E pronto, acabou-se a comissão de serviço. Acabaram-se as crónicas do
Alentejo Interior. Foi uma dura missão, difícil: a árdua horizontalidade e o
frio vasilhame de branco. A longa perscrutação da planície, percorrida com
lentidão e cautelas de sapador, ou apenas cartografada com imobilidade (mas não
insónia) de sniper — à sombra de um impiedoso
alpendre. Missão que o sentido do dever impele a continuar, por muitos e penosos
meses, mas que infelizmente a fraqueza humana força a interromper,
cobardemente, numa cedência hedonista a esse vício do instinto que é o trabalho.
Ah, a vil condição do homem!
***
Os longos dias meridionais foram curtos para as meditações da planície.
Havia assuntos a explorar que a sesta adiou, obliterou. Como a promissora e
literária coincidência de se chamar Demeter (Ceres) uma das personagens de A Informação*. Ou a suspeitada
especialidade de uma superconcorrida marisqueira na costa alentejana: enrolar
os clientes, como o mar enrola na areia (a reincidência vivida ou testemunhada de
lapsos — a conta insistindo em cobrar vinhos diferentes ou itens não consumidos
— parece sugerir uma infeliz tendência). Ou a descrição do paraíso no oásis
alentejano, passe a redundância: Herdade dos Grous, essa amostra do que a vida
devia ser — sol, água e vinho servidos pela arquitectura e pela natureza
ancestrais, comedidamente auxiliadas por judiciosa mão humana. Ou a presença
espectral, indagante (e, sim, risível, de incompleta transgressão adolescente) no
festival Sudoeste durante o concerto de Eddie Vedder — do lado de fora do
recinto, espreitando sobre a vedação. Ou o Magret
de Pato no Vovó Matilde: esse exemplo de como podem a imaginação e a ousadia
ser bem-sucedidas e quase luxuosas, esse recente ex-libris de Beja com as suas
cadeiras e mesas e pratos e talheres desirmanados, de antiquário humilde ou
sótão avoengo empoeirado e carpintaria rude, irmão mais novo da Galeria do Desassossego,
com ela pondo a cidade alentejana no mapa do desejo, ela que também está nesse
mapa por mão dos Virgem Suta, que tem o mesmo Jorge Benvinda como cara-metade.
Ou a morte e a vida do Teatro, representada ontem num palco ao ar livre da
planície: a morte para o grande público (risinhos, tiradas imbecis,
impaciência, desatenção, tentativa de reconhecer a celebridade dos actores, ruído,
o omnipresente rugir e resfolegar da turba numa proximidade distante, segura,
temerosa ou sobranceira, de expectativas defraudadas por incumprimento da imbecil
bitola imposta pela TV e pelos comediantes de sucesso, acarinhados pelos media e pelo poder) e a vida, a vida que
lhe dão algumas companhias e actores, só eles, abandonados pelos mecenas, o
poder, o público — e talvez a História, ou o progresso que a escreve.
* Martin Amis, Quetzal
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