Porque não tinha passado de pobre a arrivista, K. abominara
o espírito novo-rico da época, o consumismo exibicionista, o materialismo
dominante. Quando um dia teve de trocar de carro, escolheu o segundo mais
barato do mercado (por uma questão cromática, confessava esse capricho) e desagradou-lhe que não estivessem disponíveis unidades
sem ar condicionado. K. não era
ascético, mas de Inverno chegava-lhe a chauffage
e de Verão gostava de circular de vidros abertos, cabelos ao vento.
O seu desprendimento do dinheiro não era revelação de um
espírito luterano, nem era sintoma de masoquismo. Resultava da consciência de
que havia pessoas em piores condições,
pessoas para quem qualquer corte nos rendimentos seria literalmente (e não
literariamente) um drama. E resultava também da consciência de que algumas
coisas boas no país seriam postas em causa se a crise se abatesse com a máxima
fúria.
Não foi por isso para K. um choque quando o Governo anunciou
aquelas medidas de austeridade. O futuro, o seu
futuro, preocupava-o, claro que sim, mas ele estava psicologicamente confortável
com os sacrifícios. Pelo menos enquanto pensou que eles eram por uma boa causa.
Ou inevitáveis. O desconforto veio quando K. percebeu que se ia atravessar a longa
crise sem que fosse aproveitada a oportunidade para tomar medidas que moderassem
os rendimentos dos mais ricos em favor dos mais desfavorecidos: os relatórios
continuavam a indicar o crescimento descarado do fosso.
Quando caiu na rua, K. teve mais tempo para ver os grafitti, as palavras-de-ordem inscritas
nas paredes. Lamentou que entre os seus talentos não estivesse o do desenho.
Não gostava de pichagens abjectas ou esteticamente irrelevantes, medíocres, não
gostava de borrões idiotas, palavras ocas, mas apreciava quando os autores
sabiam transformar uma parede arruinada numa obra de arte, mesmo que
subversiva, ou quando o humor ou a inspiração dos slogans se sobrepunham ao eventual prejuízo urbano. Ao contrário de
palavras-de-ordem irónicas como «o último a sair apague a luz e feche a porta», não
o costumavam entusiasmar slogans como
«os ricos que paguem a crise». Mas agora, enquanto aquecia as mãos na fogueira improvisada,
perguntava-se se ainda tinha razões para permanecer fiel ao seu pensamento
razoável, se aquele não era o tipo de “demagogia” a que um sem-abrigo como ele estava
moralmente autorizado a recorrer.
A vida de K. (3)
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