À primeira vista, parece uma santa pouco canónica, com tal designação.
Na verdade, é um nome de cristalina transparência. Ara Coeli é o latim para Altar do Céu, e poucas coisas estão aqui, na
planície, mais próximas do Éter do que o morro. Mas, se tivermos em conta
que aquele é um local tradicionalmente venerado pelos agricultores dos
concelhos em redor, talvez possamos pensar num altar menos genérico, suspeitar
de um dedicado particularmente a Ceres, a deusa romana da agricultora, da
fertilidade, dos cereais (aliás baptizados a partir dela). Provavelmente vem de
longe a prática do Alentejo como celeiro. De um tempo em que os deuses eram
pagãos e a Igreja Católica ainda não os tinha recriado no seu panteão de santos
— um exercício de resto com semelhanças ao que os romanos tinham feito com os
deuses gregos. (E egípcios: Ceres, aliás Deméter, aliás Isis…)
Como aprendi com um amigo, a conversão ao Deus único não foi um exercício
pacífico, implicou concessões por parte da Igreja. As populações resistiam a
abandonar os seus deuses ancestrais (certamente pelos excelentes serviços que
estes haviam prestado) e a única maneira de as estatísticas serem favoráveis
aos recenseadores católicos era deixar que o povo continuasse os seus cultos no
seio da Santa Madre Igreja. A intenção dos estrategas católicos com a falácia dos
santos era a mesma que o Governo de Passos Coelho tinha quando despromoveu o
Ministério da Cultura: «Vamos só mudar o nome», diziam, «a função mantém-se». Mas
o sofisma não correu tão bem à Igreja como está a correr ao Governo: os cultos
sobreviveram.
É agradável pensar nesta palavra, Aracelis.
Enquanto noutros altares os deuses pagãos viram o seu nome substituído ou corrompido
até soar cristão, aqui, talvez prenunciando a resistência alentejana à Igreja,
a designação do local de culto manteve-se teimosamente próxima das origens.
Pena é que a Ceres se tenha entretanto tornado tão pouco útil para as searas alentejanas
quanto a Senhora da Graça ou o senhor S. Pedro das Cabeças, moradores em morros
vizinhos.
***
A ida à Senhora de Aracelis envolve um ritual. Depois da via principal,
na maior parte do percurso de nove quilómetros a estrada é tão estreita que só
passa um automóvel de cada vez (o que aliás é comum no acesso a várias aldeias).
Perspicazes, os construtores da via planearam baías a intervalos regulares, ora
de um lado, ora do outro, de modo a que um dos condutores possa encostar para
que se cruzem dois veículos. Sempre que isso acontece, aquele que viu a passagem
franqueada, se for educado, levanta a mão e agradece. Acredito que esta
inspiração foi um último contributo da deusa moribunda para a harmonia entre
vizinhos. Pelo menos a mim fez-me sentir sociável, ali, dentro do Chevrolet a
acenar.
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