domingo, 26 de agosto de 2012
Aritmética para totós
Custavam menos ao país os 40 milhões da RTP2 do que vão custar os 140 milhões da concessão da RTP1. Não só em euros.
sábado, 25 de agosto de 2012
Caminhada de sábado à tarde
São um casal, vêm equipados com sapatilhas, calções e t-shirts coloridas, a dela laranja, a dele
amarelo de colete reflector. Algo correu mal ao estacionar. Vêem-se a discutir
apontando o carro, ora aproximando-se dele, ora afastando-se alternadamente com
ar de quem já ouviu tudo e se vai embora, o outro que se foda. Mas voltam atrás
e repetem argumentos. À distância percebe-se nos gestos o mal-estar,
adivinham-se as expressões de ultraje e raiva. Partem por fim juntos, com
passada desportiva sincronizada, lado-a-lado para mais uma caminhada saudável
no parque. São um casal, é isto que fazem: desentenderem-se e aturarem-se.
Desentenderem-se e aturarem-se até ao dia em que não se aturam mais ou se
tornam indiferentes um ao outro.
Mas eis que ela volta atrás, cento e cinquenta metros depois. Traz a
chave na mão, mete-se no carro e estaciona-o como deve ser, alinhado com as
riscas brancas no pavimento. Isto ela conseguiu corrigir, o carro mal
estacionado. Retoma a caminhada com o ar decidido de quem fez a coisa certa e
devolve-lhe a chave ao passar por ele. Ele também está a corrigir qualquer
coisa — a meia na perna, os cordões da sapatilha — mas ela não espera, prossegue
o seu caminho.
Saíram fora do campo de visão e não se vê o desfecho, mas talvez ele a apanhe, agora que tem o equipamento ajustado, corrigido.
Saíram fora do campo de visão e não se vê o desfecho, mas talvez ele a apanhe, agora que tem o equipamento ajustado, corrigido.
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
RTP, extorsão e papalvos
Fecha-se a RTP2 (porque é cara e tem fraca
audiência) e os contribuintes continuarão a pagar 140 milhões para um privado
(provavelmente angolano) fazer o “serviço público” definido pelo Governo
PSD/CDS. Como “privatização”, é brilhante. Privatização do dinheiro público.
Os portugueses julgavam que tinham elegido um
governo, mas na verdade elegeram o Xerife de Nottingham.
A RTP1 não fazia serviço público. Quando muito, fazia
servicinhos aos governos, e nem todos
de cariz sexual. Ou fazia o serviço
em público (era impossível não dar pelo cheiro). Se não se é coprófago, é-se de
opinião que um canal como a RTP1 devia ser fechado, implodido, incinerado — ou,
se quiserem, vendido (podia dar para adubos, sabe-se lá). Mas quando um licenciado
express coadjuva um espectador do La
Feria no Governo aparecem melhores ideias. Como esta de pagar a um privado para
fazer o lindo serviço que a RTP1 fazia.
Ok, não será bem o mesmo serviço. Os neurónios
extra que aqueles dois contrataram para juntar ao par que possuem matutaram e
concluíram que terá de haver um novo caderno de encargos definido pelo actual
Governo. Sim, porque cada um gosta de fazer a sua própria merda. De resto,
ninguém tem dúvidas que se algum Governo houve em Portugal capaz de definir um
serviço público de televisão ele foi
eleito em Junho do ano passado. Serviço público e este Governo são como unha e
carne: a unha deles, a nossa carne.
Portanto este hibrido pegajoso de PSD e CDS espremerá
a cabecinha para criar um novo conceito de serviço público. Não precisava de se
dar ao trabalho: já sabemos que o resultado será um novo preconceito de serviço público. Um preconceito cultural, ideológico
e económico. Um serviço público adaptável à sacrossanta lei da oferta e da
procura. Exactamente aquilo que o país nunca
teve e estava a precisar.
