domingo, 27 de dezembro de 2020

O caso da chávena roubada

Há pouco tempo visitei clandestinamente uma casa que durante mais de quarenta anos me fascinou e, se não me trai a memória, era o último lugar “misterioso” das termas de Pedras Salgadas em que me faltava entrar.

Desde a minha infância, as Pedras têm sido esse lugar onde os edifícios fascinam enquanto habitados e fascinam mais quando vão sendo abandonados. Um lugar vivo tem o mistério do seu tempo, das pessoas diferentes de nós que enchem os compartimentos com os seus modos exóticos, enquanto um edifício devoluto tem a soma dos mistérios de todos os tempos, em camadas de pó como estratos geológicos, e o mistério maior do vazio, do insondável.

A Villa Adriana, que hoje vejo como construção simples, era moradia de eleitos, com uma arquitectura alheia à humilde tradição local, por vezes revestida de hera como nobre solar, e a promessa de um recheio elegante. O próprio facto de a casa ter nome, e um nome excêntrico, colocava-a num Olimpo inacessível ao comum dos mortais, ou pelo menos a mim.

Quando chegava o Outono e a época de frades, a minha família era das que esquadrinhavam com regularidade os canteiros do parque em busca dos cogumelos ambicionados. Em criança acompanhava o meu tio na sua missão recolectora e nas imediações da Villa Adriana o meu espírito dividia-se na expectativa de duas epifanias: a descoberta de um frade pelos meus próprios olhos, sem ajudas, e um vislumbre do interior da casa e das pessoas que nela habitavam. Não sei se alguma das coisas chegou a acontecer naquela idade.

Quando visitei a Villa Adriana fi-lo sem forçar a entrada. A porta estava apenas encostada, como se alguém aguardasse a minha visita — talvez os fantasmas das personagens fabulosas que ali habitaram e que só existiram na minha cabeça, mesmo que alguns dos seus sucedâneos humanos continuem vivos. Mas entrou comigo o adolescente que sonhava maravilhas em casas assim e por isso não resisti ao impulso atávico de trazer uma recordação.
(Os edifícios do parque foram ao longo dos anos espoliados do seu recheio, por interesses materiais ou nostálgicos, mas não me recordo de alguma vez ter participado num desses movimentos activos. Não mantive senão na mente um compartimento com memorabilia das termas.)

Provavelmente, o objecto que meti ao bolso, sorrindo para mim mesmo com condescendência, nem faria parte do inventário original da casa, já que os compartimentos albergam agora materiais de várias proveniências e sem atractivo: um stock de lâmpadas fluorescentes, por exemplo.

Na cave havia um cartaz também emoldurado com uma mensagem auto-motivante da Companhia de Vidago, Melgaço & Pedras Salgadas há cinquenta anos. Nele lia-se: «A nossa expansão tem de medir-se em termos de actualidade» e, em baixo, de uma estrutura de lançamento de foguetões partiam sucessivamente três garrafas acompanhadas de uma data e um número, presumo que o total da produção nos anos indicados: 1966 (17 320 576), 1968 (23 956 895) e 1970 (31 734 749).

Numa mesinha de outro compartimento, partilhando a mesma cor azul, havia dois guias, um material e um espiritual: um User’s Guide da Hewlett Packard para um gravador de CDs e um Guia prático para o sacramento [não retive qual] com a mensagem «Suplico-vos: deixai-vos reconciliar com Deus». Talvez tenha estremecido um pouco nesse momento ao sentir no bolso o volume do meu despojo.

Na viagem de regresso, fiz um balanço da visita (os dourados na casa de banho, que há quarenta anos talvez me tivessem deslumbrado, pareceram-me agora um pouco kitsch) e satisfiz o desenhador técnico que durante anos fui, desenhando finalmente mas de cor a planta da casa. Pensei também no souvenir. Foi só então que, com novo sorriso condescendente, o achei adequado a mais do que o tamanho do bolso: afinal, uma chávena é o objecto fetiche da invocação do tempo perdido.


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P.S.: Se algum dos actuais proprietários das termas estiver a ler este post, saiba que prometo devolver a chávena, se ela fizer falta ao conjunto.

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