz com que, quando adormeço, regresse às Pedras — mas não àquela terra onde eu era basicamente néscio e sobretudo teso. Alimentada a Proust e ténis, a minha nostalgia sonâmbula não é menos eufórica ou fanática do que a que ilustrei no post anterior — mas passou a ser mais criativa e inimputável. Já não se trata de ter saudades de ser adolescente nas Pedras dos anos oitenta, mas de reinventar as Pedras, os anos oitenta — e o adolescente.
(Ia dizer que se trata, em certos momentos, de frequentar Balbec sem nenhum juiz de cadeira por perto, mas isso é afinal demasiado próximo da realidade.)

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* Excepto para David Foster Wallace.

terça-feira, 7 de julho de 2020

A Flock of Seagulls

A nostalgia é um péssimo juiz. Age exactamente como o trauma, mas em sentido oposto. A pessoa traumatizada repelirá, odiará, desprezará ou temerá, com fobia ou pânico, tudo o que tenha uma relação com a causa do seu trauma. Os nostálgicos, pelo seu lado, acham maravilhosa qualquer coisa que evoque um passado onde tenham estado ou a que se sintam ligados, mesmo que tangencialmente.

Na verdade, está errada ou desactualizada nos dicionários a definição de nostalgia. No mundo de hoje, a nostalgia manifesta-se em público menos como «um estado melancólico causado pela falta de algo ou de alguém» e mais como um estado eufórico ou mesmo fanático suscitado por uma referência que possa ser vagamente autobiográfica.

Uma cena neo-realista, originalmente pretendendo ser denúncia, ainda que poética, de algo mau, é hoje partilhada com saudades, corações e vivas. Onde os autores viram miséria, dureza e injustiça os modernos vêem um tempo de inocência, viço e alegria. O éden, nada menos. Se proposto agora, o estoicismo é absurdo e insuportável, desumano; se retratado a preto e branco ou em Polaroid, é um pedaço de espaço/tempo de onde gostaríamos de nunca ter saído e a que pagaríamos para voltar. Ponham uma foto antiga de uma cidade ou de uma rua no Facebook e verão que ninguém repara nas dificuldades e dramas que a imagem, mesmo sem intenção, provavelmente documenta: todos a identificarão com a Arcádia perdida. Onde sabem, mas esqueceram, que nunca estiveram.

Esta reflexão, original, ocorreu-me quando o Youtube, a propósito de não sei o quê, me propôs ouvir “I Ran”, dos A Flock Of Seagulls. Nem sequer era uma música do meu top vinte de então, mas obediente pus o vídeo a tocar, em loop, e quando finalmente sai do estado nostálgico e reactivei o cérebro vi-me, de cima e com desprezo, como naquelas experiências pós-morte, como uma velhinha radiante perante um daguerreótipo de uma procissão do Corpo de Deus onde já só a custo se adivinham os tapetes de flores em calçadas há muito desaparecidas e onde ela, de resto, só andou descalça, miserável, pisando bosta.

Talvez os algoritmos tenham sido criados para substituir deuses velhos e cruéis e forneçam à meia-idade da minha geração memorabilia dos oitenta como a charada que a Esfinge propôs a Édipo — com a expectativa plausível de nos devorar.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Ténis e tontarias

Isto da pandemia tem as suas vantagens. Ao diminuir-nos as distracções fora de casa, aumenta as possibilidades de ler, escrever e desenvolver obsessões patetas. Noto que tenho cumprido com certo denodo estas três premissas: teimo no Proust, escrevi posts numa cadência que há muito não tinha — e boa parte deles foi uma abordagem insistente e tonta a algo que nunca me tinha interessado muito, o ténis.

Se alguém por hipótese improvável e insanidade temporária quiser ler o conjunto de enfiada, basta descer a coluna da direita e clicar na etiqueta «Ténis». (Não clique na etiqueta «Tontarias», porque lhe aparecem demasiados posts. «Tontarias» é, literalmente e por larga maioria, a etiqueta que mais classifica o que escrevo no blogue, não sei se por uma soma patológica de momentos de modéstia excessiva se por inescapável honestidade.)

domingo, 5 de julho de 2020

A persistente tradição de guardar bolas para o segundo serviço

A Eurosport e eu já estamos na fase de repetir jogos, pelo que chegou a altura de acabar com a Covid-19 ou, pronto, de adquirir direitos de retransmissão de outros torneios. Wimbledon, por exemplo, nunca aparece na grelha. Consequência do Brexit? Preconceito anti-vegan?

