— Por vezes —
disse Mário — penso que o Verão, aquela altura do ano em que vamos definitivamente
ser felizes, é um mito, uma projecção dos nossos desejos mais íntimos. Ou
talvez uma evocação. Sim, definitivamente uma evocação. Vejamos: o Verão existiu, um dia houve Verão. Não é como Deus ou os santos, nos quais temos de
acreditar sem evidências nem testemunhos, cegamente. Não é uma questão de fé —
mas está imbuído da mesma intangibilidade. Temos as nossas memórias dele, sem
dúvida que temos. A felicidade estava ali, por todo o lado, inundando tudo
naqueles fins-de-tarde intermináveis, como uma cornucópia generosa que não
parasse de jorrar luz e prazer e boas coisas a todo o momento, um regador
gigante manuseado pela mão de Deus, aspergindo com uma nuvem de vapor
inebriante, muito fina e suave e fresca, os nossos dias incontáveis e incontados.
— Mas o Verão
— continuou Mário — não tem existência senão no passado, por isso o seu
carácter mitológico. Ano após ano alimentamos a esperança de que agora é que
vai ser, vamos repetir tudo a que temos direito, o ócio, as sestas depois de
almoço, os planos para as diferentes partes do dia que se não se cumprirem não
importa pois há tantos dias à escolha, as manhãs sem fim, os almoços longos,
com sobremesa, as tardes a perder de vista, os jantares com guitarras e
cantorias eufóricas, as noites também habitáveis, usufruíveis (a uma da manhã à
distância da Namíbia, se não mais longe ainda, de qualquer modo sempre para lá
do Bojador).
— Depois eles acabaram
com o Verão. A humanidade prestes a cumprir-se (as máquinas farão as coisas chatas, dizia-se em 1900 — em 1900!) e
eles a acabar com o Verão. A tecnologia de ponta, a riqueza, o voto universal,
a igualdade, o amor livre, o homem na Lua, tantas evoluções — e eles a acabar
com o Verão.
— Em 1967 eu
ainda não sabia que eles estavam a acabar com o Verão. Quer dizer, eu estava a
nascer, não é?, não podia reparar logo nisso, tinha as minhas próprias prioridades.
Durante os primeiros anos e os seguintes, tudo o que fiz foi aproveitar o
Verão, carpe aestivum. Não de uma
forma táctica, oportunista, reflectida, filosófica, ideológica. Não. Nada
disso. No sentido menos consciente da expressão. Apenas mergulhando plenamente
nele, de trombas, de barriga, de costas, lançando-me para ele como pudesse e a
todo o momento. O Verão estava ali à mão de semear, era gratuito, para todos,
cada um que fizesse dele o que quisesse. Não havia um minuto a perder (embora
houvesse imensos minutos para perder), tudo o que tínhamos a fazer era dar uma
corridinha rápida, um saltinho para o ar na beira e, zás, cair nele de cabeça,
formosamente, atleticamente, imensamente, para sempre.
— Sim, para
sempre. Aqueles que mergulharam no Verão naqueles anos sabem do que falo. São,
como eu, os despojados do Verão. O cume da raça humana, a quem subitamente
tiraram o tapete de debaixo dos pés. O tapete não, a prancha, o trampolim.
Íamos nós para mais um salto, joelhos ligeiramente flectidos para o impulso que
nos lançaria nos céus como um Ícaro sem percalços e de repente também nós temos
um percalço. O maior deles todos. Não há prancha. Não há trampolim. Não há
Verão. De todo. Há apenas a queda. A longa e interminável queda. O lado
simétrico do Verão. Algo que nos puxava para baixo onde antes nos sentíamos
enlevados. Para baixo, sempre para baixo, Alice caindo pelo buraco mas sem
nunca chegar ao País das Maravilhas. Nem a lado nenhum. Nem sequer ao Inferno,
que poderia ser um sucedâneo do Verão, com o seu próprio calorzinho. Não. Nada.
Apenas a queda. A Queda e o Tempo. Tempo para ponderar a perda. Para gravar
mais profundamente na nossa pele o que estávamos a perder. Não como o Verão
gravava na pele a sua infinita bondade, com uma cor, um tom, o bronze, nalguns casos o ébano puro — sem escaldões nem
melanomas.
— Depois de
alguma vez se ter entrado no Verão, como eu entrei, como nós entrámos, a vida
torna-se muito difícil. Há a Queda, claro — aguardamos a todo o momento
ficarmos esborrachados, como um poio a cair do cu de uma vaca lacónica —, há a
queda, mas houve o Verão. Estamos
para aqui a cair, sempre a cair, mas temos uma memória, algures no nosso
cérebro temos registos de que houve um Verão. Um não, dez ou vinte, a eterna
repetição, a terna repetição da
melhor coisa que o mundo teve. Haverá castigo maior do que esse? Conhecer o
Paraíso e perdê-lo? Saber como as coisas podem ser e depois sermos informados
de que nunca mais as coisas serão assim? Que daqui para a frente o que nos
resta é lembrar, lembrar e chorar a perda até à neurose? Freud, Freud, onde
andas? Era isto que tu querias, não era, meu sacana? A humanidade a remoer as
suas neuroses e a comprar os excitantes, os calmantes, os soníferos que gajos
como eu prescrevem aos outros e a si mesmos. Que bela ideia de negócio, a tua,
ó sócio.
— Quer dizer,
se ao menos as férias não fossem apenas um mês, se pudéssemos ir três meses
para França, para o Loire, alugar um castelo com piscina até nos aborrecermos… Deliro,
bem sei. Fico sempre assim quando chega o Verão — concluiu Mário.
*in Aranda
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