Alguns dirão que a venda da RTP serviria melhor os interesses nacionais. Haveria um razoável
encaixe financeiro e, ao fim e ao cabo, a merda que iria para o ar seria a
mesma. Quer dizer, nesta concessão, o operador privado terá de se preocupar com receitas (não
muito, é certo) e terá de competir pela sua quota de audiências medíocres (isso estará no caderno de encargos). Porquê
hão-de então os contribuintes continuar a pagar por um serviço que outros operadores
privados já garantem? E porque hão-de os contribuintes pagá-lo a uma empresa
privada?
Porque em certas circunstâncias ser papalvo é bom.
Ser papalvo sob a gestão de um executivo PSD é bom. Foi isso que o esbirro
António Borges veio dizer aos portugueses em nome do cobarde do Xerife de
Nottingham.
terça-feira, 21 de agosto de 2012
Prédios
1.
Vi-o
de cabeça levantada — medindo o colosso com ar entendido, o indicador
percorrendo os pisos com minúcia de sapador — e por momentos pensei que estudava
a distribuição de cargas adequada para implodir um dos prédios “Coutinho” cá do
burgo. Mas não. Era só um turista divertido, contando quantos pisos o
mamarracho tinha acima das vivendas em redor, recolhendo amostras para uma
antropologia lusitana, tirando fotos para o seu álbum de aberrações de Portugal.
2.
O anúncio lista os atractivos do apartamento à venda num andar
estratosférico do Porto. Das muitas virtudes mencionadas, só uma é
verdadeiramente irresistível: o andar tem vista para «a relva do Estádio do
Dragão». Não era dito qual dos tufos
da relva do Estádio do Dragão — o anúncio carecia de detalhe.
Mas era um anúncio inteligente, dirigido a um vasto especto
de compradores. Entre os candidatos a morar em tão celestial nuvem estão
inúmeros portistas detentores de binóculos e, desconfio, alguns benfiquistas com
licença de porte de carabina com mira telescópica.
3.
Os edifícios residenciais por vezes adoptam nomes que lhes
garantem distinção, ou, em fase de venda, lhes prometem compradores. Não vi até
à data nenhum título capaz de despertar mais o instinto consumista num sem-abrigo
do que “Varandas da A4”. A A4 é, adivinharam, uma auto-estrada — e alguém concebe
melhor forma de passar os dias domésticos do que à varanda a ver o tráfego
Porto-Amarante? Eu não.
Cristo faz parapente: a foto
Era a esta aparição que se referia este post ("Cristo faz parapente").
P.S. Bonita, não é? A foto é de Paulo Araújo.
Ontem
1. Tecnologia Gutenberg
Às cinco e meia da tarde, na piscina, julguei por
momentos que o meu cérebro fora sequestrado pela silly season.
Tinha pago mais de cinco euros para ficar sentado numa cadeira de lona a sofrer
as sevícias de uma selecção musical idiota, com o volume regulado para surdos
profundos. Depois, ufa!, lembrei-me que podia abrir o livro ou ir nadar.
Experimentei nadar e deu resultado: debaixo de água quase não se ouve a música.
No entanto, esta solução revelou-se ineficaz a longo prazo — há limites para o
tempo que aguentamos sem respirar (se não estivermos assim tão
desesperados com a música). Agradeci sem sinceridade ao nadador-salvador por me
ter trazido à tona (eu estava assim tão desesperado) e, de
volta à cadeira, abri o livro. Iniciou-se de imediato o processo de
teletransporte dali para fora. Devia ter optado desde logo pela tecnologia
Gutenberg.
2. Efectivamente, escuto as conversas
Na esplanada do restaurante ouvia-se à noite música de
altifalantes. O largo da terra era ali ao lado e este era o fim-de-semana da
festa. (O meu cérebro tinha sido sequestrado pela silly
season, caso contrário o que fazia ali eu?) De qualquer modo, o conjunto
ainda não tinha começado a tocar, pelo que as lesões nos tímpanos eram para já
reversíveis. Se eu saísse antes das 23h00 as coisas não iam de certeza piorar.
Mas pioraram. Pode haver coisas piores do que
altifalantes roufenhos a debitar hits pimba. Como por exemplo
sentar-se na mesa ao lado da nossa um par de machos lusitanos ébrios de 4x4 e de
uma meia dúzia de cervejas bebidas no fim de uma tarde a rolar no monte.