Seja como for, nesta altura já trocava uma partida do Grand Slam por um qualquer joguito não visto, nem que fosse do Estoril Open.

A fraca consolação de rever jogos reside no ensejo de repararmos (ainda mais) em aspectos não desportivos da modalidade, alguns bem intrigantes. O vestuário, por exemplo, é no ténis tema inesgotável. Podemos ter em relação a ele, particularmente o feminino — e consoante o espectro dos nossos interesses (ou o grau da nossa depravação) —, uma abordagem apenas curiosa, fashion geek ou voyeur. No limite da perversão, a julgar por algumas pesquisas no Google e tendências pornográficas dos anos 80, um jogo de ténis feminino pode corresponder, em termos de batimentos cardíacos do espectador, a um filme erótico.

Quando tentei perceber por que não é vulgar as tenistas usarem calções com bolsos — preocupado exclusivamente com aquilo que me parecia uma dificuldade: o armazenamento de bolas suplentes na hora do serviço —, deparei-me com explicações em várias línguas sobre a forma como os vestidos justos e as saias curtas permitem às mulheres manterem a sua feminilidade enquanto disputam torneios de milhões. A conquista suada de troféus e de cheques com muitos zeros parece, segundo algumas análises, coisa intrinsecamente vil e masculina, pelo que se uma senhora tem de condescender nesse desiderato deve, pelo menos, fingir que está na praia. Na praia dos glamorosos anos 50.

Não quero que este post pareça alinhar na sugestão de que são as mulheres, as mulheres tenistas, que mais se preocupam em erotizar a sua imagem enquanto dão pancadas na bola. Nem tenho, por outro lado, ao contrário de certas organizações e tradições do ténis, nenhum dress code ou moral a recomendar a ninguém (muito menos a pessoas que jamais lerão este blogue). Mas temo que a saia curta dominante, com folhos ou sem eles, seja um compromisso entre jogadoras, instituições e expectativas sociais, um compromisso para que, focando-se o mundo nas suas coxas, elas sejam deixadas em paz e concentradas apenas nos seus jogos. Porque sempre que alguma jogadora introduziu mudanças no outfit ou simplesmente tirou e voltou a vestir a sua t-shirt num canto do court (o que até mereceu aplauso entusiástico da, neste ponto igualitária, falange voyeur), levou, como há pouco Alize Cornet, com o dedo em riste da moral tenística.

Suspeito por isso que a tradição da minissaia no ténis, como a do decote nos trajes femininos dos séculos dezoito e dezanove, permite sobretudo aos cavalheiros fingirem-se — em simultâneo ou alternadamente, como convier — sensualistas e castos.

Considerando que a anatomia feminina não difere da masculina em tal grau que obrigue a formas diferentes de armazenar bolas suplementares, e considerando também que a não abolição do hábito de se guardarem bolas para o segundo serviço (quando os apanha-bolas se tornaram tão ágeis) não trai vício masculino, não seria expectável, dada a diversidade humana, ver-se mais marcas a desenhar calções femininos com bolsos — e homens a enfiarem bolas na lycra por baixo dos calções? Ou das minissaias?

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Cocktails

Criado entre dois mundos — um, rural, cheio de frugalidade e essencialismo, a que tinha acesso fácil e quotidiano, e outro, o glamoroso das estâncias balneares de águas terapêuticas, com os seus hotéis cheios de hóspedes finos e bebidas sofisticadas que só conhecia de ver beber —, nunca fui um tipo de cocktails e guardei pouca memória dos que bebi. Ontem, contudo, mandei vir um, que me trouxeram não sei se condimentado se decorado com funcho e um raminho de outra planta com um cacho de pequenas flores bem aromáticas, que se encostavam ao nariz a cada gole, insuflando-o de odores. Tive então um momento rechercheano, e porém o que me veio à memória não foram tardes de ténis ou bailes no casino, mas as jarras que havia sempre lá por casa. Não regurgitei, mas tive de pousar o copo para me dar uma pausa e explicar ao cérebro que não era água de jarras o que estava a beber.
Dominado, interroguei-me se afinal não tinha havido na minha criação, além de certa rudeza de pobre que permanece, cocktails sem eu saber.