Tinha ficado
bloqueado naquela canção como um disco riscado e ela gostava de o levar a
passear pela rua enquanto ele a cantava baixinho e lhe apertava a mão. Will you still need
me, will you still feed me. Tinham mais
de sessenta e quatro (a esperança de vida aumentara desde os Beatles), mas,
sim, ela continuava a precisar dele e a alimentá-lo, agora de uma forma
literal, a colherinhas de sopa.
Havia um recolher
obrigatório — os tempos hoje em dia eram deste jaez — mas ela estava cansada de
estar em casa, queria sentir a brisa do fim da tarde, passear de mão dada pela
marginal. De modo que mandou às malvas os avisos e fez o que lhe apetecia
fazer.
As claques não
tardariam a encher as ruas, evidentemente. Era dia de derby, e as autoridades faziam questão de reservar o espaço público
para os hunos em dias destes. Faziam-no em nome da segurança e do bem-estar
social. E, de facto, ela tinha de concordar que de um certo ponto de vista era
mais razoável para o cidadão comum (caso ainda existisse) ficar em casa,
sequestrado pelo seu próprio governo.
Mas não naquele dia.
Tinham passado cinquenta anos desde o casamento precipitado no final dos anos
sessenta, quando ele confundiu o desejo dela com paixão e ela, que pensara
iniciar então uma vida de amor livre e flores no cabelo, se embeveceu com a
ingenuidade do futuro marido e acedeu a dizer sim, mesmo que na altura não
achasse que aquilo a comprometia de forma alguma. Cinquenta anos em que nem por
um dia a banda sonora oficial daquela união improvável (will you still need me, will you still feed me) deixou de se ouvir.
Cinquenta anos era mais do que tinham o primeiro-ministro, o ministro das
finanças e o ministro-adjunto, a tríade que o país escolhera, talvez num desfile
de manequins (o que era feito dos anciãos, por Deus?).
Talvez já não
houvesse muitos velhos para além de eles os dois. Aqueles que se lembrava de
ter visto contavam-se pelos dedos das mãos. Mas na verdade não reparava muito no
que havia à sua volta. Quando saía só lhe interessava ir sentar-se num banco a
ver a foz e a acariciar a mão do marido, que o Alzheimer felizmente cingira à
faixa certa do álbum, mesmo que ela não apreciasse particularmente o arranjo
meio pateta que o McCartney providenciara para a musiquinha.
Ao chegar ao fim da
avenida o tempo começou a mudar e ela arrependeu-se de não ter trazido os
abrigos que tinha sempre pendurados no vestíbulo — mas não se arrependeu de ter
saído. Talvez chovesse (havia relâmpagos a cruzar o céu), mas o que era mais
romântico do que um passeio à chuva? Haveriam de sobreviver à constipação, se ela
os acometesse, e a maré viva era um espectáculo que ambos apreciavam.
Sim, estava
verdadeiramente excitada com a decisão de ter saído apesar de tudo e todos
pretenderem o contrário. Ainda havia alguém no país que fazia o que lhe
apetecia e não o que era determinado. E Deus, no caso de existir tal singularidade
lá em cima, bem poderia convocar as tempestades que quisesse. Se ela achava que
lhe calhava bem um passeio até à foz, vinha até à foz. Feliz por ter o marido
de sempre a cantarolar-lhe na sua vozinha querida a melhor declaração de amor.
Depois de se terem
sentado a ver a espuma das ondas, a primeira claque passou nas costas deles,
bastante desmotivada, quebrando apenas uma ou outra vitrina e incendiando escassos
contentores de lixo. Meia hora mais tarde, escoltada pela polícia, veio a insolente
claque adversária, com disciplina militar e sarcasmo palaciano, entoando um conhecido
cântico guerreiro.
João, o marido,
voltou-se para trás, com um sorriso e um dedo hesitante de maestro no ar.
Demorou algum tempo a apanhar a melodia, mas depois atacou-a a plenos pulmões — e
ela soube pela primeira vez em cinquenta anos o que era a traição.
Gostei imenso de ler.
ResponderEliminarFaz um pleno (se é que é assim que se diz) abordando temas da actualidade política, social (não só por isso mas tantos são os casos de Alzheimer e tão diversas as formas de lidar com a doença), amor, acomodação, resistência psíquica, humor, fidelidade, traição.
Não refiro o futebol porque me parece ser mero pano de fundo para abordar a violência entre claques e, sendo isso, entendo que está abrangido nas referências sociais.
Apetece-me dizer que está, também, muito bem escrito mas isso é capaz de ser redundante.
Obrigado.
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