Ao lado da sua irrequietude envolta em t-shirts com
logótipo e do seu vozear de gorila na tundra (talvez a imagem certa seja
chimpanzés com voz de hienas), as músicas do grupo Chave D’Ouro que se ouviam
antes pareciam suites de Bach para
violoncelo.
Não havia uma piscina por perto para onde me pudesse
atirar (com a base de cimento do guarda-sol amarrada ao pescoço) e em vez de um
livro tinha trazido o Expresso. (Céus, o Expresso!) Estava portanto dependente da
velocidade da cozinha e da velocidade das minhas mandíbulas. O chef não
colaborou (as mandíbulas sim, quando finalmente lhes foi dada a oportunidade),
pelo que tive de suportar a minha meia hora de calvário ouvindo as
conversas da mesa ao lado. Nada a que não esteja habituado. Quer porque apenas
posso frequentar restaurantes populares (troika obligé), onde as
conversas são geralmente mantidas aos berros de licitadores num leilão de
porcos, quer porque tenho o vício estúpido de recolher matéria para livros que
ninguém quer editar, provavelmente ninguém quer ler, e eu decerto não sei escrever.
domingo, 19 de agosto de 2012
A acordeonista
A excursão desce do autocarro para lanchar. Saem do porão os comes e
bebes, as arcas e os copos descartáveis, os garrafões e os banquinhos
articulados. Para o fim do repasto, quando os ânimos estão aquecidos e as
gargantas anseiam pela desgarrada, sai o acordeão. É uma adolescente que o
carrega e é ela que o tocará. Com um olhar distante: o rosto voltado para o
rio, para a estrada, para as crianças nos balouços, para as copas das árvores,
raramente encarando as teclas que prime ou os cantadores que se desafiam e os
foliões que os rodeiam. Dos dedos saltitantes saem-lhe melodias tradicionais,
populares, faceiras, por vezes com letras apimentadas. Mas a sua expressão não
se altera, não transparece a alegria das peças que a acordeonista executa nem
ruboresce com as palavras brejeiras que os outros cantam. A sua expressão
permanece neutra. Talvez entediada. Talvez desolada. Talvez desesperada.
Amaldiçoando a vocação, o talento. Amaldiçoando-se por o ter deixado
manifestar-se e pelos dias de aprendizagem e treino. Se fosse duma família
aristocrata do século XIX, talvez a tivessem forçado às aulas de piano — e os
seus recitais nos serões que a família ofereceria seriam igualmente mecânicos,
contrariados, ao serviço de interesses e gostos que não seriam os seus, não seriam
os de mademoiselle Bovary.
sábado, 18 de agosto de 2012
Dinamite
O meu amigo é especialista em perfuração com
explosivos. Recentemente contrataram-no para uma intervenção no metro de Roma,
mas não há qualquer relação entre isso e as notícias de que o Coliseu está a
ficar inclinado.
Uma amiga do meu amigo tinha toupeiras no jardim e
queixava-se disso. Ele resolveu intervir. Minou o terreno, com cargas
cirurgicamente distribuídas e ligadas entre si, posicionou-se, e, accionando o
detonador à distância, rebentou com o jardim. Foi uma limpeza, diz. E bonito: o
jardim elevou-se uns trinta centímetros, com um fragor surdo, e regressou ao
chão. Revolto como se tivesse andado por ali um engaço furioso. Não havia mais
toupeiras. Nem jardim. Agora era só passar um ancinho e semear nova relva, disse
ele, com aquele sorriso de menino, de menino traquinas. Um sorriso de Calvin.
Perguntei-lhe como se chamava a amiga, mas não, não era a Susie.
sexta-feira, 17 de agosto de 2012
Cristo faz parapente
No meu percurso de jogging aparece a
certa altura um Cristo crucificado. Não, não é um milagre. Cristo não me
escolheria para aparições dessas, não sou uma testemunha credível:
demasiada propensão para crer no fantástico. Trata-se de uma escultura
religiosa postada em frente a uma capela. À distância, parece uma espécie de
cruz ortodoxa, com um segundo travessão acima da cabeça de Cristo. Mas este
travessão é maior e não menor, e vinte passadas depois confirmamos que é na
realidade uma cobertura em chapa, para que o Filho de Deus não molhe a coroa de
espinhos.
