Há vinte anos fiz a minha primeira aproximação ao Algarve. Não em
férias. Era militar à força em Elvas e a 25 de Julho o nosso regimento mandou
algumas companhias para um campo de batalha a sul, nas proximidades de Castro
Verde. Não em combate, felizmente os mouros tinham-se retirado alguns séculos
antes, decerto por cautelosa antecipação à ferocidade indolente da primeira
incorporação de 1990. Íamos celebrar a Batalha de Ourique, de 1139, peleja que
D. Afonso Henriques terá ali travado contra os Mouros. Parece que a venceu, ou
pelo menos logrou sobreviver-lhe para ser aclamado rei, o que do ponto de vista
dele pôde sem dúvida ser considerado uma vitória.
A cerimónia decorria sob um tórrido sol baixo-alentejano no outeiro a
que chamaram de S. Pedro das Cabeças (numa referência macabra ao piquenique patriota
de Henriques no século XII) e houve uma sucessão de militares — praças, sargentos
e oficias — a desabarem democrática, silenciosa e geometricamente. Em dominó. Não
ainda pelas hostilidades — mas por insolação ou fraqueza (na tropa por vezes
saltava-se o pequeno-almoço, na ânsia mal contida de chegar a horas à bem-amada
parada matinal).
Depois das cornetadas e vozes de comando da praxe, depois de algumas
piruetas coreográficas que o exército aprecia, imediatamente antes das dissertações
generalícias, começou então a contenda. Se se tratasse de uma recriação da
famosa batalha, não teriam havido o mesmo empenho e verosimilhança. Se apenas
tivesse havido discursos patrióticos e evocações poéticas, odes triunfais — opção
habitual do Estado-Maior —, não só não teria havido empenho nenhum como teriam
certamente caído muitos mais militares no teatro de operações — mortos de tédio.
O que salvou o dia foi a incursão de um enxame de abelhas, uma célula
terrorista criada em colmeias na encosta do morro e naquele dia activada por descendentes
de mouros — que os há por ali, movendo-se na sombra de chaparros e oliveiras.
Era, estou seguro, uma operação integrada num mais amplo e maquiavélico plano de
vingança islâmica, com ligações precoces e perfumadas, melífluas, à Al Qaeda.
Felizmente o espírito lusitano e o exemplo afonsino dominavam a manhã
e, antes de ter de abandonar as fileiras, a tropa, ignorando o alinhamento da
parada duramente conseguido, ignorando a bonita sequência de
atenção-firme-sentido-ombro-arma que tanto excita algumas esposas de oficias, a
tropa, dizia, sacou de boinas e quicos — e ofereceu uma resistência
abespinhada. As ordens eram de firmeza e rigor geométrico, aprumo, mas ninguém
pode censurar a soldadesca por preferir um combate menos coreografado, menos
napoleónico e estúpido na sua harmonia de movimentos. Quer dizer, falamos de
abelhas: não se combatem abelhas com brio militar. Ou sincronia de gestos (isso
é natação olímpica). As abelhas combatem-se esbracejando e praguejando, brandindo
bonés e barretes como espadas, golpeando o ar como se de cabeças de maometanos
se tratasse, sacando das calças as fraldas da camisa em resposta a infiltrações
(não queremos uma quinta coluna nas nossas costas)… As baionetas seriam usadas mais
tarde, com um dente de alho, sobre os golpes agudos e derradeiros do inimigo suicida
— se a lâmina estivesse suficientemente fria para a mezinha tradicional.
Há vinte anos, dizia eu, visitei pela primeira vez os outrora
designados Campos de Ourique, onde hoje se situa o meu acampamento de Verão — a
um escasso e na altura insuspeitado quilómetro do outeiro de S. Pedro das Cabeças,
cuja ermida, mandada erigir pelo eclipsado D. Sebastião, comunica visualmente
com a simpática Senhora de Aracelis e mais umas cinco irmãs, reza a lenda.
Há vinte anos não cheguei ao Algarve, com pesar adolescente (as praias
que tentava ver com os meu contristados olhos milicianos do cimo de S. Pedro
das Cabeças mantiveram-se à distância por mais algum tempo). Hoje constato que estou
um feliz quilómetro mais longe do Algarve do que naquele desolado dia 25 de
Julho dos inícios de 90 — e dá-me um prazer perverso informar disso o rapazola convencional
que fui.
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