Entre estes dois momentos, ou entre estas duas
distâncias, há uma outra ilusão. A dez passadas, sem óculos, a cobertura — com
as suas duas águas mas sem vértice na cumeeira, curva como um tecto de hangar,
ligada por duas tiras ao madeiro onde Cristo tem os braços — surge insuflada
como um pára-quedas. É como se o Nazareno praticasse parapente.
Não sei se é assim que Ele desce dos Céus nos dias de
aparições, suponho que não. Seria como “caminhar” nas águas sobre uma prancha
de surf, excitante porém fraudulento. Todavia, um Cristo “radical”,
que também fizesse a Sua ascensão escalando com as mãos e pés-de-gato,
como todos os alpinistas, ao invés de o fazer flutuando com propulsão
telepática, seria certamente mais humano — e não mais um dos mutantes dos X-Men.
quarta-feira, 8 de agosto de 2012
Piropos
Um documentário sobre piropos, informa o JN, criou polémica na Bélgica.
Ainda bem. Há coisas que têm de se discutir.
Não será preciso procurar atrás de giestas, debaixo de calhaus ou nas
caixas de comentários da Internet machistas defendendo o carácter inofensivo, divertido,
até elogioso dos piropos. Gente distinta e bem formada falará de excesso de
zelo, de radicalismo feminista, de frigidez. Tipos (homens) que, pela sua experiência pessoal, do seu ponto de vista, acham que nada de
mal há com os piropos. Tipos que, claro, não estão habituados a pôr-se no lugar
das mulheres.
Há mulheres que circulam na rua de headphones
ligados e olhos no chão para não terem de enfrentar a verve masculina. Há
mulheres que deixam de ir a uma piscina ou a uma praia ou a um café sozinhas
por não suportarem o voyeurismo e os permanentes e intrusivos gracejos
masculinos. Há mulheres que condicionam o seu vestuário para não darem azo a
olhares esgalgados e galanteios babosos, cuspidos a distâncias por vezes
abusivamente curtas, e não raro com mãos a acompanhar.
A sinfonia dos piropos é uma música que as mulheres não pediram e,
creio, a maioria dispensa. Além disso, as mulheres pressentem, sabem, sofrem na
pele que nem todos os homens conhecem o que separa um piropo da inconveniência,
da impertinência, do incómodo, do assédio. De algo pior. Só por isso, o piropo
é indefensável.
Não precisamos de muito esforço de imaginação para percebermos como as
mulheres têm a vida condicionada em relação aos homens, mesmo no civilizado e
liberal mundo ocidental. Pensem os homens um minuto nas coisas que as mulheres
não fazem como eles e talvez tenham uma ideia de como a defesa do piropo é uma
causa frívola, egoísta. Machista.
De resto, muitos homens experimentam (e não gostam) situações análogas,
quando a sua barriga proeminente, a sua careca precoce, o seu nariz aquilino, as
suas grandes orelhas, a sua reduzida estatura, a sua estupidez ou seja o que
for que tenham de característico são alvo de permanentes comentários e
gracinhas. Ou quando o seu desempenho no trânsito causa desagrado aos outros. Os
homens experimentam estas situações e não gostam, sentem a humilhação, o
incómodo, a intrusão e enfurecem-se, reagem, não raro com violência. Ou ficam
impotentes, a chorar de raiva, se a situação não lhes é favorável — como
geralmente não o é à mulher que ouve o piropo.
É só lembrarem-se disso da próxima vez que forem num carro e resolverem
buzinar as pernas da mulher que passa na berma, ou estiverem pendurados num
andaime e acharem que têm de comentar o decote que lhes passa por baixo, ou
sentados na esplanada se sentirem autorizados a assobiar a saia com que o vento
se mete, ou ao circular no passeio em manada entenderem guinchar como os excita
o traseiro da que vai à frente ou as mamas da que se aproxima em sentido
contrário.
Biologicamente, nem sempre é possível ao homem ficar impávido perante a
mulher. Há as hormonas e a sua influência no ritmo cardíaco. Há talvez intumescimento.
Mas é disso que trata a civilização: de dominar impulsos. Não matamos ou sequer
insultamos todos os que achamos que o merecem, pois não? Deixemos então as
mulheres em paz na sua vida ainda que
achemos que as suas formas merecem todos os elogios. Talvez elas até nos apreciem
mais por isso.
A educação é uma das formas de civilizar o selvagem que há em nós. Mas
por vezes, para sermos melhores pessoas, do que precisamos é de nos livrarmos
da educação que tivemos. Alijar o português mediterrânico, bigodudo e façanhudo
que há em nós é uma obrigação. E mesmo assim é insuficiente, como mostra o
documentário realizado na setentrional Bélgica.
domingo, 5 de agosto de 2012
Diário de férias (12)
E pronto, acabou-se a comissão de serviço. Acabaram-se as crónicas do
Alentejo Interior. Foi uma dura missão, difícil: a árdua horizontalidade e o
frio vasilhame de branco. A longa perscrutação da planície, percorrida com
lentidão e cautelas de sapador, ou apenas cartografada com imobilidade (mas não
insónia) de sniper — à sombra de um impiedoso
alpendre. Missão que o sentido do dever impele a continuar, por muitos e penosos
meses, mas que infelizmente a fraqueza humana força a interromper,
cobardemente, numa cedência hedonista a esse vício do instinto que é o trabalho.
Ah, a vil condição do homem!
***
Os longos dias meridionais foram curtos para as meditações da planície.
Havia assuntos a explorar que a sesta adiou, obliterou. Como a promissora e
literária coincidência de se chamar Demeter (Ceres) uma das personagens de A Informação*. Ou a suspeitada
especialidade de uma superconcorrida marisqueira na costa alentejana: enrolar
os clientes, como o mar enrola na areia (a reincidência vivida ou testemunhada de
lapsos — a conta insistindo em cobrar vinhos diferentes ou itens não consumidos
— parece sugerir uma infeliz tendência). Ou a descrição do paraíso no oásis
alentejano, passe a redundância: Herdade dos Grous, essa amostra do que a vida
devia ser — sol, água e vinho servidos pela arquitectura e pela natureza
ancestrais, comedidamente auxiliadas por judiciosa mão humana. Ou a presença
espectral, indagante (e, sim, risível, de incompleta transgressão adolescente) no
festival Sudoeste durante o concerto de Eddie Vedder — do lado de fora do
recinto, espreitando sobre a vedação. Ou o Magret
de Pato no Vovó Matilde: esse exemplo de como podem a imaginação e a ousadia
ser bem-sucedidas e quase luxuosas, esse recente ex-libris de Beja com as suas
cadeiras e mesas e pratos e talheres desirmanados, de antiquário humilde ou
sótão avoengo empoeirado e carpintaria rude, irmão mais novo da Galeria do Desassossego,
com ela pondo a cidade alentejana no mapa do desejo, ela que também está nesse
mapa por mão dos Virgem Suta, que tem o mesmo Jorge Benvinda como cara-metade.
Ou a morte e a vida do Teatro, representada ontem num palco ao ar livre da
planície: a morte para o grande público (risinhos, tiradas imbecis,
impaciência, desatenção, tentativa de reconhecer a celebridade dos actores, ruído,
o omnipresente rugir e resfolegar da turba numa proximidade distante, segura,
temerosa ou sobranceira, de expectativas defraudadas por incumprimento da imbecil
bitola imposta pela TV e pelos comediantes de sucesso, acarinhados pelos media e pelo poder) e a vida, a vida que
lhe dão algumas companhias e actores, só eles, abandonados pelos mecenas, o
poder, o público — e talvez a História, ou o progresso que a escreve.
* Martin Amis, Quetzal
sábado, 4 de agosto de 2012
Diário de férias (11)
Aos que consideram monótono ou delirante este diário de férias faço
saber que os meus dias têm sido muito preenchidos, mas nem tudo pode aqui ser
registado. Os devaneios que vão lendo não substituem na verdade a intensa acção
das férias — são-lhe correlativos, ocorrem em simultâneo. Ontem, por exemplo,
enquanto pensava na circularidade da vida, neste regresso a territórios
anteriormente visitados, estava bastante ocupado com a prática da natação
sincronizada. Como prova a foto*.
*Não se iludam com o tamanho da piscina.
Já ouviram falar em Gulliver? C'est moi.
sexta-feira, 3 de agosto de 2012
Diário de férias (10)
Há vinte anos fiz a minha primeira aproximação ao Algarve. Não em
férias. Era militar à força em Elvas e a 25 de Julho o nosso regimento mandou
algumas companhias para um campo de batalha a sul, nas proximidades de Castro
Verde. Não em combate, felizmente os mouros tinham-se retirado alguns séculos
antes, decerto por cautelosa antecipação à ferocidade indolente da primeira
incorporação de 1990. Íamos celebrar a Batalha de Ourique, de 1139, peleja que
D. Afonso Henriques terá ali travado contra os Mouros. Parece que a venceu, ou
pelo menos logrou sobreviver-lhe para ser aclamado rei, o que do ponto de vista
dele pôde sem dúvida ser considerado uma vitória.
A cerimónia decorria sob um tórrido sol baixo-alentejano no outeiro a
que chamaram de S. Pedro das Cabeças (numa referência macabra ao piquenique patriota
de Henriques no século XII) e houve uma sucessão de militares — praças, sargentos
e oficias — a desabarem democrática, silenciosa e geometricamente. Em dominó. Não
ainda pelas hostilidades — mas por insolação ou fraqueza (na tropa por vezes
saltava-se o pequeno-almoço, na ânsia mal contida de chegar a horas à bem-amada
parada matinal).
Depois das cornetadas e vozes de comando da praxe, depois de algumas
piruetas coreográficas que o exército aprecia, imediatamente antes das dissertações
generalícias, começou então a contenda. Se se tratasse de uma recriação da
famosa batalha, não teriam havido o mesmo empenho e verosimilhança. Se apenas
tivesse havido discursos patrióticos e evocações poéticas, odes triunfais — opção
habitual do Estado-Maior —, não só não teria havido empenho nenhum como teriam
certamente caído muitos mais militares no teatro de operações — mortos de tédio.
O que salvou o dia foi a incursão de um enxame de abelhas, uma célula
terrorista criada em colmeias na encosta do morro e naquele dia activada por descendentes
de mouros — que os há por ali, movendo-se na sombra de chaparros e oliveiras.
Era, estou seguro, uma operação integrada num mais amplo e maquiavélico plano de
vingança islâmica, com ligações precoces e perfumadas, melífluas, à Al Qaeda.
Felizmente o espírito lusitano e o exemplo afonsino dominavam a manhã
e, antes de ter de abandonar as fileiras, a tropa, ignorando o alinhamento da
parada duramente conseguido, ignorando a bonita sequência de
atenção-firme-sentido-ombro-arma que tanto excita algumas esposas de oficias, a
tropa, dizia, sacou de boinas e quicos — e ofereceu uma resistência
abespinhada. As ordens eram de firmeza e rigor geométrico, aprumo, mas ninguém
pode censurar a soldadesca por preferir um combate menos coreografado, menos
napoleónico e estúpido na sua harmonia de movimentos. Quer dizer, falamos de
abelhas: não se combatem abelhas com brio militar. Ou sincronia de gestos (isso
é natação olímpica). As abelhas combatem-se esbracejando e praguejando, brandindo
bonés e barretes como espadas, golpeando o ar como se de cabeças de maometanos
se tratasse, sacando das calças as fraldas da camisa em resposta a infiltrações
(não queremos uma quinta coluna nas nossas costas)… As baionetas seriam usadas mais
tarde, com um dente de alho, sobre os golpes agudos e derradeiros do inimigo suicida
— se a lâmina estivesse suficientemente fria para a mezinha tradicional.
Há vinte anos, dizia eu, visitei pela primeira vez os outrora
designados Campos de Ourique, onde hoje se situa o meu acampamento de Verão — a
um escasso e na altura insuspeitado quilómetro do outeiro de S. Pedro das Cabeças,
cuja ermida, mandada erigir pelo eclipsado D. Sebastião, comunica visualmente
com a simpática Senhora de Aracelis e mais umas cinco irmãs, reza a lenda.
Há vinte anos não cheguei ao Algarve, com pesar adolescente (as praias
que tentava ver com os meu contristados olhos milicianos do cimo de S. Pedro
das Cabeças mantiveram-se à distância por mais algum tempo). Hoje constato que estou
um feliz quilómetro mais longe do Algarve do que naquele desolado dia 25 de
Julho dos inícios de 90 — e dá-me um prazer perverso informar disso o rapazola convencional
que fui.
quarta-feira, 1 de agosto de 2012
Diário de férias (9)
A poucos quilómetros do meu alpendre, a nordeste, existe um morro com
vistas esplendorosas para os campos brancos e uma bonita capelinha no cimo. É a
Senhora de Aracelis (ou Ara-Celes, Ara-Cellis, Ara-Celis, consoante o sítio
onde lemos o nome).
À primeira vista, parece uma santa pouco canónica, com tal designação.
Na verdade, é um nome de cristalina transparência. Ara Coeli é o latim para Altar do Céu, e poucas coisas estão aqui, na
planície, mais próximas do Éter do que o morro. Mas, se tivermos em conta
que aquele é um local tradicionalmente venerado pelos agricultores dos
concelhos em redor, talvez possamos pensar num altar menos genérico, suspeitar
de um dedicado particularmente a Ceres, a deusa romana da agricultora, da
fertilidade, dos cereais (aliás baptizados a partir dela). Provavelmente vem de
longe a prática do Alentejo como celeiro. De um tempo em que os deuses eram
pagãos e a Igreja Católica ainda não os tinha recriado no seu panteão de santos
— um exercício de resto com semelhanças ao que os romanos tinham feito com os
deuses gregos. (E egípcios: Ceres, aliás Deméter, aliás Isis…)
Como aprendi com um amigo, a conversão ao Deus único não foi um exercício
pacífico, implicou concessões por parte da Igreja. As populações resistiam a
abandonar os seus deuses ancestrais (certamente pelos excelentes serviços que
estes haviam prestado) e a única maneira de as estatísticas serem favoráveis
aos recenseadores católicos era deixar que o povo continuasse os seus cultos no
seio da Santa Madre Igreja. A intenção dos estrategas católicos com a falácia dos
santos era a mesma que o Governo de Passos Coelho tinha quando despromoveu o
Ministério da Cultura: «Vamos só mudar o nome», diziam, «a função mantém-se». Mas
o sofisma não correu tão bem à Igreja como está a correr ao Governo: os cultos
sobreviveram.
É agradável pensar nesta palavra, Aracelis.
Enquanto noutros altares os deuses pagãos viram o seu nome substituído ou corrompido
até soar cristão, aqui, talvez prenunciando a resistência alentejana à Igreja,
a designação do local de culto manteve-se teimosamente próxima das origens.
Pena é que a Ceres se tenha entretanto tornado tão pouco útil para as searas alentejanas
quanto a Senhora da Graça ou o senhor S. Pedro das Cabeças, moradores em morros
vizinhos.
***
A ida à Senhora de Aracelis envolve um ritual. Depois da via principal,
na maior parte do percurso de nove quilómetros a estrada é tão estreita que só
passa um automóvel de cada vez (o que aliás é comum no acesso a várias aldeias).
Perspicazes, os construtores da via planearam baías a intervalos regulares, ora
de um lado, ora do outro, de modo a que um dos condutores possa encostar para
que se cruzem dois veículos. Sempre que isso acontece, aquele que viu a passagem
franqueada, se for educado, levanta a mão e agradece. Acredito que esta
inspiração foi um último contributo da deusa moribunda para a harmonia entre
vizinhos. Pelo menos a mim fez-me sentir sociável, ali, dentro do Chevrolet a
acenar.
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